terça-feira, 23 de abril de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do construtor de escadas rolantes não íngremes...




O construtor de escadas rolantes para declives não íngremes teve uma síncope de felicidade e morreu. Justo ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, o mais importante engenheiro do ramo dos transportes coletivos, embrulhou-se em tamanha alegria a ponto do seu coração, nada afeito a suores outros senão o da morbidez crônica, falhar e decretar o seu fim sumário, fim desse que foi o mais importante dos engenheiros do ramo dos transportes coletivos da cidade de Senta-Panças. Não havia qualquer ladeira respeitável em Senta-Panças, nenhuma grande depressão, vale ou morro, nenhuma geografia eminentemente acidentada que justificasse a existência de escadas rolantes para levar alguém de um lá para cá, e, justamente por isso, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes tinha a favor de si um fervilhante mercado de trabalho, sedento por instalar esteiras eletrônicas que evitassem o movimento supérfluo e compassado dos passos de um homem, ou de uma mulher, ou também de uma criança, fazendo-nos crer, o que é bem verdade, que todos em Senta-Panças aprendiam logo cedo a inutilidade de mexer os glúteos nesse rebolado imprestável, produto disso que chamamos comumente de andar. Aconteceu um fato, porém, e esse fato é decisivo para entendermos as razões, ou simplesmente a razão - porque houve apenas uma só -, que levou a cidade de Senta-Panças a ver-se, de um dia para o outro, órfã desse que foi o mais importante construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, justamente o nosso personagem em questão, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes. Numa de suas raras tardes de folga, porque ele era extremamente requisitado e fazia tempos que não usufruía da sua preguiça íntima, antes trabalhando para oferecer a preguiça aos outros que usufruíam das suas escadas rolantes, ele, construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, viu, sem pretensão alguma de ver, o gato do vizinho executar um pulo soberbo, ato que reuniu todos os conjuntos musculares do pequeno animal para que ele, o gato do vizinho, conseguisse cumprir aquela fenomenal distância entre o chão e o topo do muro. Ficou tão emocionado com tal cena que decidiu prontamente se vingar de todos os senta-pançudos - como são chamados os habitantes da cidade de Senta-Panças -, que durante uma eternidade inteira fizeram uso de seus equipamentos rolantes para evitar qualquer tipo de esforço outro senão o de existir, coisa já por demais cansativa ao olhar desses aos quais apelidamos de senta-pançudos justamente por morarem na cidade de Senta-Panças. Dito e feito. Ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, num ato perfeitamente planejado, interrompeu todos os mecanismos promovedores do suave deslizar das engenhocas rolantes, e isso num ato súbito, sem qualquer aviso prévio, fazendo com que a totalidade dos senta-pancenses (outro apelido possível aos que moram em Senta-Panças) fosse pega de surpresa e estacasse em cima dos equipamentos, e lá ficando, deitando olhares pasmos no vazio e sem saber o que fazer, e sem conseguir se mexer, justamente pela força do hábito de nunca na vida ter se mexido. O quadro dessa imagem causou a ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, uma gargalhada hiperbólica, uma gargalhada tão intensa que o seu coração não foi capaz de acompanhar, brecando suas funções bombeadoras para calar definitivamente esse que foi o mais genial construtor de escadas rolantes para declives não íngremes que a cidade de Senta-Panças já viu em toda a sua história.

Obs: Cabe ainda dizer que o enterro do construtor de escadas rolantes para declives não íngremes não pôde ser providenciado, uma vez que todos os coveiros, bem como o restante dos senta-pançudos, permanecem estáticos em suas posições, esperando que um dia as escadas rolantes voltem a funcionar.

Obs 2: O construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, por curioso que seja, morreu de pé, com as duas mãos na barriga, num claro gesto de gargalhada triunfal. Seu rosto, e tudo isso de acordo com os relatos de turistas que empreendem excursões até Senta-Panças para testemunhar in loco o que dizemos agora, cristalizou-se na imagem da risada final, com os dentes a mostra.

Obs 3: Há quem preveja o fim de Senta-Panças, caso as escadas rolantes não voltem nunca mais a funcionar.

Obs 4: Réquiem.

Obs 5: ...

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