segunda-feira, 31 de março de 2014
quinta-feira, 27 de março de 2014
Sentir que nada sente
Sentindo a impossibilidade de sentir
Eis a condenação do ator
Não é ele sentimental naquilo que ao coração compete
Mas sensível demais para dar conta de preencher o que aos outros chega como genuíno sentimento
O que é verdade para o ator é a mentira do mundo
A sua própria dificuldade em ser alguém que não um fingidor
E esse sofrimento já lhe basta
Vive no intervalo
Na constante impossibilidade de completar-se
É da natureza do ator ter alma vazia
É ele descrente
Quando chora com um olho
Ri com o outro
Piscando sempre de esguelha
Desejando que não houvesse desenvolvido esse olhar afiado
Que o impede de ser
É isso:
Fosse o ator alguém
Sentiria a delícia de poder sentir
Não sendo ninguém, ainda sente
Mas a beleza de não poder nunca
De fato
Existir.
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quarta-feira, 26 de março de 2014
segunda-feira, 24 de março de 2014
Discursos emblemáticos feitos através dum microfone de alcance necessário para efeitos de repercussão pública: # A besta-fera que dormita por debaixo dos vossos pés...
Senhoras e senhores, tomo um instante da vossa atenção nesse momento de aparente calmaria para comunicar que um monstro dormita por debaixo dos vossos pés. Monstro cujo bafo já foi sentido há algum tempo por nossos ancestrais, eles sim, vítimas contumazes do monstro que agora dormita por debaixo dos vossos pés. E, sabendo por conclusões efetivas que ele está aqui, porque isso é fato inconteste senhoras e senhores: há de fato esse monstro, todo ele feroz e ávido por despertar de seu cochilo invernal para vos atacar sem qualquer misericórdia ou sentido de respeito, é dever nosso, primeiro: saber que ele existe, ele, o monstro, e, posteriormente, tendo a absoluta consciência de que o que dormita por debaixo dos vossos pés está longe de representar uma figura de linguagem ou metáfora construída para vos deixar arrepiados de medo, enfim, cônscios de que a coisa está lá, ou bem aqui, por debaixo dos meus pés e dos vossos também, feroz e amortecida temporariamente, roncando em um intervalo que não sabemos o quanto irá durar, engendrar portanto, senhoras e senhores, todos os esforços possíveis e cabíveis para que o monstro mau, senão morto e escalpelado por cada uma de vossas corajosas mãos, ao menos permaneça na situação tal qual agora, nesse exato instante em que nos comunicamos, se encontra: dormitando tenazmente por debaixo dos vossos pés. Agora, volto a dizer - porque é importante que se diga quantas vezes seja necessário se dizer (esse assunto é de urgente demanda, senhoras e senhores!) - se ele, o monstro em questão, não vos é visível nesse exato momento em que nos comunicamos, é justamente porque ele (ora veja, evidência mais do que loquaz e irrefutável, senhoras e senhores!), é porque ele, como já bem o dissemos, dormita, e dormitando está e permanece, e bem debaixo dos vossos pés, é isso o que vos digo: é da natureza desse monstro sumir por debaixo da coberta da vida, o que não significa que ele não exista, já que a sua invisibilidade é mais uma estratégia do que outra coisa... e se digo o que digo é porque havemos de descobrir uma maneira de não acordá-lo, porque uma vez desperto, senhoras e senhores, não queriam saber do que esse tal monstro que dormita por debaixo dos vossos pés seria capaz de perpetrar contra essa calmaria, ou aparente calmaria, em que todos nós podemos nos dar ao luxo de frequentar por esses breves e rarefeitos intervalos de paz. E ainda que ninguém nunca tenha visto esse monstro desperto, só os nossos ancestrais o tiveram enfrentado em tal condição, é de minha responsabilidade alertar-vos da sua existência, e, senhoras e senhores, saibam também que qualquer recusa de vossa parte por considerar essa inconteste evidência: a de que o monstro invisível existe e está lá, ou aqui, bem debaixo dos vossos pés (e do meu também), significa corroborar ou até mesmo atiçar a besta-fera a voltar do seu sono reparador para que, assim como houve por registro um dia – sabe-se lá quando -, ele, o monstro, ganhe o aval de agir como agiu: matando, explorando, seviciando cada um dos nossos pares que em épocas remotas sofreram nas garras dessa entidade nefasta que hoje, agora, descansa tal qual um vulcão, misterioso em quando haverá de por em prática a sua nova e bastante possível futura investida. Pensem nisso, senhoras e senhores, e muito obrigado por vossa prestimosa atenção.
(Aplausos)
Fim da transmissão.
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sexta-feira, 21 de março de 2014
quinta-feira, 20 de março de 2014
Pontos Turísticos de Visita Obrigatória - # O telefone da cabine telefônica debaixo da marquise cuja sobreloja há muito estava abandonada...
Havia uma cabine telefônica debaixo de uma marquise cuja
sobreloja há muito tempo estava abandonada. E dentro da cabine telefônica havia
esse telefone que diariamente e sempre no mesmo horário tocava três vezes. Eram
exatas três campainhas estridentes. Todas elas bem audíveis e sempre
desprezadas. Quando o mendigo Silas esboçou uma vaga intenção de se aproximar
da cabine telefônica em uma das ocasiões consagradas pelo ressoar do aparelho,
alguém lhe gritou ao longe que era não só ridículo como também mais do que
risível que alguém se dignasse a querer falar com um mendigo maltrapilho através
de um aparelho de telefone, portanto, que ele deixasse de frescura e seguisse
seu caminho. E foi o que ele fez. E como tudo o que se repete tem a admirável
propriedade de se tornar um hábito, ainda que estejamos falando da mais
estúpida das recorrências, o telefone junto ao seu pedido nunca atendido virou
um marco fundamental para a rotina daqueles que marcavam território no
perímetro alcançado pelos seus decibéis. As três campainhas diziam claramente
para Adamastor, o padeiro, que era hora de recolher a fornada de pães, assim
como significava um decisivo puxão de orelha para que Clotilde, a fiadeira,
acordasse de seu sono profundo, todo ele encaixado no intervalo que antecedia
ao toque do telefone que ficava dentro da cabine telefônica debaixo da marquise
cuja sobreloja há muito tempo estava abandonada. E lá se podia avistar a porta
da Dona Maricota se abrir para mais um passeio com o seu vira-latas sem nome,
ambos sábios de que o telefone era um amigo que vinha advertir sobre a tão
esperada hora do dia em que se podia esticar as quatro patas por aí, no caso do
vira-latas sem nome, e as outras duas pernas gordas, no caso da Dona Maricota. E
eis que um dia, quando tudo parecia organizado para que a existência não mais
incorresse em imprevistos de nenhuma espécie, um forasteiro cujo nome ninguém nunca
soube socorreu ao pedido proibido e até então protegido com tanto esmero. Sua agilidade
em apanhar o fone do aparelho falou mais alto do que o entendimento da
iminência daquele gesto inapropriado. Silêncio. Todos miravam com o ar preso na
garganta a figura estática do forasteiro dentro da cabine telefônica que ficava
debaixo da marquise cuja sobreloja há muito tempo estava abandonada, esperando
decifrar no seu rosto a mensagem que lhe vinha sabe-se lá de onde. Depositou o
fone no gancho e seguiu seu caminho. Nada disse, nada comunicou com gestos o
que acabara de ouvir. Desde então o telefone nunca mais tocou, mas ainda
continua lá, dentro da cabine telefônica, a mesma que ainda aparece debaixo da
marquise cuja sobreloja, parece, em
breve voltará a funcionar.
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quarta-feira, 19 de março de 2014
Tive azar em muitas coisas
Em nascer onde não quis
No tempo que não escolhi
Debaixo de um sol que inspiração nenhuma me traz...
Mas sorte essencial também eu tive
De vir ao mundo quando o predicado maior é sumir!
Tive a sorte de vir ator
Enquanto todos os que me cercam
Teimam em existir -
Personagens é o que são! -,
Eu desapareço por entre as sombras
Sem desejos maiores
Senão
Fingir
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Às personagens presto homenagem
Esse cortejo de fantasmas sem mãos com que apertar
Gente que por preguiça de aparecer ainda assim aparece
Mas num capricho de conveniência admirável
Numa perfeita economia de equação ausente de metafísica
Quando são, são
Nada pela metade
Nada de rodeios ou subterfúgios que justifiquem sua importância!
São desimportantes! Não rogam desejos de permanência
De nossa parte, nós a elas invejamos
E sendo fiéis a figurinos empolados
Vestimos sem saber a aparência da verdade!
Crentes sem nada ser, cremos que somos!
Elas não, as personagens
São mentiras e pronto
Sem fingimentos!
E quando cansam, desistem de ser
Simples assim
Sendo somente um instante em que por aqui puderam ter com que se haver
Uma lembrança de potência que nós, condenados pelo fardo da carne
Reverenciamos...
Quisera eu poder cumprimentá-las
Pensando bem, melhor não
Que permaneçam ausentes
Em sua perfeição!
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quinta-feira, 13 de março de 2014
Pontos Turísticos de Visita Obrigatória - #A Esquina do Ajuntamento...
A Esquina do Ajuntamento é aquele cotovelo urbano formado
pelo entroncamento espontâneo entre as ruas Deixa Disso e Não Há de Ser Nada,
batizando um curioso polo magnético de atração responsável por cooptar qualquer
pessoa, seja ela um pobre diabo ou alguém gabaritado nas artes da
intelectualidade, para o centro dos seus domínios, que compreendia um pequeno
bloco de concreto elevado, uma ilha de cimento, justamente no ponto em que a
Deixa Disso cumprimentava com a Não Há de Ser Nada, mas que, uma vez unidas,
uniam também quem pelas redondezas se aventurasse. Pois foi o que aconteceu com
o pipoqueiro Josias, que ao passar com o seu carrinho pelas fronteiras já
citadas, imediatamente sentiu-se no dever de abandonar seu ganha pão de
rodinhas e montar território na ilha de concreto, ficando lá, sem nada fazer, a
olhar o ritmo sem sentido da cidade onde não escolhera nascer. Cena essa,
porém, igualmente compartilhada e executada, senão da mesmíssima forma, também
com a mesma gana e ímpeto, pela cabeleireira Moira, que fizera cair alguns bobs
da própria cabeça no instante em que saiu correndo sem qualquer motivo aparente
e bastante desvairada – diria quem a visse! - para se juntar ao pipoqueiro Josias,
ambos agora dividindo a ilha de concreto, dois náufragos fincando bandeira
nesse ínfimo terreno ao qual habituou-se chamar de Esquina do Ajuntamento. E lá
foram eles dois, Josias e Moira, a circular o quarteirão em passos ritmados e
decididos após aquele instante de hesitação típico dos únicos momentos sinceros
que nos escapam a nossa fingida qualidade humana, pois era justamente essa a
regra imposta peremptoriamente pela Esquina do Ajuntamento: uma vez ajuntados,
seus correligionários saiam numa breve passeata pelos entornos do quarteirão,
e, ao voltarem ao ponto de partida, ou seja, na intersecção da Deixa Disso com
a Não Há de Ser Nada, cada qual retornava ao que estava fazendo antes de
haverem sido abduzidos pelo campo magnético daquele curioso cotovelo urbano. E
assim a coisa foi aumentando de tamanho, com cada vez mais gente imantada
àquela extravagante experiência de não se saber o porquê de tanta aptidão para
se cheirar o sovaco do vizinho, mas que, importante dizer, ganhava também ares
de poesia reivindicatória, já que na medida em que o número de sócios da causa
crescia, as passeatas tornavam-se mais barulhentas e, com o advento das frases
de efeito – coisas do tipo: ‘o povo unido jamais será vencido’ -, a Esquina do
Ajuntamento configurou-se como um importante polo sindical do que quer que
seja, mesmo quando não havia sindicato algum para representar. Em meio a
pancadas e bandeiras flamejantes, houve quem arriscasse a se vestir com
figurinos espalhafatosos, exatamente como o fez o atendente de telemarketing
Clóvis, fato que ficou gravado na história como o início dos desfiles das
escolas de samba, porque imediatamente depois de Clóvis, o atendente de
telemarketing, muitos outros pegaram carona nessa singular prática de gritar,
marchar e se mostrar com plumas e paetês, havendo, inclusive, uma natural
estratificação entre aqueles que desfilavam, ou seja, os atores, e os outros,
aqueles que sabe-se lá porquê raios do destino receberam o direito de julgar
quem era mais bem preparado para fazer jus ao asfalto em que se pisava. Ocorre
que foi desse período de efervescência da Esquina do Ajuntamento que se
noticiou a primeira investida agressiva de um bando inconformado com a massa
sapateadora, fato que gerou uma pancadaria sem precedentes, entrando para os
anais da cidade como a inauguração da força policial, órgão hoje muito atuante
em toda e qualquer esquina, não só a Do Ajuntamento. Pois assim se deu e assim
continua a funcionar: caso esteja flanando publicamente, saiba que a coceira
que lhe der em algum lugar do corpo, clamando sua adesão para o comparecimento
em qualquer parada que possa haver, tal comichão de engajamento público é fruto
disso que começou lá atrás com o pipoqueiro Josias e a cabeleireira Moira, num tempo
em que a Não Há de Ser Nada encontrou-se sem querer com a Deixa Disso,
produzindo sem ambição maior esse famoso bloco elevado de concreto de material
altamente sedutor, coisa sem precedentes, e até hoje visitada como o primeiro
lugar de muitos outros, onde os homens tomaram por direito e dever o sentido de
sair por aí batendo os pés, ora para festejar, ora para gritar, ora para não
fazer outra coisa senão isso: se ajuntar e pronto acabou!
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segunda-feira, 10 de março de 2014
Lembro-me de poucas datas
O tempo é em mim matéria estagnada
Quando recordo, paraliso
Quando antevejo, imobilizo
Só existo no presente
E mesmo esse que me detém sem que eu queira deter-me
Custa a andar
Fico
Como construir memórias
Se o que sou termina antes que eu entenda-me como tal?
Sou ator
Meu maior personagem sou eu mesmo
E por isso padeço
De sempre ser isso
Que nunca vejo...
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sexta-feira, 7 de março de 2014
Havia um ator superarticulado
De tudo falava um pouco, e com que propriedade!
Cerrava o cenho para assuntos graves
Quando perguntado sobre a crise na Criméia, respondia
Um ator de bagagens múltiplas!
Sabia ser simpático, extrovertido e duro quando precisasse
Reservava o timbre mais doce para fazer rir
Aveludava o discurso quando exigia seriedade
Enfim, nosso ator era pau para toda obra
O único senão era fazê-lo fingir
De tanto esgotar seu repertório de fantasias pelas beiradas da vida
Ao abrir das cortinas, enfraquecia
A bem da verdade, a sua própria imagem sumia
De tanto gastá-la nas esquinas
Seguido por tantos holofotes
No palco, nosso ator tornava-se transparente
Nada atraente
Todo ele cansaço
E cansados também os espectadores pareciam
Abrindo enormes bocejos ao menor sinal da sua insossa presença
Enfim, essa é a história do ator que passou a vida tentando ser interessante
E como conseguiu
Perdeu toda e qualquer poesia...
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