quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Ludmila Collares, a diretora de ensino...


Se por um acaso o seu computador acusar a chegada de um e-mail em sua caixa de entrada, as chances são bastante grandes de se tratar de uma mensagem de Ludmila Collares convocando-o para uma reunião. Porém, os métodos são vários para avisá-lo de que Ludmila Collares deseja lhe ver. Os carteiros normalmente costumam saber de cor o nome de Ludmila Collares, isso porque as centenas de correspondências seladas com estampas autocolantes e inscritas com letras datilografadas em itálico indicam: ‘Gabinete do Educandário dos Ofícios’, para na linha de baixo completar: ‘Ludmila Collares – diretora de ensino’. No interior inviolado, um único papel de folha branca e sem pauta anuncia: ‘... reunião pedagógica a ser realizada no dia tal, no mesmo horário de costume’. Eram tão frequentes os motivos que levavam Ludmila Collares a convocar uma de suas reuniões pedagógicas que não havia qualquer necessidade de precisar em detalhes as circunstâncias as quais tal evento ocorreria, encerrando o assunto justamente da maneira como descrevemos acima: ‘... reunião pedagógica a ser realizada no dia tal, no mesmo horário de costume’. Uma vez em que você era alvo de uma missiva assinada por Ludmila Collares, não haveria qualquer razão para se preocupar quanto aos detalhes e circunstâncias, afinal, Ludmila Collares estaria exatamente no mesmo local de sempre e na mesma hora de sempre para lhe receber, você e aos outros, para mais uma reunião pedagógica do Educandário dos Ofícios. Caso Ludmila Collares não fosse personagem do tempo que se segue, a ausência da tão aclamada tecnologia não faria com que a diretora de ensino do Educandário dos Ofícios desanimasse na sua tarefa de avisar quem fosse preciso ser avisado de que uma reunião pedagógica estaria em curso no dia tal e no mesmo horário de costume, isso porque, além das cartas já citadas – método arcaico, sem dúvida, porém seguro -, são muitos os meios conhecidos de se avisar alguém de que alguma coisa está para acontecer no dia tal e no mesmo horário de sempre, desde os sinais eletromagnéticos transportados por toques e pausas recorrentes em determinado pulso de ritmo a ser estabelecido pelo operador do equipamento, lê-se, operador do telégrafo, até mesmo ao uso de mensagens impressas em pequenos papeizinhos e atadas às patas de pombas que, uma vez treinadas em sistemas ópticos de visualização do terreno a ser percorrido, podiam muito bem carregar a preciosa informação para as residências não tão distantes de que o Educandário dos Ofícios sob direção da diretora de ensino, dona Ludmila Collares, desejaria em pronto dia e horário estabelecer um contato pessoal com cada um dos funcionários a ela subordinados para tratar de questões pedagógicas referentes ao andamento dessa importante e secular instituição cujo nome é conhecido por Educandário dos Ofícios. Seríamos injustos se suprimíssemos o telefonema como ferramenta de contato eficientíssima no caso de se ter de avisar prontamente quem quer que precise ser avisado de que em breve, no mesmo dia e locais de sempre, haverá uma reunião pedagógica sob comando da diretora de ensino Ludmila Collares, sabendo que, mesmo que o interlocutor da ligação esteja inapto no exercício de atender ao chamado de Ludmila Collares, ainda haverá a preciosa oportunidade de se deixar gravado na caixa postal uma mensagem de voz nos seguintes termos já consagrados: ‘Caro senhor Fulano de Tal... reunião pedagógica a ser realizada no dia tal, no mesmo horário de costume. Grata, sua Ludmila Collares’. Se nos fogem agora outros mecanismos de alerta sobre a iminência de uma reunião pedagógica é por motivo proposital, afinal, uma vez informado sobre uma reunião pedagógica que se aproxima, é preciso, ainda que não extremamente necessário, que se pense sobre o que será dito no instante em que Ludmila Collares pedir a sua opinião, e, ainda que ela não a peça, seria de bom tom dizer alguma coisa não necessariamente relevante, mas que dê a certeza para Ludmila Collares de que a sua presença é e sempre será fundamental nas reuniões pedagógicas, mesmo que o que saia da sua boca seja um comentário sobre o clima seco, ou ainda a espinha que na véspera espocou bem na lateral esquerda do topo do seu nariz, local onde a armação dos óculos produzem pequenas esfregadelas, motivo pelo qual, bem poderia replicar Ludmila Collares, a tal espinha resolveu lhe incomodar.    

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São tantos os motivos para nada dizer
Que a gente acaba dizendo
Ao menos até que o silêncio
Venha a contento.

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Não é curioso que as horas mais caladas
Essas das madrugadas
São as que nos dizem mais?
Enquanto as outras
As que padecem do calor do verbo 
Debaixo da multidão em verso
Tanto pedem direito de existir
Que uma vez existindo
Morrem atoladas
Sem quase nada
Exprimir?

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Acho que sou existencial...
Permita-me a redundância
Mas a minha rima é desse naipe
Não me alegro com nada
Não festejo coisa alguma
O amor não me traz versos
Tampouco a natureza me inspira melodias... Não! 
Só consigo olhar para cima
E descrer assombrado
Disso que me fizeram ser
Sem que por mim houvesse
Contrato assinado...

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Não desejo as garras da imagem
São as palavras que me guardam memória
Sumindo comigo na velocidade de um ponto
Visto em silêncio contido meu desejo de acabar
Porque no efêmero de uma assinatura invisível
Me faço ver
Ainda que por tempo curto
Perduro
Ao passo que a eternidade do semblante marcado
Em cores visíveis embotado
Morro eterno
E triste
De uma doença de nunca poder apagar
Aquilo que sei jamais ter sido
E por desejos outros
Haver sem direitos
Merecido.

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Não é curioso pensar que isso que agora digo
Esse livro que trago comigo
Já foi lido e relido?

Que essa música que julgo compor 
Já é coisa gasta e valsada
Há muito pelos quatro cantos
Soprada?

Não é terrível saber que nesse teatro que agora me vejo
Nesse palco onde julgo estrear
Tantos outros já trataram de o mesmo tablado
Repisar?

Os mesmos figurinos gastos
A mesma trama relida
Os mesmos cumprimentos
Visto de cima pelos astros
Pendurados em igual firmamento!

Não é triste e assombroso
Que não haja registros concretos desses fantasmas que por agora nos observam
Tratando-nos em silêncio como fantoches do que um dia foram
Respeitando o mesmo decoro
De uma festa cujo enredo é mais do que certo?

Não é maravilhoso compreender
Que por mais que se tente
Tudo já está mais do que evidente
E sendo isso o que somos -
Tristes herdeiros imediatos dos gênios que aqui já estiveram -,
Para dizer o que eu e você lutamos por balbuciar
Ao passo que os miseráveis já por nós também o foram
Também por nós compreendendo que crise alguma é mistério
Sendo antes um destino há muito visitado
Cujos viajantes um dia houveram nessas mesmas praias
Naufragado?

Não é maravilhoso recoser esse prato ingrato de nome vida
Tendo dele a garfadas engolir
Até quando sabe-se lá
Houver uma chance
De partir?

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


Problema algum haver um milhão de antas para cada gênio!
Antes pastassem elas junto as primas capivaras do Tietê!
Mas não! Dentre as antas anônimas surge outra categoria:
As antas consagradas 
Que não obstante a serem o que são:
Antas
Tomam-se por gênios 
E daí advém esse lindo espetáculo 
Cujos astros e espectadores são todos e sem exceção 
Ruminantes

...

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Senhor Deus todo poderoso
Sejas tu quem fores
Livrai-me da burrice - 
Dos pecados cuido eu! -
E quando tiveres desejo de pregar aos meus miolos com evangelhos, salmos vários ou menus libertários - 
Valei-me ó Pai! -
Confortai-me em minha teimosia de moleque, ou reservai-me o inferno!
Porque se a salvação é terreno de consensos -
Ó milagroso barbudo metafísico -
Afundai-me no limbo da misantropia
Afinal, antes ensurdecer voluntariamente
Que virar cordeiro alado
No meio da sinfonia
Se queres-me como ovelha
Dai-me o bendito cajado!
Estar vivo já é demais castigo
Para padecer em bando
Com a desculpa de ser amado!
Perdoai-me, ó misericordioso pastor
Descobri um amigo cujas palavras não ditas encantam-me mais
Seu nome?
Tobias
Um labrador!

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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014


O segredo é fugires do natural
Não sejas nunca quem és!
[quisera haver um espelho cujo reflexo pudesse dizer: prazer, esse és tu!]
Porque esforçando-te em natural ser
Como fingido te tornas -
E sem saber!
Crendo que viver é coisa outra
Senão um eterno inventar
Daquele que sendo
Não vês...

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Pediu-me para ler o que por escrito havia acabado de escrever
Respondi categórico: não!
Só frequento autor morto, completei...
Das duas uma: ou te matas e some da minha frente
Ou contentas em ser meu amigo
Ao invés de gênio!

Ora veja...

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Na plateia da orquestra 
Exigi adesão por parte do maestro
Tão descabelado cabelo haveria de se desperdiçar assim?
Que os bumbos não parem de ribombar! AVANTE, COMPANHEIROS!
E antes que pudesse encher-me de outros protestos,
Malditas cordas lamurientas!, que sem pedir autorização da minha alma, jogaram-me num campo florido, empesteado por odores malcheirosos de alfazema!
Disseram-me que o inimigo respondia por Beethoven -
Algum governador?
Ditador?
Malfeitor?
A velha ao meu lado, que até então jurava estar morta desde a descoberta da tumba de Tutancamon, soprou-me disfarçadamente:
Cala-te, homem! É o compositor!
Ainda vítima das coceiras nas narinas,
Quis escrever uma ode ao ódio
Mas o perfume era tanto e por toda a parte, que a única saída era ser dramático!
Vou enforcar-me, pensei!
Mártir da causa, é como serei lembrado!
E ao pular no palco, na iminência de roubar a nota grave do contra-baixo,
Os metais lá atrás fizeram-me valsar
1, 2, 3
1, 2, 3
E lá estava eu, saltitando no embalo duma fanfarra!
Mas que diabos, senhor maestro!
Aqui não se pode falar a sério?
A vida é uma causa sem jeito,
Sopraram os trompetes,
E era tanta alegria, que tive desejos profundos de escrever uma poesia:
"Ó linda música
Que rodopiar me faz
Quantas saudades tenho
Dos tempos em que era rapaz!"
TRAIDORES! EXPLORAM-ME AO RIDÍCULO! Caí em mim.
Afundei-me na cadeira já pensando:
E agora?
Mas tarde já estava
E uma maré de aplausos matava minhas vontades...
Dessa vez pegaram-me de jeito.
Jurei nunca mais pisar os pés numa sinfonia,
Ou quando o fizesse
Munido estaria de uma nova e preparada infantaria!
MAS QUE DIABOS! FORÇAM-ME A RIMAR!

Amanhã vou ao teatro...
Talvez Shakespeare junte-se a mim
E assine meu contrato.


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A inteligência tem dessas coisas
Se perde toda hora
E quando ancora
Vira monumento
Novena de peregrinação
Do filósofo
Ao jumento.

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FOSTE DE NOVO, IMBECIL!

E de repente já estava indo
Quando me vi, fui!
Ciente do perigo, convenci-me de que ir era preciso
Quem diabos disse isso? Retruquei
Ora, se navegar não é preciso [sábio poeta que nunca foste a lugar algum!]
Viver tem disso: um modorrento convidar a sair de onde se está!
Mas para quê? VÁ PARA VER!
Vou, ou, fui!
Cá estando, ou aqui falando,
Percebo:
Não deveria
Tarde demais, todavia
Eis a dinâmica da coisa:
Chamam e tu, jumento!, vais!
E como se a pólvora já não estivesse a tempos explodindo por aí,
Insistes!
Tu és desse tipo:
Insistes em crer no ajuntamento!
Mas por que, se tudo o que foi invento
Inventou-se no claustro da solidão?
A poesia tem disso: um alívio merecido
Vive-se um tanto de inútil
Para inutilizado os miolos
Render em último suspiro
Uma réstia de inspiração...

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Quisera eu ter outro jeito de competir com a folha de papel
Porque nesse cruel enfrentamento
Miolos versus eucalipto
O saldo não foge ao padrão
Vencem as linhas, ou o branco não escrito
Tenho dito.


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MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Cornélius Antônio, o cínico...

Era uma fila. E, sendo uma fila, não há maiores razões para se evitar uma compreensão a fundo a respeito do que essa sequência de homens a espera de algo representa: uma fila e não mais do que isso. Porque motivos outros não podemos aferir acerca do significado vazio disso a que costumamos nos habituar como sendo o exemplo mais cabal do desenvolvimento humano: a religiosa capacidade de mofar atrás de algum pobre diabo até o instante em que alguém venha nos dizer: liberte-se e vá para onde bem lhe aprouver a vontade. Era, portanto, uma fila das mais significativas, tão inútil quanto aquela encontrada no dia anterior, exatamente estacionada no mesmo lugar da véspera, terreno cujos dias iam se sucedendo, cada um deles espectador do mesmo espetáculo patético e mudo, estrelado por faces sonolentas de nomes irrelevantes, todas elas cumprindo seu papel de registro na tábua da posteridade, algo como uma migalha desimportante, mas que com o esforço persistente consegue alçar o sentido daquilo que rodopiamos para dizer e então resumir: era uma fila. E veja que há uma dignidade toda exemplar nisso, afinal, inventando razões para não ter que se justificar como tal, uma fila paira na condição de ser o que é sem necessidade alguma de recorrer a quem quer que seja para legitimar a imprestável serventia que esse enfileiramento de cabeças e pés reivindica por ser. Enquanto tudo o que é nobre e passível de admiração sofre com a urgência de encontrar arautos que saibam encerar a fina camada de poesia de suas rubras faces, a fila, no seu itinerário silencioso e imprestável, mantém solitária a sua grosseira exemplar. Dito isto, Cornélius Antônio, mais um que contribuía para o enfileiramento daquele dia, só esperava a sua chance de travar conversa com o atendente do caixa, diálogo que não deveria fugir de algumas trocas de valores de cifras monetárias referentes ao frugal desjejum que toda manhã era servido naquele lugar muito propício à formação de filas, e que costumeiramente fora batizado de padaria. Pois quando chegou a sua oportunidade de desembolsar seus tostões, Cornélius Antônio, face a face com o atendente de caixa, sujeito de semblante amanteigado, como se houvesse por talento absorver aquela pasta amarela que deitavam nos pãezinhos saídos do forno, enfim, Cornélius Antônio percebeu que os holofotes da existência estavam todos voltados para si, e aquele haveria de ser o seu momento, chance única de fugir do enredo costumeiro e improvisar linhas que, uma vez bem articuladas, poderiam fazer de todos os que o rodeavam meros coadjuvantes. E assim se deu:

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
Tem fogo?

CAIXA AMANTEIGADO:
(risca o fósforo)

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
O senhor fuma?

CAIXA AMANTEIGADO:
(balançar negativo de cabeça)

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
(baforejando aos quatro ventos)
Sorte a sua!

E foi embora. E a fila nada entendeu, mantendo sua rígida formação militar, sem sequer se dar conta de que um grandioso ator de nome Cornélius Antônio acabara de sair de cena sem que houvesse o seu talento, por merecido mérito, sido reconhecido.

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Rondó

Fosse tudo de novo
Haveria de tudo e mais um pouco

As mesmas revoltas
O mesmo povo...

Assim se faz a história
Enredo fechado

Todos à mesa e bon appetit!

Ao banquete requentado...

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THE END...

Acordei no desejo do inverso
Disse boa noite ao invés de bom dia
Na oração pus logo um amém
Que reza era? Ave Maria, ou qualquer uma!
Que é que tem?

Ao consultar-me
Disseram que era uma anomalia
Levantei aplaudindo
Gritei bravo!
Ao fim da sinfonia...

Vi nos filmes os créditos subindo
Sem saber que trama era
O ator era eu
Que antes de ser
Já me ia sumindo...

E de tanto reverter a ordem dos versos
Tornei a ver
Parando aqui, no fim sem início
Melhor suicidar-me antes de nascer!

Aqui jaz
No fim da folha
Só um ponto

Mas que vontade de ressuscitar!
Já fui tarde
Melhor conformar

Era uma vez:

...

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Pediram-me que eu regenerasse pela poesia 
Poesia não regenera
Ora essa
Todavia! 
Antes fosse assim:
Uma quimera!
SIM-SA-LA-BIM:
Engolindo certos versos
Fada hoje
Ontem megera!

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sábado, 22 de fevereiro de 2014

UM RÉQUIEM PARA ANTONIO...

Que saudades de ir ao teatro para ver teatro! 
E fugindo da vida, encontrá-la bem ali 
Tão real quanto esconde ser
Tábuas de histórias
Cuja única verdade
É parecer!

Porque não fosse a farsa a cobrir de enfeites e purpurinas os nossos tristes dias
Cegos dançaríamos
E tomando a valsa por silêncio sério
Viveríamos!

Antes esconder para fazer ver!
E quem diria que assim seria?
Eis quem sois, diz a mentira:
Nem mais corretos
Tampouco menos patéticos!

Forjar as horas
Colorir as certezas
Costurando melodia onde antes não havia!
Função mais nobre não há
Na poesia...



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Contenda...

Ao término das minhas aulas, costumo estender o circunlóquio erudito elegendo eu mesmo como interlocutor, entabulando afiadas contendas com o meu próprio nariz. Pois eis que hoje, por razões que me dou o direito de omitir, resolvo discordar peremptoriamente de mim mesmo, fato que levou a mim a agir energicamente, exigindo retratação imediata do autor da refrega frente ao espelho retrovisor do carro. Saldo final: entre mortos e feridos, salvei-me eu… e morri também, ambos vitoriosos e vencidos.

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Livros

Compro mil livros
Perco outros tantos
Daqueles que eu acho, alguns leio
Pelo restante, cumpro maior respeito
De haverem de ser
Coisa que meus olhos 
Nunca hão de ler

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[...]

Ontem disse que eu era assim
Creram! E agora procuram-me o mesmo
Não sou, ou melhor, já fui!
Não mais
E assim segue a vida
Cheia de gente que se veste de véspera
No desejo de eternizar o que por eterno só conseguem ter
Quando um dia deixam de ser...

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Cercam-me tantos exemplos de como não ser
Que no fundo sou isso:
Uma recusa voluntária me oferecida pelos outros.
Só desejo ser como gostaria que fosse
Quando olho para meus cães
Chegando-me em silêncio os motivos que por gestos e palavras nunca conseguiram minha adesão.

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Guilhermina das caixas de ovos...


Consta na lista dos afazeres cotidianos uma atividade cuja recompensa ou é o silêncio de a ter realizado, ou então o evidente desastre de não ter sabido como cumpri-la. Porque paira justamente aí a injustiça humana: quando sabe-se fazer algo, nada ou ninguém presta atenção, ao passo que, uma vez incorrendo em qualquer incompetência digna de nota ou não, haverá sempre um papagaio a lhe repetir publicamente as notas do fracasso. Pois Guilhermina das caixas de ovos testou com galhardia os limites do talento, atravessando a rua a equilibrar umas não sei quantas caixas de ovos, brancos ou laranjas, tanto faz, passando incólume o seu hercúleo esforço por quem fosse que a visse naquela situação: toda ela distribuindo as próprias banhas - porque se uma coisa podemos dizer de dona Guilhermina das caixas de ovos é que, provavelmente, muitos ovos fritos havia ela ingerido ao longo desse tempo todo em que acabara por firmar a sua reputação, nada aplaudida e bastante desprezada, por sinal, de exímia carregadora de caixas de ovos, brancos ou laranjas, tanto faz, cabendo, inclusive, a insinuação nada absurda, por sinal, de que ela, dona Guilhermina das caixas de ovos, incluía também algumas fatias de bacon na sua pesada dieta, fato que explicaria a silhueta assaz avantajada -, e assim dava conta, ainda que inconscientemente, de usar as próprias banhas como contrapeso aos frágeis ovos que empilhava em pilhas de bandejas de isopor. E lá ia dona Guilhermina das caixas de ovos, quase um monumento inteiro e invisível da suprema falta de consideração que prestamos a todos os que dedicam suas vidas a feitos inacreditáveis, mas que pairam no mais espectral anonimato, só valendo atenção no instante em que esparramam sua imperícia aos pés nossos, espectadores ingratos desse mundo em que ovos, tampouco carregadores de ovos, valem nada, ou quase nada, mesmo sendo eles, os ovos, laranjas ou brancos, tanto faz. 

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sábado, 15 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Olívia das Hortências, regente da plateia...


Sabe-se que as coisas andam tão absurdamente subvertidas nessa vida, os baixos subindo aos ombros dos altos para angariar horizontes antes cegos, cegos enxergando mais do que os que enxergam, mortos que vivem mais do que os vivos que deveriam por direito adquirido viver antes de morrer, os mestres pleiteando o diploma da mentecapice em favor dos pupilos que, sabidamente burros, viram catedráticos respeitadíssimos e de toga, enfim, é um tal de azul virar verde e verde virar amarelo, tudo sem aviso prévio, que não surpreende o fato de Olívia das Hortências, a assinante de concertos da Orquestra do Estado, agir dessa forma, como se ela fosse o centro das atenções, mui vezes mais interessada em monologar no silêncio do que assistir ao pobre do spalla regurgitar escalas dificílimas, e assim marcar presença como regente de um naipe só dela, todo coordenado pelos seus gestos de virar de olhos, torcer dos lábios, amassar o papelzinho de bala, breves ruminações intestinais habilmente liberadas em tempo de sincopa, enfim, todo um repertório de grunhidos e tiques milimetricamente ensaiados, havendo por fazer dela, enfim, dona Olívia das Hortências, uma enorme e gorda batuta de carne e banha, levando atrás de si toda uma plateia que de interessada nos músicos não tinha absolutamente nada, antes marcando encontros para seguir as ordens dela, Olivia das Hortências, essa senhora que um dia encantou-se em saber que a Orquestra do Estado abriria uma série de assinaturas para que o público pudesse tornar-se fiel e ainda mais próximo desse que é considerado um dos conjuntos mais notáveis do mundo orquestral contemporâneo. E dito e feito. Com salas cada vez mais abarrotadas de séquitos de dona Olívia das Hortências, senhoras e senhores na sua maioria surdos, gagás e ricamente populosos nas ancas já atacadas pela osteoporose, não foi pouca a repercussão do sucesso empreendido pela Orquestra do Estado no intuito de ampliar seus programas sinfônicos e apresentações de câmara e, embora quase ninguém estivesse interessado em ouvir patavinas do que Mozart, Beethoven ou seja lá quem quisesse dizer, a plateia, toda ela partidária de dona Olívia das Hortências, fazia cara de absoluta comoção, reagindo a cada respiração mais grossa de dona Olívia das Hortências, sempre atenta para gritar ‘Bravo!’ ou ‘Viva!’, mesmo que, imaginemos o fato, a Orquestra do Estado resolvesse amassar e jogar fora toda a sua erudição construída por anos a fio, e saísse a interpretar a La Cucaracha, com violoncelistas trajando enormes sombreiros a rodopiar palco afora. Enfim, cabe dizer que houve um instante de absoluta sensibilidade por parte de Sir Marlon Oilsip, maestro titular da Orquestra do Estado, obrigando todos os seus músicos a interromper o matraquear afinado dos seus instrumentos no auge do último movimento de Mahler, para virar-se em direção à plateia, terreno onde um adagietto em ronco maior se dava em pleno chilrear de beiços moles, e cujo centro respiratório encontrava-se justamente na goela da dona Olívia das Hortências. Desde então, e concluímos por aqui, as coisas trocaram de lado, a plateia subia ao palco, e os músicos sentavam-se nas cadeiras do público, executando trechos muito breves de alguma peça ligeira e sem profundidade alguma, toda vez em que o tédio da massa velha e sem interesse permitia um entreato.    


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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

(*****)

Esconder, esconder, esconder
Praga essa em que tudo é revelado!
Sabe-se o nome de todos
A política da moda
Os desejos e frustrações do mundo
Tudo quer se reformar pela adesão
Pergunte a qualquer um:
Todos tem opinião!
E juntam-se em bandos de toda a espécie!
A rua virou campo de matraqueadores
Existir é ser visto e ouvido
Achar meios de dizer:
Estou aqui! Estou aqui! Estou aqui!
E nisso depositam a esperança da civilidade...
Será que não veem que movimento algum leva a outro lugar senão ao mesmo ponto em que um dia alguém por teimosia houve por abandonar?
Fico
Enraízo
Mofo
E assim vejo a vida passar com o seu desfile de ideias ocas
Enjeitando bufões esperançosos por chegar ao fim da avenida aos berros de vitória
Eu não
Não berro
Só vejo
E isso mais do que basta
O resto é silêncio...

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

(...)

Que maravilha que é morar e não saber quem mora ao lado
Ter um vizinho e não o conhecer
Saber que alguém mora ali
Alguém cujo rosto eu jamais vi
E tampouco ele de mim faz memória
Somos os dois, no máximo
Uma história
Capítulos nada extensos
Em nada profundos
De enredo rápido e fácil
Só dividimos o que não sabemos
E fim!
Pronto nos entendemos.

...

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