Incapaz de viver o fim, resolvi daqui mesmo de onde estou,
bem no meio de algo que não me foi convidado a participar, acenar para o ponto
em que tudo se encerra. Desejo ver e saber que espécie de epílogo é esse que me
aguarda lá na frente. Que cor será que tem? Há algum cheiro no fim? Um cheiro
de fim só meu, será que há?
Mas que empreitada difícil essa! Não poderia de forma alguma
ser sincero na imagem daquilo que decreta a minha não mais existência. Imagem
não se vê, menos ainda se consegue tocar, só se forma para depois sumir,
deixando quem se imagina numa falsa sensação de imortalidade. E o corpo, por
existir de fato, some sem voltar; já a matéria do que sabemos falso, nem
matéria é, desaparece e volta quando bem quiser...
Por não habitarem corpo algum, as poesias são eternas, não
padecem como os poetas, esses sim, corporificados pela carne de seres
semelhantes aos de todos os outros. Que diferença faz ser um pedreiro ou um
poeta quando o porto de chegada desova os dois no mesmíssimo país dos
derrotados? Talvez essa seja a maior angústia do poeta: trabalha com os vapores
do eterno, para ele próprio sumir atrás do que deixou viver...
Foge-me à precisão acertar num alvo que mal reconheço os
contornos, e a distância que nos separa só pode ser cumprida com flechas
vaporosas de mentiras. O que é a poesia senão o esforço mentiroso por evitar o
fim, esse sim real, cru, e, sobretudo, verdadeiro?
Estou no meio. Que diabos de meio é esse, impossível de
voltar atrás para o começo daquilo que começaram por mim, paralisado na
terrível certeza de que avançar não é uma escolha, mas um fato trágico,
infinitamente menos poético do que qualquer trajetória de herói grego?
‘O mundo é um palco’... nunca uma metáfora me pareceu tão
áspera. Noutros tempos, encarava a mesma sequência de palavras como um belo
convite à fruição passageira da vida, um pacote de férias que sabemos não durar
para sempre, e que por isso mesmo nos enche de ânimo para sorver cada gota do
conjunto de paisagens estrangeiras. Hoje, vejo essa mesma sentença como... ia
dizer outra coisa, mas acabei por sorte dizendo tudo: uma sentença! Sentença não
dessas sentenças literárias, mas sentença das de morte.
‘O mundo é um palco’ virou o tapete que conduz o condenado
até o patíbulo da forca, cumprindo cada passo na certeza de que as pegadas
impressas serão não por muito tempo a única marca que o seu autor pôde deixar
para trás enquanto ainda sabia-se vivo.
Quando a matéria morre, todo o resto morre junto, e por mais
que hajam poetas para trabalhar na dimensão do que não existe, basta deixar de
existir para que o próprio poeta já não possa mais trabalhar. Quanta coisa
delibera-se na abstração poética da vida, evitando o que ela é de fato: uma
presença palpável que apodrece aos poucos, e sendo o seu fim o menos enfeitado
dos instantes.
De que forma experimentar o fim? Seria ele um estalo, um
segundo e pronto... acabou? Ou uma interminável e sofrível viagem até o
desligamento por completo das funções mentais e vitais? Talvez eu devesse
falhar nas letras que se seguem nessa minha escrita, numa proposital
interferência imaginativa da impossibilidade de se continuar a escrever... ao
invés de dizer isso, dizer aquilo sem querer, e sofrer por não mais poder ser
aquilo que gostaria de dizer.
Meu Deus! Quem inventou esse negócio chamado vida? Quem
seria maluco de assinar o contrato dessa coisa toda caso suspeitasse
minimamente das cláusulas funestas a que iria ter de sustentar? Eu não
assinaria nada, nem aqui e nem na China! Preferiria não ter nascido...
(...) e aqui vivo no intervalo entre o começo e o fim, passando
o tempo com os dedos atados a uma poesia que será esquecida, e para o bem de
mim, que daqui a não sei quantas páginas já não mais estarei a serviço de rima
nenhuma... simples assim. Ponto final.