quarta-feira, 30 de julho de 2014

Fábulas: # O sucesso merecido do ator-sensação-do-momento...


A quem se prestar ao movimento de estender o dedo indicador para acionar o controle remoto e ligar o aparelho de televisão nas coordenadas digitais da emissora oficial, lá verá, em olhos arregalados e claros, o ator-sensação do momento sendo sabatinado por colegas dos mais diversos ramos do entretenimento e sobre temas do mais variado escopo das importâncias contemporâneas, desde um escrutínio detalhado da sua vida íntima, sexual e profissional, assunto que inexplicavelmente pairava até então desconhecido por parte do público pensante, até, e aquilo que mais nos interessa saber, como é que ele, o ator-sensação do momento, consegue arregalar aqueles olhos redondos e claros de um jeito tão cativante que muitos de nós, aposto, não conseguiria sequer simular, ainda que treinássemos à frente do espelho por horas a fio. E assim sucessivamente e ao longo do dia: pela manhã, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação, então, aparecerá tomando café com a apresentadora para efemérides matinais que, dona de um topete de proporções tibetanas, conversa diariamente com um papagaio feito de espuma verde e acionado por braços, mãos e dedos, esses últimos, ao contrário do exemplo do controle remoto, invisíveis, e sempre de olhos arregalados, os do ator e também os do papagaio, ainda que este último os tenha como duas bolotas de acrílico coladas com cola quente diretamente na espuma verde. Já no período vespertino, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá dançando e cantando no palco do programa de variedades do mundo artístico e cujo apresentador é tão extrovertido, simpático e adulador, que até mesmo os olhos já arregalados e claros do ator-sensação do momento arregalam-se um tiquinho a mais, ainda que disséssemos a nós mesmos ser impossível aqueles olhos belíssimos, claros e arregalados, arregalarem-se um tiquinho a mais, e tudo como conseqüência dos elogios, preces e bênçãos que o apresentador vespertino em seu talento adulador e simpático conseguiu despertar. Enfim, pensando em acionar o controle remoto a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial no período noturno, o ator-sensação do momento, então, aparecerá na bancada do programa de jornalismo descrevendo de forma absolutamente imparcial os mecanismos técnicos e operacionais que se utiliza para proceder a esse arregalar de olhos belíssimos, verdes e amendoados, que o levou a esse posto-sensação de vir a ser, hoje e agora, o ator sensação do momento. Enfim, logo após o jornalístico e finalmente e definitivamente, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá na posse absoluta do seu desempenho dramático quando encantará a todos nós, aposto, ao arregalar os seus belíssimos, verdes-claros-amendoados, olhos já naturalmente arregalados durante as cenas dramáticas da novela em que desponta como o ator-sensação do momento. E como bis que não poderia faltar, caso esteja insone pela madrugada adentro e caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá no programa de auditório daquele velho apresentador que se faz de jovem para animar as plateias jovens com temas caros à juventude para explicar, definitivamente e finalmente, que conseguiu o posto de ator-sensação-do-momento justamente ao arregalar os olhos no teste para o papel da novela quando, naquele exato instante, as duas produtoras de elenco trocaram um olhar nada arregalado entre si e cochicharam uma no ouvido da outra em uma mistura de êxtase e tesão contidos: olha só que beleza como ele arregala os olhos!


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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Fábulas: # O Arremedo de Democracia...



Convencido de que era perseguido ou perseguido o era, tanto faz - nas duas formas gramaticais a única evidência clara e inequívoca é a que se verifica por fontes seguras: a de que caía sobre si o manto opressor da perseguição -, acordou e bateu os olhos nos jornais e enfim, eureca!, a prova que faltava - não para ele que se convencia perseguido há tempos imemoriais mas para todo e qualquer alienado que teimava em duvidar das armadilhas nefandas do poder repressor travestido de democracia -, as notícias, enfim, estampavam ali para corroborar em letras angulares e típicas dos manipuladores da opinião pública a mais pura e grosseira falácia forjada para que causasse uma falsa impressão de imparcialidade para que ele, perseguido que era ou o sendo perseguido, tanto faz, fosse acusado de crime contra o governo, esse sim o agente perseguidor daqueles que pelo simples ato de acordar um dia veem-se condenados à perseguição implacável. Convencido de que estava ou estando convencido desde então, tanto faz, de que era preciso fugir, fugiu, escapulindo pela janela e evocando os poucos aliados em quem podia confiar para que se aglutinassem como formigas operárias em greve e notassem o quão perseguido era ou perseguido estava sendo, tanto faz, para que, mediante a apresentação de provas cabais e irresolutas de sua condição de ovelha frágil sob os olhares vorazes do lobo faminto pudesse, enfim, atrair a opinião dos poucos elementos confiáveis da imprensa que estivessem dispostos finalmente a transparecer a única verdade límpida e cristalina que ali naquele instante se fazia luzir: a de que ele sendo perseguido ou alvo de perseguição, tanto faz, era a vítima evidente do circo que lhe era armado por órgãos herdeiros do holocausto, e que, vírgula, se coubesse a ele o papel de mártir denunciador do quão falaz e agourento é essa instituição chamada governo, berço de águias de rapina sedentas por pingar sua baba de predador por sobre a moela do cocuruto dos cidadãos comuns e inocentes – alvo preferido dos perseguidores -, então, enfim, por que não? – seria ele sim, liberte-igualitê-fraternitê, o soldado do front a sacrificar-se como um cordeiro no altar para que o rebanho que viesse em tempos vindouros pudesse usufruir daquilo que ele, infelizmente, hoje fora privado e, por isso, condenado a sumir: o direito, enfim, de não ser perseguido ou vir a ser alvo de perseguição, tanto faz.


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sábado, 26 de julho de 2014

Fábulas: # A pomba que se sabia pomba...


Certa vez uma pomba que tinha por hábito revoar o mesmo mastro que servia de suporte para a bandeira flamejar suas odes nacionalistas ao horizonte resolveu, por quebra de rotina, pousar lá em cima, aterrissando suas finas perninhas de pomba na pequena bolota escorregadia pintada a ouro que fazia as vezes de limite do obelisco, e, enquanto que os debaixo seguiam a vida no seu costumeiro e tedioso galopar sem motivo algum para suspeitar do que viria a seguir, ela, a tal pomba, acometida por uma indisposição qualquer, eriçou as penas, estufou o peito, abriu o bico e soltou a goela em firme e retumbante voz: EU SOU UMA POMBA! Todos que caminhavam pela praça central, vizinhos ao mastro da bandeira flamejante e agora poleiro da pomba falante, interromperam sua marcha e olharam para cima num misto curioso de sensações que combinava primeiro um assombro por ouvir pela primeira vez um testemunho tão consciente vindo de uma pomba, em seguida sobreveio o entusiasmo pela pomba ter rompido a tradição muda de suas companheiras de infortúnio, acompanhado por certa dose de inveja, afinal, antes fossem eles, enfincados que eram na proporção bamba de duas pernas, a ter asas, para, lá de cima, gritar alguma coisa que fizesse eco tal como a corajosa pomba conseguira realizar, e, por fim, uma avassaladora melancolia se abateu por todos os da praça, piedosos pela tal pomba finalmente saber que era uma pomba e, enfim, ter de lidar com esse fardo de consciência absoluta até o fim de seus dias... agora dias, como bem sabia, de pomba...



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Há quem escreva para ser lido
Eu escrevo para escrever

Há quem seja ator para ser querido
Eu o sou porque é preciso ser

Há quem busque plateias
Eu que tantos sou em um -
Ou não sendo nenhum porque não sei quem sou -,
Já basto

Há quem veja no destino um sentido
Eu caminho

A ideia de chegar
Me cansa

Antes caminhar
Sem esperança



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sexta-feira, 25 de julho de 2014

Fábulas: # Culpado!



Entrou esbaforido meio desajeitado meio desmilinguido com a língua de fora implorando por algo que a enrolasse para dentro novamente ao prometer que o medo que fazia os cabelos agora empinar era passado e antes que aquele que sentado e escondido por trás do jornal do dia só denunciado pelo filete de fumacinha que subia do seu cachimbo de madeira de carvalho antigo pudesse esboçar qualquer mínima reação à figura daquele que acabara de entrar, disse:

-        O leão (pausa) fugiu (pausa) do circo...


Lentamente fechou o jornal numa coreografia quase farsesca de ambas as mãos e com o cachimbo a periclitar por entre os finos lábios entreabertos voltou-se ao esbaforido recém chegado balbuciando na posse absoluta da calma de sua cavernosa voz:

-       Algum ferido?

Não ainda. Como não ainda? O leão fugira do circo mas nenhum ataque fora ainda registrado. Mas como ainda não fora registrado nenhum ataque? Simplesmente fugiu, só isso. Ainda...

Mas já era tarde demais. Aquele ‘ainda‘ era definitivo. Denunciava que o denunciante da fuga o leão tinha culpa no cartório uma vez que esperava que o leão atacasse e em ele atacando suas expectativas seriam cumpridas e tudo isso sem nada revelar das suas íntimas e maléficas intenções senão pela ligeireza da pronúncia de uma simples e aparentemente inofensiva palavra:

-      Ainda.

Levantou-se da poltrona. Foi até o telefone. Chamou a polícia.

O outro, estático, já menos esbaforido mas não menos assustado, ouviu:

-       Delegado? Quero denunciar um sujeito maluco que acaba de entrar na minha casa. É ele o responsável direto pela fuga do leão do circo.



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quinta-feira, 24 de julho de 2014

Fábulas: # O cinema (primo rico) e o teatro (primo pobre)


Bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade jazia uma fachada de luzes cintilantes a se escorar poucos metros adentro da calçada. Era um cinema. E acabara de ser reaberto. Multidões em romaria testavam penitências várias esperando a vez de entrar para ver um filminho clássico, um possível reencontro com Marlon Brando em plena e vigorosa forma, e depois de tanto tempo de breu misturado ao silêncio das telas. Sim, porque essa era uma praxe recorrente do tal cinema: a de tempos em tempos entrar em crise para morrer, baixando as portas para nunca mais. Mas nunca mais é sempre muito tempo, então lá vinha uma nova procissão de fiéis devedores à sétima arte fazer pressão para que as dívidas fossem saldadas e o tal cinema voltasse a respirar com sua fachada de luzes cintilantes bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade. E assim se dava, e o cinema reabria. E Marlon Brando, Bette Davis, Kubrick e outros tantos voltavam também. Mas só para sumir de novo lá na frente em um quando que ninguém sabia. A data original da inauguração do cinema era matéria de mistério absoluto, só se tinha em conta que era lá pelos anos distantes embalados pela certeza de que os que hoje vivem ainda não viviam. Não tão distante dali, recostado em outra fachada, dessa vez de categoria suspeita por não haver sequer uma única luz faiscante a convidar o interesse do mais atento dos transeuntes, o ator Norberto Quadros fumava um cigarro antes do início do espetáculo. O teatro era coisa ainda mais antiga que o vizinho cinema, e se nunca havia imitado a via crúcis de exéquias fúnebres do companheiro ao lado para depois e em seguida ressuscitar glorioso aos olhos do público, era porque morria todo santo dia, sem direito a festas ou lamentações de qualquer ordem. Morria e pronto. Sem direito também a Marlon Brando, Bette Davis ou quem quer que seja. Junto com o teatro morriam os atores, espectadores, e todo o contingente de dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, sonoplastas, maquiadores e iluminadores. Talvez seja por isso que o teatro mereça sempre um pouco menos de atenção, porque as suas mortes não são estratégia de propaganda, e sim destino constante... e mais do que obrigatório.

 Bem lá, perto do entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade, e quase ao lado da fachada de luzes cintilantes, jazia quieto um teatro, que morrendo todo dia, não morria nunca.

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quarta-feira, 23 de julho de 2014

Fábulas: # O emprego do século: Produtores de Casting...


Bom dia, como representante dos Estúdios Filming & Filmes e ocupando o cargo de produtor da novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes requisito à minha rede de contatos alguém que por ventura possa indicar-me um anão cego para interpretar a personagem curiosamente de requisitos semelhantes à pessoa que procuramos, ou seja, a de um personagem anão... e cego; caso o anão – é imprescindível que seja um anão! – não seja exatamente um anão cego, mas caolho, ainda assim requisito à minha rede de contatos alguém que por ventura possa conhecer tal candidato à novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes que entre em contato comigo, representante que sou dos Estúdios Filming & Filmes no cargo que ocupo como produtor da novíssima produção, já que, informa-nos o diretor geral da novíssima produção, um anão caolho com algum talento acumulado e mediante a um rígido trabalho de preparação dramática sob a tutela do nosso exclusivo coach especializado em fomentar a verdade cênica, poderia, não sem algum sacrifício, preencher os requisitos originais pedidos, ou seja, forjar tão convincentemente uma cegueira inexistente, haja vista que trabalhamos agora com a hipótese de o anão em questão não ser exatamente um anão completamente cego, mas caolho, a ponto de convencer os espectadores - e, sobretudo, o cliente! - de que, de fato, ele, o anão, é cego, ainda que de mentirinha. Por outro lado, caso algum de vocês, formadores da minha rede de contatos, venha por ventura a conhecer um anão que não seja nem completamente cego e tampouco caolho mas dotado de um olho de vidro, peço que não repassem-me tal contado, haja vista que um anão portador de olho de vidro, informa-nos o diretor geral da novíssima produção e assessorado pelo coach, foge completamente do perfil buscado pela novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes onde ocupo o cargo de produtor da novíssima produção; e ainda que o olho de vidro seja o olho esquerdo – reparem que o que procuramos é efetivamente um anão, e fugir desse perfil está completamente fora de cogitação – não altera em nada as condições já expostas, a de que anões portadores de olhos de vidro não preenchem os requisitos mínimos para fazer parte da novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes no papel de anão completamente cego (ainda que, novamente, os caolho-anões possam surpreender, e mesmo não sendo cegos, preencher os requisitos). Inútil reforçar que caso o olho de vidro do suposto anão cego seja o olho direito pouco ou nada altera o combinado, mas, enfim, é bom deixar claro ainda assim: caso algum de vocês, formadores da minha rede de contatos, venha por ventura a conhecer um anão que não seja nem completamente cego e tampouco caolho mas dotado de um olho de vidro, o da direita o da esquerda ou ainda ambos, peço que não me repassem tal contado, haja vista que nem mesmo nosso coach, embora tarimbado nos mais exclusivos workshops da fé cênica aplicada à emoção, daria conta de preparar tal candidato para representar um anão cego na novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes onde ocupo o cargo de produtor da novíssima produção.


Grato e muito obrigado.

Conto com o apoio dos meus amigos, sejam eles anões ou não.


Obs: Aliás, algum de vocês, amigos, por ventura e azar do destino, é anão?


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terça-feira, 22 de julho de 2014

Sou uma personagem de Sartre misturada com Buñuel 
Lá fora toca uma música insuportável que me faz dançar 
Danço
O fraque que me cabe aperta, mas rasgá-lo seria insensato
Ajeito a gravata
Os convivas entopem as saídas irritando-me a paciência com suas vênias afetadas
Sou outro deles
Irritando a tantos quanto eles a mim próprio parecem querer esgotar as últimas forças 
O inferno não são os outros
Sou eu
Que consciente de onde estou
Sair não consigo

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segunda-feira, 21 de julho de 2014

Fábula: # O exemplar senhor Archimedes, representante da indústria do tabaco.


Astrogildo fumava. E Astrogildo morreu precocemente. E de tanto fumar. E de tanto adverti-lo: Astrogildo, pare de fumar senão um dia você morre, Lucrécia, mulher de Astrogildo, cansou-se. Mas no dia em que Astrogildo morreu, Lucrécia indignou-se e foi pessoalmente exigir da indústria do tabaco uma indenização pela morte do marido. Fumou porque quiseram lucrar com sua ignorância quanto aos malefícios do tabaco! E morreu! Onde já se viu? Acalme-se, mulher, disse Archimedes, o representante da indústria do tabaco, senão desse jeito a senhora tem um piripaque. E de fato houve o piripaque. E dona Lucrécia foi levada ao hospital pelo senhor Archimedes em pessoa, o representante da indústria do tabaco. E pouco puderam fazer por ela. O piripaque provou-se fatal. E lá na portaria do hospital havia um repórter, o senhor Dutra, que trabalhava numa matéria sobre o descaso da saúde aliado ao nível de insensibilidade a que chagamos. E o Dutra viu quando Archimedes, o representante da indústria do tabaco, entrava carregando a desacordada Lucrécia, viúva do recém falecido Astrogildo, no colo. E disse o Archimedes ao Dutra, o repórter, que não era parente nem nada, que só queria ajudar a mulher que acabara de desenvolver um piripaque histérico em sua presença. E o senhor Dutra emocionou-se. E bateu uma foto do senhor Archimedes, o representante da indústria do tabaco. Que foi parar na primeira página do dia seguinte. Ainda temos em quem nos escorar, dizia a matéria, enaltecendo a conduta humana e exemplar do senhor Archimedes, que vendo uma alma pedir socorro não lhe rogou virar as costas.    


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Fábulas: # Autores? Defuntem! O quanto antes: defuntem!


Uma determinada editora de categoria considerável percebera uma tática infalível para aumentar suas vendas: desovar toneladas de exemplares de autores recém falecidos. De olho nos obituários, os leitores saíam correndo de suas casas para adquirir uma cópia daquele que nunca mais escreveria, desprezando como a um tio seboso e distante que há muito prometiam uma visita, mas nunca cumpriam, os demais escrevinhadores que teimavam em continuar a viver, e, pior, escrevendo. A editora, então, objetivando exponenciar seus dividendos, propôs aos autores de vindouro destaque que, tão logo escrevessem aquela que julgariam ser sua obra prima, fossem imediatamente fuzilados, medida que teve amplo apoio por parte do público-leitor, mas, evidentemente, repudiada pelos escritores e familiares. Em meio ao impasse, a editora de categoria considerável, articulada que era com os meandros políticos, conseguiu apoio do congresso nacional e aprovou a tal lei que previa a execução sumária de todo e qualquer dono das páginas que, de acordo agora com uma junta avaliadora formada por críticos literários e professores universitários de ilibado gabarito, reconhecesse em seu conteúdo um inequívoco diamante lapidar da literatura nacional. Mediante a sanção do presidente da república, o que de fato aconteceu nos dias subsequentes, os escritores montaram protesto permanente, e, desde então e até hoje, só escrevem porcarias a troco de não verem trocadas as suas vidas por uma memória distante, ainda que de prestigio garantido e celebrado. É por essa razão, afirmam os especialistas de gola requintada, que a literatura nacional continua a patinar no limbo da decadência, só havendo vez por outra, quando um autor resolve morrer sem aviso prévio e de causas injustificáveis, uma acelerada euforia ao redor da obra daquele que, enfim, deixará de importunar os medíocres que ainda vivem.


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domingo, 20 de julho de 2014

A pior das doenças é a credulidade
Mas sem ela seria impossível inventar as coisas que não existem
Então padeço doente
Ainda que para tudo o que há
Continue
Descrente

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sábado, 19 de julho de 2014

Ou tudo vira ficção
Ou a realidade é isso
Coisa digna de ser
Desde sempre 
E para sempre
Esquecida

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Fábulas: # O desejo inútil de virarmos aquilo que quando o formos já tarde demais terá sido...


As perguntas não servem para coisa alguma. Veja se os animais, das toupeiras aos rinocerontes, interrompem o seu jeito toupeira de ser, ou rinoceronte de ser, para, uma vez com as mãos nos respectivos queixos, perguntar alguma coisa que valha a pena ao exercício puro e simples de perguntar? Donde se conclui que nós, leitores intelectuais de linhas imprestáveis e não menos intelectualizadas, somos os mais conceituados mentecaptos a flanar por essa terra generosa em subespécies de mentecaptos variados. Mas, eliminada a culpa por tantos ímpetos vazios e questionatórios, prisioneiros que somos da milenar escola filosófica do quem sou eu de onde vim para onde vou, uma pergunta ainda sobrevive em sua urgência misteriosa e em meio a tantas outras destituídas de mistério algum, sendo esta justamente a interrogação que paira ao final da seguinte frase: por que cargas d’água os velhos esperam o momento exato de ensurdecer para virarem ávidos frequentadores das salas de concerto?


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Pensam que sou o que escrevo
Sou menos que isso
Sou só as palavras
Quem as dita ainda não formou-se 
Personagem completo


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Fábulas: # O fim da personagem, o império do ator.


Um antigo personagem teatral talhado nos moldes clássicos com voz retumbante e gestos exagerados todo ele fora das fronteiras palatáveis ao minúsculo enredo da vida ordinária fora elegantemente convidado a se despedir do público que já não mais tolerava tanta esquisitice formal. Quando as franjas da cortina varreram o chão poeirento do palco colocando a nu aquela figura meio torta meio desengonçada defronte uma plateia feita de mar de cabeças banhadas pelo lusco-fusco que sobrara de um único foco central apontado para a careca daquele que prometia dizer adeus já não mais sirvo para entretê-los, ele, o antigo personagem teatral, engoliu em seco e tratou de agradecer à audiência pelos tempos de glória que havia feito dele o maior símbolo das narrativas epopéicas e espetaculares. Seu depoimento avançou de maneira tão emotiva e sincera que a maquiagem que vivia colada ao rosto derreteu, o mesmo acontecendo com a rigidez típica de suas articulações ficcionais, agora besuntadas com o fluído óleo da sensatez cotidiana, os figurinos fantasiosos adequaram-se às vestimentas típicas dos que andam nas ruas, em nada diferindo daquelas que os espectadores, também emocionados com tamanha verdade sentimental, usavam. Ao final do pequeno monólogo que sacramentava o enterro simbólico do antigo personagem, quem aparecia ao palco já não era mais personagem algum, e sim o ator, todo ele banhado em lágrimas genuínas, vertendo desejos de piedade à flor da pele. Foi generosamente aplaudido de pé, alguns até gritaram Bravo! E assim se deu a contratação daquele fabuloso interprete dos tempos contemporâneos, que arrebata multidões com charme e personalidade próprios.


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sexta-feira, 18 de julho de 2014


Ou a palavra me dança
Ou não serei eu 
A dançar
Por ela

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Quando velho
Serei um velho louco
Um velho louco 
Que dança

Essa será a minha aposentadoria 
Um despedir-se pelos pés
Daquele que engessado
Estivera
Por tantos 
Dias

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quinta-feira, 17 de julho de 2014

 
De tão concreto
Tornou-se
Invisível 

O silêncio era tanto
Que assim se fez
Audível 

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terça-feira, 15 de julho de 2014

Um dia publicarei tudo o que jamais escrevi

Porque todo o resto que já tenho escrito

Guardo comigo


O que faz o valor das moedas de ouro num velho baú

Não é o ouro em si 

E sim o baú 

Porque vive

Escondido 


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O poeta só é poeta quando desiste de fazer poesia

Ou ele é a possibilidade dos versos sem a necessidade de subjetivos infinitos

Ou padece do desejo de piedade 

De ter de dizer que ama, de querer ser ouvido, de implorar adesão àquilo que qualquer evidência desmorona com os sentidos


O ator só é ator quando desiste da personagem

É ele próprio a lidar com a crueza exposta das feridas do corpo que tem, dos limites que são ter dois braços, duas pernas, uma cabeça e tronco

E também um certo ritmo que lhe embala o coração 


Ou Hamlet dança 

Ou vira pedaço de terapia 

Distante anos luz da força que tem

Hamlet não pensa ou tem dúvidas

Hamlet é o próprio pensamento encarnado

A dúvida latejante nas extremidades aflitas dos dedos 


Aquilo que somos são fronteiras

Palpáveis

Todo o resto que nos ensinam a esconder em nome da substância geradora do 'eu' é matéria de esvaziamento consciente


Para ser alguém é urgente deixar de sê-lo 


Há que sempre recorrer a música

Ou o tocador de tuba reúne fôlego para soprar a tuba

Ou já não existe tuba

Tocador de tuba

Quiçá

Música 


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segunda-feira, 14 de julho de 2014

Não sei o que sou
Sei o que não quero ser
E nesse intervalo de negativos
Sobrevivo
Não sei se tanto mais ou menos
Do que haveria de viver
Se soubesse ou quisesse
A mim próprio 
Ver

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Profecias: # Quando as marmotas começarem a voar...



Pois espere quando as marmotas começarem a voar, disse o filósofo de profecias certeiras, ele mesmo uma capivara de olhares profundos. Desde o tempo em que os homens viraram camundongos, lotando o subsolo com suas idas e vindas tão inúteis quanto aquelas sustentadas por um par de pernas esguias dos dias já idos, a superfície ganhara novo significado. É verdade que toda a civilização construída por gerações de seres bípedes pensantes não fora nada desprezada pelos quadrúpedes, também pensantes porém peludos, aproveitando um sem número de instalações de departamentos para fazer valer a nova ordem. Os insetos, que já eram maioria quando os aparelhinhos de matar pernilongo eram vendidos aos borbotões nas farmácias e lojas de departamento, agora são responsáveis pela previsão do tempo, revoando em nuvens de formações diversas para anunciar chuva, seca, eminência de furacões e etc. O setor de imprensa aliás, desde a extinção da obrigatoriedade do diploma universitário para antas, agora sustenta-se em regime de revezamento, ora os ornitorrincos assinando a coluna semanal do setor político, ora cabendo aos avestruzes esticar o pescoço para relatar ao mundo o que anda acontecendo de novo nas pradarias geladas do norte polar, ainda que seja improvável que avestruzes possam sobreviver às baixas temperaturas, e também bastante suspeitosa a ideia de que haja pradarias no lugar de tundras, que são, evidentemente, a vegetação mais comum em regiões geladas. Pois eis que no meio de um referendo a respeito da liberação ou não da ocupação dos carrosséis para divertimento dos crustáceos portadores de concha nas costas uma família de marmotas aponta no céu e rasga os ares com uma bela faixa pendurada na cauda da marmota-mãe e cujos dizeres anunciavam: ‘Felizes dos que, ao invés de carecas, ficam grisalhos’... E desde então, por advertência das capivaras filósofas, todos passaram a olhar para cima a espera de alguma mensagem de conteúdo precioso a ser puxada por alguma marmota de asas.   



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domingo, 13 de julho de 2014

Fábulas: # A invenção do microfone...


O inventor do microfone tivera uma excepcional ideia: a de inventar o microfone. E uma vez o microfone inventado, essa ferramenta genial que amplifica aos rincões do mundo o que antes os gênios só podiam comunicar a uma reduzida fatia de pupilos aprendizes, tornando-os esses os únicos repassadores de suas privilegiadas ideias, outra questão de importante relevância se impôs de imediato: o que fazer com essa maldita invenção chamada microfone? Sim, porque uma vez que o microfone era coisa destituída de miolos e nada afeita a pensar por si só, antes sendo um treco de metal em forma de sorvete elétrico, não cabia a ele, evidentemente, filtrar os mentecaptos dos gênios, haja vista que qualquer um poderia tomar para uso próprio, tanto os gênios quanto os mentecaptos, essa incrível engenharia do sábio inventor e soltar o verbo para quem quisesse ou não ouvi-lo. E assim, no dia da inauguração oficial do microfone, houve por bem separar os mentecaptos dos gênios, e como todos queriam por razões óbvias pertencer aos últimos, uma revolução armou-se com conseqüências funestas, cada um defendendo o seu direito de pertencer aos aclamados de QI invejável e denunciando os vizinhos como portadores da mais aguda mentecapície endêmica. No final das contas o microfone, entre mortos e feridos e o único isento de opinião, permaneceu incólume em sua altivez acéfala, o único a louvar o fato de não precisar convencer a ninguém da sua imutável e amplificada dignidade de caráter.


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sábado, 12 de julho de 2014

O paraíso é um lugar vazio

A própria ausência faz do paraíso

Um paraíso 


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Fábulas: # Outro fim para Hamlet...

Um determinado filósofo contemporâneo que havia se dado conta de que tudo o que se pergunta hoje é exatamente aquilo que se perguntava nos tempos de Sócrates resolveu escalar uma montanha altíssima e lá de cima atirar-se ribanceira abaixo. Caso não dissesse nada depois disso, advertira ele, que o esquecessem! Seu silêncio seria a prova definitiva de que a verdade não é coisa afeita a perseguições interrogativas.

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Fábulas: # O sábio fim de um jornal.


O jornal de reputação ilibada, depois de esgotado o seu manancial de assuntos sérios e de interesse coletivo, encontrou a única e retumbante notícia que até então fugira dos seus quadros investigativos, tratando imediatamente de estampá-la em letras privilegiadas logo na primeiríssima página:

“O pior dos mentirosos é aquele que corre feito louco atrás da verdade.”

Não havendo mais pautas possíveis, o jornal, então, deixou de circular.


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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Fábulas: # O Fim da carreira de um idiota...


Um auditório resolvera abrir as portas somente para idiotas, e foi então que se deu a inauguração do primeiro auditório exclusivamente dedicado aos idiotas e cujas apresentações ficariam a cargo de artistas reconhecidamente idiotas, bem como a plateia, tão idiota quanto, que excluía das suas cadeiras qualquer um que fosse dotado de alguma faculdade mental distante da idiotice presumida. Pois eis que sobe ao palco um contador de piadas idiotas e num rompante de seriedade imprevista dirige-se aos idiotas espectadores jogando-lhes diretamente na cara: seu bando descarado de idiotas imprestáveis! Rapidamente retirado de cena pela brigada de seguranças idiotas, o impetuoso artista idiota tivera então a sua carreira de idiota encerrada ali, haja vista que ser idiota compreendia também mentir sobre a própria idiotice, ou, pelo menos, não sair por aí proclamando-a aos ventos, e, muito menos, acusar os outros daquilo que todos sabiam possuir e insistiam em esconder.



É matéria da inteligência assumir-se idiota, ainda que à multidão a honestidade quase sempre signifique uma idiotice imperdoável.

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Fábulas: # O Fazedor de Banquinhos de Madeira...



Lá na casa de número dois da rua X morava um Fazedor de Banquinhos de Madeira. Fazia banquinhos como ninguém. Quem precisasse de um banquinho de madeira bastava bater na porta lá da casa de número dois da rua X que mediante a um justo pagamento a empregada Olívia, assistente do Fazedor de Banquinhos de Madeira, entregava ao requisitante um exemplar desse produto primoroso ao qual todos rendiam homenagens quando necessitavam se sentar para descansar o lombo, ler os jornais, ou fazer crochê com fios de lã. Pois um dia uma estudante de nome Clotilde passava pela rua X tirando fotografias com a sua máquina digital e capturou o Fazedor de Banquinhos de Madeira espreguiçando-se no seu terraço no intervalo entre seu laborioso ofício artesanal. A foto foi publicada no dia seguinte no jornal do bairro logo abaixo do título de capa: ‘Fazedor de Banquinhos de Madeira espreguiça-se ao sol’. Imediatamente todos passaram a conhecer o tal Fazedor de Banquinhos de Madeira a quem todos sabiam existir, mas não pelo rosto que agora viam, e sim pelos banquinhos de madeira, indiscutivelmente os melhores banquinhos de madeira de toda a região.  Uma multidão formou-se então debaixo do terraço do Fazedor de Banquinhos de Madeira para esperá-lo sair de sua casa e poder vê-lo, com sorte,  espreguiçando-se ao sol. Bastava o Fazedor de Banquinhos de Madeira dar as caras para que todos lá debaixo berrassem: ‘Vejam lá o Fazedor de Banquinhos de Madeira! Viva o Fazedor de Banquinhos de Madeira!’. Uma emissora de televisão resolveu entrevistar o Fazedor de Banquinhos de Madeira em sua própria residência, perguntando-lhe as coisas mais diversas tais como: como é ser o melhor Fazedor de Banquinhos de Madeira da região e até mesmo o prato de comida preferido daquele que indiscutivelmente era o melhor Fazedor de Banquinhos de Madeira de toda a região. Com a popularidade em alta, o Fazedor de Banquinhos de Madeira não abandonava o seu ofício de fazedor de banquinhos, mas dividia o tempo entre ser o Fazedor de Banquinhos de Madeira e fazer os tais banquinhos de madeira, que agora, quando feitos, não vinham tão bem acabados quanto antes, chegando mesmo a quebrar quando alguém resolvia descansar o lombo, ler os jornais, ou fazer crochê com fios de lã. O tempo passou e hoje a casa de número dois da rua X é ponto de peregrinação para os curiosos que querem chegar perto dessa figura ilustre que se tornou o Fazedor de Banquinhos de Madeira, e se é verdade que já não são mais feitos banquinhos de madeira com tanta frequência– e quando o são desmontam ao menor apoio – ninguém parece importar-se, e tampouco o próprio Fazedor de Banquinhos de Madeira, que se não faz mais Banquinhos de Madeira, ganha a vida sendo o Fazedor de Banquinhos de Madeira que ora ou outra aparece no seu terraço para espreguiçar-se ao sol, aclamado aos urros: ‘Vejam! O Fazedor de Banquinhos de Madeira!!!’


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