segunda-feira, 30 de abril de 2012



Tenho horror a tudo quanto é comunidade, seja ela para o bem ou para o mal – na verdade, uma comunidade que faz jus ao termo rema sempre para o bem, o que a torna ainda mais maléfica e perniciosa. Desconfio de toda aglomeração de gente que luta por causas “justas”, encampando o discurso de que o homem pode se tornar um ser melhor e escapar da sua sina original de bárbaro-assassino. Todos mentem. Um grupo, por melhor que seja seus atributos, começará a mentir tão logo se sinta ameaçado – e os dois únicos papéis desse enorme teatro são precisamente esses: o do bandido e o da vítima. Um grupo sempre assume o papel da vítima, são canalhas disfarçados. O verdadeiro bandido age sozinho, se tem capangas é para mais tarde os trair. O bandido é o canalha de carteirinha, o canalha verídico, sem medo de ser canalha. Não me chame para nenhuma passeata na Paulista, não vou, acorrento minhas pernas na geladeira e quero ver quem é que me arranca de lá. Nem que a mãe esteja na forca - prefiro eu mesmo colocar um capuz de ninja e com minhas próprias mãos cortar a corda do crime -, saio de casa pra gritar com um bando de gente na rua: “ÃE, ÃE, ÃE, LIBERDADE PARA MINHA MÃE!”.  Mudamos pouquíssimo, ou quase nada, desde os tempos das cavernas – talvez a rede de fast-food nos tenha dado maior facilidade para abocanhar o javali que antes marretávamos com nossas claves de madeira, mas termina por aí. O que corre nas nossas veias é a mesma sede primitiva de vingança, crime, sexo e poder, com a única diferença que agora nos vestimos bem, escrevemos bem e até nos escondemos atrás de computadores para divulgarmos pensamentos lógicos e bem comportados que visam sempre e acima de tudo o bem alheio. Mentira e mentira das grossas. Nunca fomos tão cínicos, os cínicos da autoestima, os cínicos do politicamente-correto. Confesso que pulo de satisfação quando vejo os escândalos de corrupção sendo deflagrados nos noticiários – esses bandidos dignificam nossa natureza, assinam embaixo do nosso contrato e, no fundo, despertam em nós uma admiração homérica, cada um de nós desejando estar no lugar desses facínoras que ousaram mandar uma banana para essa hipocrisia do cidadão-de-bem. Sou um Robson Crusoé perdido no caos das comunidades urbanas, crente de que o homem só pode se salvar na sua solidão de bandido. Prefiro ser sincero comigo e assumir minha canalhice do que me esconder no anonimato da comunidade, exigindo uma pureza que, infelizmente (ou felizmente) ninguém dessa nossa raça possui.

sexta-feira, 27 de abril de 2012



O que é admirável na anta é a sua sinceridade. As antas são sempre sinceras, diria mais, translúcidas, de uma pureza espectral de fazer inveja ao mais fino cristal. As antas nunca dissimulam - não teriam talento algum para serem atrizes! -, antas não são capazes de vestir o bigode de vilão ou saltitar como mocinhas ingênuas pelas pradarias campestres. Não! Antas são antas e continuam antas no mais alto grau de dignidade antal! Ponto final. Tive a oportunidade de conhecer uma genuína anta, era uma anta da espécie anta-secretária que tem por hábito viver na aba do chefe, ele espirrava, lá estava a anta com um pacotinho de lenços perfumados. Um dia, escrevi num bloquinho a palavra 'contemplados', em referência a uma dúzia de ouvintes - eu trabalhava numa emissora de rádio na época -, que haviam sido sorteados com um par de ingressos para um tal concerto na Sala SP. Foi a anta bater o olho na palavra do tal bloquinho para brilhar os olhos e sair trotando feliz pela redação: 'contemplados!', 'contemplados!' 'contemplados!'. Pois é... a anta acabara de conhecer uma palavra de composição ultra-complexa e não economizava circunstâncias para empregar a nova aquisição do seu vasto dicionário mental: 'Por obséquio, o senhor gostaria de ser contemplado com um cafezinho?', 'Perdão, mas a faxineira já contemplou o lavabo com um par de rolos de papel higiênico?'... e por aí vai. Nesse dia, lembro-me de todos os funcionários estáticos, todos plateia daquele espetáculo deslumbrante de sinceridade protagonizado por uma legítima anta, anta que era incapaz de maquiar sua burrice colossal!




O ator mente, o ator é cínico, um canastrão de filme de faroeste, veste bigode de vilão e faz careta de inocente arrependido, contamina os outros e a si próprio com sua canastrice homérica, rola de rir com seu despudor desmedido a ponto de mandar uma banana para a realidade, o ator inventa em escalas exageradas, ultrapassa o limite do bom senso e do verdadeiro para inaugurar seu universo de princípios metafísicos, o ator é um alquimista de cinema-mudo, explode o laboratório e faz criar novos elementos. O ator é um inventor, um explorador que não se contenta com solos já habitados, o ator cria, inaugura, não tem e não deve ter qualquer responsabilidade com o verossímil... o ator é inverossímil, impossível e improvável, tudo isso por principio, desejo, necessidade e urgência!