sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Espelho, espelho meu, há alguém mais Suzana do que eu?


Suzana Vieira nunca esteve tão bem interpretando o papel de Suzana Vieira. Desde a propaganda do sabão Ipê – "Dúvida porquê [tchu ru ru], sabão é Ipê" – venho acompanhando de perto o desempenho da atriz, que a cada trabalho avança no desafio de interpretar a si própria. Em "Cinquentinha", Suzana aparece com admirável desenvoltura no papel de Suzana Vieira, uma atriz decadente com ares de Tchutchuca que não poupa a garganta para provar ao mundo o quanto é importante.

Depois de sair de uma temporada nas páginas de fofoca, incluindo uma escala no departamento de crises conjugais, parece que Suzana conseguiu amadurecer ainda mais a sua qualidade artística ao conferir veracidade impressionante a sua Suzana Vieira da minissérie de Aguinaldo Silva. Bravo Suzana! Não há ostracismo ficcional que a impeça de brilhar. Uma vez Suzana, sempre Suzana.

A bem da verdade, é preciso aplaudir de pé o exemplo de Suzana. Difícil nos dias de hoje encontrar no meio das celebridades alguém que se preste a tamanha entrega. Suzana não se poupa: abre a sua casa para as câmeras de TV, solta gritinhos nos programas da emissora a qual pertence, discorre sobre os mais variados assuntos, desde sexo até política, sempre terminando com o seu tema preferido: Suzana Vieira por Suzana Vieira. Tudo sem perder o rebolado que só a Suzana consegue ter.

Se você ainda não viu a Suzana na minissérie, corra! Ainda há tempo. Caso venha a perder essa breve oportunidade, não há motivos para grandes preocupações. Basta lembrar da Suzana que pisou não sei quantas vezes no estúdio do apresentador Faustão para receber o troféu de melhor Suzana da TV; ou então aquela Suzana que fez a retirante nordestina de nome Suzana numa novela igual aquela outra que veio antes dessa que está em cartaz; ou então, folheie as páginas de alguma revista de bastidores da fama que Suzana estará lá para lembrá-lo de Suzana.
Para os fãs de Suzana, boa notícia! Boatos ganham força de que Suzana já estaria em avançadas negociações para participar da nova produção do próximo folhetim do horário nobre. Suzana interpretaria Suzana, uma trambiqueira que se apaixona por José Mayer, um galanteador de cabelos grisalhos. A emissora ainda tenta convencer José Mayer a interpretar José Mayer, mas, pelo andar da carruagem, o ator deverá pedir uma trégua para desacansar a imagem, já que José Mayer ainda está interpretando José Mayer na atual novela das 8.
Depois de uma carreira consagrada, premiada por tantos papéis marcantes, será que Suzana ainda tem algum desafio a provar com o seu talento?
Uma abelhinha contou-me qual seria a apoteose dos desejos ainda não realizados de Suzana: o de interpretar irmãs gêmeas na telinha: Suzana e Suzana. De acordo com Suzana, esse é o maior desafio para o ator: interpretar ao mesmo tempo duas personagens radicalmente diferentes, uma com o caráter de Suzana, a outra com o temperamento de Suzana.
Alguém duvida? Quando o assunto é Suzana:
"Dúvida porquê [tchu ru ru], sabão é Ipê".

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Abate de um Elefante - George Orwell





"Muitas vezes me pergunto se alguém percebeu que fiz o que fiz unicamente para evitar parecer um bobo."



Ouçam o áudio - gravação da crônica: "O Abate de um Elefante", de George Orwell - organização: Daniel Piza

O mistério com os dias contados.




Venham poetas, arautos do desconhecido,
comandantes da nau sem rumo,
navegadores de um mar escuro e irrequieto.


Venham poetas, com os seus bravos gritos nos advertir,
inglórios cidadãos, prostrados sob um arremedo de vida,
tristes cavaleiros das certezas iluminadas.


Venham poetas, inundar de dúvidas as astúcias antes proclamadas,
encobrir com o véu da imaginação as estátuas e os monumentos.

Venham poetas, brindar-nos com mistério e assombro.



Ouçam o áudio!
Gravação de uma crônica de Guy de Maupassant / tradução de Noemi Moritz Kon.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sobre gatos, homens e lobos





A razão da infelicidade humana, trauzida em forma de angústia, não está na ignorância, mas sim na total incapacidade dos humanos em ouvir o mundo, desejando dele tão somente aquilo que o instante não nos oferece. Mais do que qualquer manual de erudição, são os animais aqueles a quem devemos nos dedicar, observar e aprender.


Ouça o áudio! Gravação do texto de João Pereira Coutinho, na Folha de SP (Ilustrada) - Março de 2009:
Existem momentos em que fico horas a olhar para o meu gato. Com inveja, sempre com inveja. Só Deus sabe o que existe na cabeça de um felino. Mas acompanho as rotinas dele e sei, filosoficamente falando, que ele é feliz.

Nós, humanos, seres temporais por excelência, vivemos aprisionados à idéia do nosso próprio fim. E, como se não bastasse essa terrível condenação, somos também incapazes de habitar casa momento inteiramente. O presente, em nós, está sempre carregado de passado e de futuro: do que fomos, das memórias que temos, do caminho e das escolhas que fizemos; e daquilo que gostaríamos de ser, ou ter, ou fazer. O presente, para nós, não é um lugar para estar. É uma breve passagem a caminho de outra breve passagem. Sempre e sempre e sempre até a despedida final.

Por isso, aconselho: se quiserem entender a natureza da felicidade, comprem um gato. E acompanhem a forma como ele cumpre as suas rotinas com entrega contida e total. Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição: de objetos, experiências, lugares. Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.

Um gato ajuda a entender tudo isso. Mas um livro publicado recentemente reforça a ideia. Confesso: comprei o livro sem expectativas numa livraria do aeroporto de Heathrow, em Londres. Só o título despertou a curiosidade: “The Philosopher and the Wolf: Lessons from the Wild on Love, Death and Happiness” (o filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade; Granta, 246 págs.). Não é manual de filosofia “ligeira”. Longe disso. O livro de Mark Rowlands é uma mistura erudita de experiência pessoal e reflexão metafísica, em que Nietzsche, Heidegger e Camus têm participação direta.

Ponto de partida: certo dia, o professor Rowlands leu anúncio no jornal. Alguém vendia lobos por U$500. Rowlands entrou na aventura. Horas depois, a casa estava destruída pelo novo hóspede, de nome Brenin, que não poupou a mobília e as cortinas.

Primeira lição: um lobo não é um cão. E, nos 11 anos seguintes e após treino apertado, Brenin foi a companhia do professor. Em casa. Na rua. Em viagem. E até nas aulas, para espanto de colegas e alunos: enquanto o professor dissertava sobre Platão e Aristóteles, o lobo dormitava ao seu lado. As aulas terminavam com um uivo. O livro de Rowlands é uma descrição pessoal de tudo isso: da relação idiossincrática de um homem com um lobo. Mas o livro de Rowlands oferece-se essencialmente como uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.

Impossibilidade? Precisamente. A modernidade ofereceu-se aos homens como projeto de construção secular. Por meio da Razão, seria possível conquistar a “sorte” que tanto afligia os gregos e realizar na Terra o que a cristandade medieval apenas prometia par ao Reino dos Céus. A felicidade seria uma construção individual e progressiva rumo a um fim determinado.

Paradoxalmente, essa idéia libertadora apenas trouxe o seu reverso: se a felicidade era responsabilidade nossa, a infelicidade também. E, adicionalmente, se a felicidade era convertida em projeto, ela seria igualmente convertida em insatisfação interminável: jamais estaremos onde queremos estar; jamais seremos o que queremos ser; jamais teremos o que queremos ter. A felicidade moderna converteu-se numa vigília permanente: a vigília de homens insatisfeitos; de homens esmagados pelos seus próprios ideais de felicidade e perfeição.

Viver com Brenin ensinou a Rowlands essa crucial diferença entre homens e animais: nós vivemos mergulhados no tempo e nas nossas próprias teologias pessoais. E a forma como desejamos sempre momentos que são posteriores ao momento presente impede-nos de viver qualquer momento de forma real e total. A infelicidade humana não nasce da nossa ignorância ou da nossa imperfeição. Muito menos da ignorância ou da imperfeição das nossas sociedades. A infelicidade humana é um produto da nossa específica temporalidade.

Resta uma questão final: serão os homens superiores aos animais? A resposta de Rowlands talvez seja a mais honesta: depende do que entendemos por “superioridade”.

Sim, um lobo jamais pintaria o teto da Capela Sistina. Mas será a Capela Sistina uma necessidade para um lobo? Ou, pelo contrário, será antes uma necessidade para nós? Uma forma de completarmos a parte que nos falta das várias partes que nos faltam?*


* João Pereira Coutinho – Ilustrada (Folha de SP) – terça feira, 31 de Março de 2009.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A Valsa dos Porcos



A VALSA DOS PORCOS, peça radiofônica inspirada na obra de George Orwell, A Revolução dos Bichos.

PRÓLOGO – Uma voz quebra o silêncio. Não há efeitos sonoros, apenas e tão somente uma personagem que não tem nome, ou qualquer outra característica que lhe atribua caráter.

VOZ:
Caro colega ouvinte. Peço a sua licença para lhe contar como me tornei um imbecil. Se prestar um pouco de atenção verá que a minha história não difere muito da sua, o que me leva a concluir que tanto eu como você formamos, juntos, dois dos legítimos representantes da raça dos imbecis. Não sou seu colega e muito menos imbecil, você responderá. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto. Eu era, assim como você, um daqueles que levantava a voz contra o poder. Refutar uma voz de comando não era difícil, confortável até certo ponto, e fazia render saborosos tapinhas nas costas. A proporção era simples: a medida em que a coragem crescia o fã-clube aumentava. Não, definitivamente não foi essa atitude que nos privou de adentrar para o rol dos imbecis. Assumir a figura do explorado, do pobre funcionário resignado pelo berro da injustiça, é o extremo oposto e o passo decisivo para alcançar o estado da imbecilidade plena. Não é preciso dizer que ambos, eu e você, demos as mãos também nesse quesito. É verdade que há aqueles que mal percebem tudo isso e que fazem questão, seja por qual razão for, de postarem-se bem debaixo dos impropérios dos arrogantes. Estes também são imbecis mas pelo menos não sabem que o são – sei que você há de concordar que a ignorância a respeito da própria imbecilidade é uma benção. Não é o nosso caso. Se você continua comigo até esse instante é porque ambos, eu e você, compartilhamos do grupo que carrega a consciência como um fardo. Sempre fui correto, exemplar até. Aluno de excelentes notas, desde cedo aprendi a cumprir da melhor forma possível o que me era solicitado. Os bons empregos no tão sonhado mercado de trabalho foram conseqüência, encher os bolsos de dinheiro uma questão de tempo. É verdade também que aquela centelha de bravura, típica dos espíritos juvenis e inconseqüentes, as vezes insistia em arder silenciosa no meu peito como uma advertência surda de que “aquilo não estava certo”. Rapidamente notei que bater de frente com os burocratas imbecis era o mesmo que assinar o meu diploma de perdedor. Como, nessa altura do campeonato, já não podia me dar ao luxo de encarar a vida como um artista que depois do fechar das cortinas não sabe se no dia seguinte haverá espetáculo, resolvi fazer uso da minha formação imbecil para tornar-me o quanto antes um verdadeiro imbecil de carteirinha. E eis que aqui estou, respirando o mesmo ar que você, enxergando as mesmas coisas que você, ouvindo as mesmas coisas que você. Como é gratificante repousar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila de que os cadarços percorreram corretamente os furinhos do sapato. Que sapato é esse? Não me pergunte, eu apenas passo os cadarços pelos furinhos, essa é a minha função. Depois de um tempo com o carimbo oficial de imbecil estampado na testa notei que não havia vergonha ou mal algum em ser imbecil. Afinal, em alguma medida todos o são. Talvez você me compreenda melhor porque a sua imbecilidade é semelhante a minha mas, acredite, há tanta imbecilidade no mundo que ser imbecil já não é privilégio para poucos. Tornou-se comum, nada surpreendente. E aí é que está o perigo. Eu e você não somos desequilibrados. Desequilibrados sempre existiram e estão por toda a parte. Nossos subúrbios tranqüilos pululam de pastores, reitores e catedráticos dispostos a disseminar suas sandices para cinqüenta, duzentas, mil pessoas – depois esse mesmo Estado que se serviria deles sem pestanejar como forma de se auto suster os esmaga como mosquitos empapados de sangue. Esses homens doentes não são nada, e se deixam seus nomes marcados na história não é por mérito próprio. Nós somos os responsáveis, os amarradores de cadarços, pessoas comuns, pessoas ingênuas de caráter e imbecis por falta de opção. Homens imbecis como eu e como você, eis o verdadeiro perigo, funcionários silenciosos da indústria da mediocridade. Sem o nosso exército dos imbecis, esses loucos dissonantes não seriam mais do que fantoches desarticulados. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você. E, se não está convencido, inútil prosseguir. Você não entenderia nada e se aborreceria, sem lucro nem para você nem para mim. Como a maioria, eu nunca pedi para me tornar um imbecil. Se pudesse, teria optado por algo sublime, algo que engrandecesse meu espírito, talvez a música. Sim! A música!*

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O BANQUETE.


Recostou-se no balcão da lanchonete depois de haver pagado com moedinhas a sua única refeição desde o café da manhã, o chefe não permitia mais de 30 minutos de almoço para os estagiários, preferia, então, aproveitar a deixa para mostrar serviço. Não aprovava em nada a conduta dos outros que lutavam desesperadamente para engolir uma coxinha no menor tempo possível.

O molho estava apimentado demais, curiosamente mais apimentado que nos dias anteriores... excessivamente quente, pelando... e apimentado.

Foi no segundo anterior ao primeiro mordiscar de seu suculento cachorro-quente que Maria Clara ouviu os primeiros uivos ao longe.

“Pu-taaa! Pu-taaa! Pu-taaa!”

A princípio não imaginou que o coro de lobos famintos fosse suplantar o seu feroz desejo de enfiar goela abaixo aquela salsicha besuntada pelo mais surpreendente molho apimentado.

Mas o verdadeiro tempero picante daquela noite estava ainda por vir.

Maria Clara, moça tímida e recatada, aluna dedicada do 1º ano do curso de sociologia, aproximou-se da murada do terceiro andar, ainda sob os movimentos maxilares da abocanhada inicial, a tempo de ver a multidão que se aglomerava no pátio central.

19:45. As aulas ainda não tinham começado quando, vestida para a guerra, Soraia chegou. No percurso até a sala de aulas resolveu passar em revista a matilha de quadrúpedes que a mirava, em especial na altura das coxas avantajadas. Seu arsenal era de botar inveja a qualquer exército inimigo:

Calibre de 20 anos, fuzil de um metro e setenta, com cartuchos loiríssimos esticados e granadas verdes. Conjunto brindado com um par de pernas nuas com pelinhos oxigenados à vista, escultura emoldurada em um salto 15. O veículo: um tanque moderníssimo da marca mini-saia rosa-choque.

Enquanto os lobos pingavam saliva, as maritacas empoleiravam-se nas amuradas, algumas arriscando vôos rasantes:

“Ela veio provocar”

“Ela andava rebolando”

“Deixou cair uma carteira de propósito, só para ter de se agachar”

“Aquilo não é roupa de vir à faculdade”

Maria Clara reconheceu Soraia, sua companheira de lotação, intimidade, se não completa, conquistada na única ocasião em que dividiram o mesmo banco do coletivo. Pretexto mais do que suficiente para Maria Clara tomar conhecimento de assuntos gerais, tais como: qual curso cursava, ano... e outros banais, como a preferência da garota por chicletes tutti-frutti.

Acuada no banheiro feminino, Soraia viu-se surpreendida por mais de 30 rabos de saia que tentavam a obrigar a vestir uma calça comprida, reação imediata ao desaforo estampado nas faces dos seus namorados ou pretendentes. Atitude mais do que natural, afinal, quem não se sentiria tentado a trocar um fusca 66 com a funilaria por fazer por uma Ferrari do ano?

O ciúme as alimentava de uma inveja indecente e inconfessa de estar no lugar de Soraia.

Enquanto a pólvora queimava, os aliados ganhavam terreno, avançando na frente oposta:

"Ela sempre anda assim, de um jeito ousado."

"Ela faz esse estilo mulherão mesmo."

"Ela é avantajada, sim, e daí?”

"É uma vergonha para a escola ter alunos assim. Parece que esses caras nunca viram uma mulher."

20:00hs. A faculdade inteira havia desistido da idéia de substituir o circo medieval pelas aulas de história, o mofo dos livros não podia competir com o teatro ao vivo – uma chance única de experimentar a bestialidade na sua forma mais concreta.

Por alguma razão, sabe-se lá qual seja, alguns professores – hábeis comandantes na artilharia motivacional, engrossaram coro com a matilha de lobos, o que acabou por abrir o apetite, inclusive dos seguranças e funcionários da instituição.

Agora todos babavam por Soraia.

“Pega ela! Vamos estuprar!”

Vendo que a guerra poderia descambar para a chanchada, o diretor agarrou o telefone e alcançou sem demoras a delegacia de polícia. Em menos de 15 minutos os PM’s – corajosos defensores da ordem e da moral – tratavam de enxugar a saliva dos famintos.

Soraia, até então protegida em um bunker batizado de “sala de aulas”, local propício ao enobrecimento do espírito, saiu escoltada pelas fardas dos soldados da paz. Quando Soraia passou, escoltada, na frente da sala dos professores, uma docente fez questão de sair. Com uma careta, perguntou: "É essa a fulana?".

Na catraca da escola, sempre sob a escolta policial, Soraia viu entre os que a agrediam uma menina com o celular na mão, fotografando a sua vergonha. Maria Clara, a mesma menina recatada que pegava diariamente o mesmo ônibus que Soraia, estufava o peito ao atacar:

“Putaaaaa!”

Na beirada da boca de Maria Clara, fronteira de união entre o lábio inferior e superior, podia-se ver uma mancha vermelho escura. O molho ainda úmido escorreu pelo rosto da garota até formar uma gota vacilante que teimava em decidir pelo queixo ou pelo chão. Quando finalmente atingiu o solo tornou-se uma lembrança, lembrança logo esquecida de uma refeição não consumada.... e apimentada.


Roteiro radiofônico escrito por Francisco Carvalho. Novembro, 2009.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Da arte de arrotar depois de haver empanturrado o bucho.




Ainda acometido por efeitos narcotizantes, recorro ao computador para tentar traduzir em palavras aquilo que para mim representou uma das experiências estéticas mais deslumbrantes que tive a oportunidade de vivenciar.

Convido humildemente os senhores, sóbrios leitores, a compartilhar desse meu processo de retorno à normalidade, estado que espero alcançar até o último ponto final.

Peço ainda perdão aqueles que, por alguma razão, desconfiarem da minha sinceridade nesse relato, se incorro em algum exagero naquilo que me proponho a tornar público, peço que relevem tal extravagância como sendo a evidência de minha dificuldade em filtrar as imagens das minhas impressões no papel. Vamos a elas.

Ligo a televisão numa manhã e antes que possa preparar o meu café, refeição que normalmente divido com os apresentadores de um programa de esportes, percebo que é o canal distraidamente acessado pelo controle remoto que prepara uma novidade para o meu apetite.

O programa é o “Hoje em Dia” da Rede Record, protótipo de revista de entretenimento e jornalismo. Impossível não esquecer o estômago quando uma torrente de gritinhos e soluços lacrimoniosos compete com as torradas e cereais. Comemorava-se o aniversário da senhorita Cris Flores, uma das apresentadoras da atração. Durante exatas duas horas, tempo em que consegui me manter em jejum – o programa deve ter perseverado por outras tantas refeições dia adentro, imagino - assisti em rede nacional a mais absoluta exposição vaidosa que jamais imaginei um dia poder compartilhar.

Em uma espécie de maratona de homenagens, que incluía desde charadas e adivinhações, até desafios dignos de tirar o fôlego – a pobrezinha da apresentadora chegou a ser coagida a atravessar uma passarela içada por um guindaste até as alturas -, todas as câmeras permaneciam atentas para entrar em ação ao menor registro dos traços fisionômicos da jovem comportada que, naquele instante, poderiam se desmanchar em lágrimas de gratidão. Coitadinha. Depois do bravo esforço de andar nas nuvens – atentem que para subir na vida é preciso sofrer – Cris Flores foi arrebatada pela notícia de que havia conquistado como recompensa, das mãos do seu diretor de programa, uma VIAGEM PARA A DISNEY COM O SEU FILHINHO PEQUERRUCHO!

Técnica:
ENTRAM OS VIOLINOS.

Câmera 1: Zás!
CLOSE NO ROSTINHO RECHONCHUDO DO FILHINHO SORRIDENTE DA CRIS FLORES.

Corte para:

Câmera 2: Zás!
AGORA CLOSE NA APRESENTADORA QUE SE DESMORONA EM SOLUÇOS DE GRATIDÃO:

Cris Flores: MEU FILHINHO NUNCA FOI PARA A DISNEYYYY.... SNIF, SNIF, SNIF.

A donzela Cris Flores desdobrava-se em agradecimentos aos seus companheiros de emissora, revelando a sua emocionante trajetória de vida – sofrida, é claro – até alcançar os louros da fama, isso tudo dentro de um programa que prima diariamente por afagar os egos das próprias celebridades que desfilam nos diversos horários da grade de programação da Rede Record – a quem aborrecer tal conduta basta mudar de canal ou ir reclamar com o bispo.

Tive a sensação, ao enxugar as lágrimas de Cris Flores, de vestir um jaleco branco e, com minhas mãos protegidas por luvas cirúrgicas, perscrutar cada cavidade da apresentadora com instrumentos afiados que meu código de moral impede especificar. O meu espanto com tamanha extensão vaidosa impedia-me de me sentir constrangido. Às vezes ria, confesso, com gargalhadas de um escárnio assustador.

Em meio ao apagar das velinhas pensei comigo mesmo: não seria eu também um artista vaidoso que privilegia a minha satisfação pessoal a despeito de qualquer responsabilidade social? Não seria eu mais um dengoso apresentador que espera ansioso pelo rasgar dos violinos a anunciar o quanto sou importante para o mundo? Também não quero eu prevalecer em rede nacional como mais um sofredor que ganhou a vida?

Qual é a responsabilidade de um artista? Parece-me que não é possível mais acreditar em uma inocência juvenil, aquela que nos absolve de uma conduta ativa frente ao tamanho marasmo em que a humanidade resolveu aportar. É preciso e necessário remar para a revolução. Inútil dizer que esse movimento de revolta não é aquele que encontra grandes novas soluções, engendradas em novos modelos salvadores – não é de ibope que precisamos, nem de novos apresentadores sedentos por novos filões de audiência. Basta um espelho capaz de refletir a nossa própria barriga estufada, prenhe de um arroto prestes a sair, depois de havermos empanturrado deliciosamente o bucho.



Escrito por Francisco Carvalho. Outubro, 2009.

domingo, 20 de setembro de 2009

POR QUE?


A distância estreita que separa a vida da morte, o som inaudito de um silêncio que respira por um suspiro terminal, quantos são aqueles capazes de viver de braços dados com a terrível imagem da sua própria derrocada? Um passo em falso e o abismo se abre, corajosos equilibristas que das alturas olham para baixo, anjos tropicantes que gozam da desproporcionalidade de um mundo sem sentido.

Medalhas expostas no peito frondoso dos que preferem o chão às alturas. Basta tocar as nuvens para fazer retinir o ruído oco de meia dúzia de metais fundidos.

Corajosos equilibristas que buscam as nuvens, etéreas formações de compostos inapreensíveis.

Monumentos da arrogância triunfal transformam-se em palco do espetáculo que não cobra ingressos. Olhem para cima! A pequenez daquele que desafia a vida está alojada no mais íntimo recanto dos caminhadores terrestres.

Bendita sois vós, nuvens, que do silêncio celeste abençoa e nos preenche com a nossa mais profunda insignificância de cada dia.

E por que? Para que?

Não há "porquês", somente ação: um pé depois do outro, e lá embaixo o abismo. Caminho sem volta.

Escrito por Francisco Carvalho, à 1 da madrugada do dia 21 de setembro de 2009.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

MANIFESTO


Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que produz consensos, mas aquela que trabalha na contramão do aceitável.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que conforta, mas aquela que se impõe pela arrogância consciente, grito de protesto contra a voz uníssona dos elegantes mastigadores de uma vida temperada por teoremas e fórmulas degustáveis.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que fala esperando por uma resposta, mas aquela que pela força da sua articulação emudece qualquer possibilidade de entendimento.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que constrói caminhos, mas aquela que sem pedir permissão abala as estruturas apreendidas pela tradição da falsa moral, produzindo becos sem saídas.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que alimenta, mas aquela que pela carência de nutrientes esgota a saúde de quem a absorve, transformando a força de um organismo em uma massa precária de órgãos desarticulados.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que ilumina, mas aquela que acende chamas para produzir sombras e reivindicar o retorno a um saber inapreensível, terreno ainda distante das soluções ególatras dos doutores da academia.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que é ouvida em alturas melódicas que apaziguam as tormentas do espírito, mas aquela que fere os tímpanos dos afinados, transformando os timbres celestiais em berros agonizantes de um homem desamparado em um universo de forças aterradoras.

Meu instrumento de resistência é a palavra, não a que termina com um ponto final, mas aquela que tem a coragem de permanecer incompleta, companheira de reticências desconhecidas

...

Escrito por Francisco Carvalho, terça feira – 15 de setembro de 2009, às 2:00hs da manhã.

terça-feira, 9 de junho de 2009

COMUNICADO DA ANPD - AGÊNCIA NACIONAL DE PROTEÇÃO A DEMÊNCIA:



Senhores, em plena época em que o mundo morde os lábios por conta da gripe suína (A/H1N1), outra infecção de cunho ainda mais devastador infiltra sorrateira pelas membranas cerebrais de vítimas desatentas. O “modus operandi” da contaminação pelo novo vírus, batizado pela sigla “$$$$$$$”, ainda não pôde ser completamente desvendado, mas, o que se suspeita, é que haja um vetor de transmissão criptografado em forma de mensagem de computador, como a que se segue abaixo. Recomenda-se a imediata vacinação de todos os cidadãos. Para tanto, é necessário uma incursão a um Centro da Inteligência Humana mais próximo da sua casa. Depois de esterilizar a região da testa – local de proliferação da bactéria “medíocres ganâncius”, a injeção já poderá ser espetada sem maiores incômodos para o cidadão.

Vetor de contaminação – como age o novo vírus e o contra ataque dos anticorpos:


I)VÍTIMA DESPREVENIDA:
“Trala La La La.... ups”

II) O ATAQUE:
“Olá desculpe a invasão,
Meu nome é Tatiana Gonçalves, sou produtora de Casting da S Model Agency de São Paulo – SP.
Sou responsável pela seleção e treinamento dos novos modelos da agência.
Tomei a liberdade de enviar este e-mail para fazer um convite depois de verificar a sua foto no orkut.

Gostaria muito de poder falar com você sobre esta possibilidade.


Segue o site da empresa, meu contato e os vídeos do youtube.
Muito obrigado e mais uma vez desculpe a invasão.
aguardo seu retorno em breve!”

III) A TENTATIVA DE RESISTÊNCIA – Mamãe: “Filho, nunca fale com estranhos”:
“Ahãn”

IV) A MUTAÇÃO VIRAL E O NOVO ATAQUE:
“Desculpe a demora p responder... O modelo não é só aquela pessoa q desfila... Que tem q ser alta... Magérrima... q tem q ser novinha. Mesmo pq idade nos tempos de hoje é mto relativo, as pessoas se cuidam mais, e a idade acaba n aparecendo mesmo! Fora o tratamento que hoje existe nas fotos. Existem modelos passarelas, comerciais, tipos, etc. Hoje em dia há uma infinidade de produtos à venda, e para isso na maioria das vezes é necessário um modelo para ajudar na venda desse produto. Pode ser uma Gisele Bunchen, como um perfil do baixinho da cerveja kaiser. Modelos tem idades variadas de zero até... Perfis variados...Modelos hoje tem tatoo, usam aparelho sim! Às vezes, o modelo n tem altura, mas tem um rosto lindo, um sorriso cativante, corpo definido, um cabelo legal, mãos bonitas. Por isso que seria interessante vc acessar o site para ter uma idéia da nossa estrutura, o q vc acha? E tb o legal disso tudo é q essa área n vai atrapalhar na rotina de ninguém, vai apenas complementar. Vamos agendar uma entrevista sem compromisso p essa semana? Temos um horário amplo e trabalhamos de 2 a sábado. ABs. Ah, Vc fez o cadastro no site?”

IV) A VACINA AGINDO NO ORGANISMO:
“AIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII”

V) A PURGAÇÃO:
“Muito grato, Tatiana,
Mas o meu corpo, mente e espírito, sejam eles segmentados para valorizar as partes mais adequadas para vender o seu tal produto ("mãos lindas! Que pés atraentes! olhe que cabelo desgrenhado! Vejam que rapaz simpático! O esquisito também vende!") ou até mesmo o meu conjunto completo de manequim a la Paulo Zulu, infelizmente tudo isso não está na prateleira a serviço desse shopping center de varejo. Ops, agora vejo! Corpo, mente e espírito? Não precisa tanto talento, seria caro demais, só o corpo dá conta do recado - e olha que eu não uso aparelho nos dentes, mas se precisar eu ponho, tá? Ainda acredito que existem caminhos mais construtivos (e divertidos) do que se prestar a esse comércio de futilidades. Tenho total convicção de que a publicidade é uma das razões pela qual tudo é tão descartável - principalmente o cérebro pessoas - nos tempos atuais. Agenciar outras cabeças pensantes para se reunir a esse clube me parece o mais dos desgraçados ofícios que alguém poderia escolher. Desculpe a sinceridade, e bom serviço!

Francisco,

obs:
ah! Ainda não fiz minha inscrição no site!”

terça-feira, 19 de maio de 2009

a desculpa das engrenagens.


Quando se é o responsável por lubrificar as engrenagens de uma pequena fração de uma máquina ainda maior, é fácil e conveniente abrir concessões para tornar o próprio ofício um meio seguro de se ter benefícios, mesmo que para isso o funcionamento geral sofra conseqüências diretas, percebidas de imediato ou nem tão evidentes assim.

As poucas porcas que são desatarraxadas pela esperteza não carregam de pesar a consciência do fraudador, há muitas vantagens em se posicionar como o funcionário de algo maior, invisível pela complexidade e distante de qualquer significação íntima, pessoal. O que é íntimo, nesse caso, é a habilidade de articular circuitos ocultos que tem como função saciar a fome de quem os construiu. É preciso sobreviver, diriam os pragmáticos.

Quando se aceita a posição de operário de algo maior, recebe-se como troco o valioso salvo conduto de agir sem pensar em nada maior do que o próprio umbigo. É preciso tomar coragem de chegar até a alavanca que comanda toda a máquina para então empurrá-la com as próprias mãos. É quando se chega à posição de chefe da maquinaria que toda a ação, mesmo aquelas mais ínfimas, passa a reverberar sensivelmente na própria alma de quem as ousou perpetrar.

Finalmente não há nada mais a esconder, não há espertezas, atalhos ou falcatruas. Há somente, e tão somente, ação visível – seja para o bem, seja para o mal. Antes fazer o mal às claras do que praticar a esperteza autopiedosa às escondidas. É o silêncio da autopiedade que envenena de ferrugem as engrenagens de qualquer máquina e suja de graxa as mãos do autor.

Aqui a evidência é clara e a esperteza não pode ser mais confundida com fraude, mas como um modo de agir, passível de julgamento.

É preferível e aconselhável arriscar-se ao julgamento do que permanecer na graxa anônima. É justamente por aproximar as ações do próprio espírito – por tomar as rédeas da grande engenhoca - que aquele que comanda as ações evita os circuitos autopiedosos para buscar um olhar mais amplo. O espírito não é egoísta como o é a matéria. O “é preciso sobreviver” dos pragmáticos, agora é substituído pelo breve e mais significativo: “é preciso viver”.

Escrito por Francisco Carvalho, às 22h10min de terça-feira, 19 de maio de 2009.



FILOCTETES:

Neoptólemo:
(...) antes cair jogando limpo, a tornar-me um porco vencedor.

Odisseu:
Quando era rapazote, eu também tinha a mão ativa e a língua preguiçosa. Mais calejado, vejo que é a língua, e não a ação, o que se impõe aos homens.

(...)

Neoptólemo:
Não vês na farsa um golpe que rebaixa?

Odisseu:
Não, se dela resulta a salvação.

Neoptólemo:
Mas com que cara falas disso às claras?

Odisseu:
Quando vislumbro o lucro, nunca hesito.

Trecho da tragédia “Filoctetes”, de Sófocles.

domingo, 17 de maio de 2009

A poesia e a simplicidade.



O bolo sem cobertura é o que mais agrada ao meu paladar.

A paisagem mais bela, para o meu gosto, é aquela que apresenta a natureza em sua absoluta simplicidade e força: um barquinho distante envolvido por um oceano de infinitas proporções, uma única árvore solitária rodeada por um campo cujos limites não se apresentam a nossa curiosa visão.

A música de Beethoven interessa-me mais do que a de Bach porque o autor da nona sinfonia preenche de sons os silêncios de suas pausas. Enquanto as melodias de Bach produzem um balé carregado de emoções e sentidos, é no silêncio que é possível escutar o que Beethoven tem a dizer sobre a alma humana. É na ausência das notas musicais que a música se faz viva. O silêncio é musical.

A poesia mais verdadeira, para mim, é aquela que não precisa ser sublinhada, aquela que ganha vida pela secura das palavras, pela objetividade crua que a motiva. As lágrimas não cabem ao artista, a ele resta, tão somente, a beleza da articulação singela das palavras.

O recheio não me interessa porque ele indica o gosto que eu, como espectador, gostaria de formular.

A aridez, a simplicidade, o vácuo, são estados de altíssima poesia, alcançados somente pelo mais absoluto despojamento. Uma força que se faz presente pela ausência, pela incompletude.
DESPOJAMENTO:




Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei velas copos guardanapos
e a música





Bani a inutilidade do discurso





Na mesa de madeira
nua
apenas dois pratos
brancos
sem talheres





O banquete será tua presença




Poema de Ivo Barroso.



Escrito por Francisco Carvalho. Domingo, 17 de maio de 2009, às 17hs


quinta-feira, 14 de maio de 2009

As benesses da impertinência


Por que me sinto cada vez mais um sujeito impertinente? Que sensação de inadequação é essa que quase sempre alimenta o meu espanto para com o mundo dos homens?

Se a minha impressão é verídica, se constitui uma falha de caráter ou até mesmo uma qualidade do meu espírito, não faço idéia e pouco me interessa investigá-la dentro de qualquer perspectiva ética ou moral. Aliás, essa prática que elege o julgamento como ferramenta de identificação do que é modelar ou condenável também me parece cada vez mais questionável. Aqui também sou impertinente, você poderia dizer.

Agora me lembro que já fui acusado, certa vez, de encarnar o gênio romântico. Um Werther sofredor que, desiludido com a humanidade, trancafia-se numa torre de marfim e olha para si próprio como único representante de um ideal já extinto.

“Oh Céus, Oh vida”, já diria a hiena melancólica do desenho animado.

Encontro uma resposta, mesmo que incompleta, para a minha impertinência. Sou impertinente porque duvido. Se tivesse a oportunidade de servir como réu em um tribunal regido por um fictício panteão de Deuses e a mim fosse perguntado o que penso a respeito da raça a qual pertenço, responderia da seguinte maneira:

Não glorifico os homens, nem tampouco os condeno por suas atitudes, apenas reservo o direito de duvidar do que dizem.

Se no início a minha consciência foi povoada por certezas e convicções, hoje identifico claramente que caminhar para a velhice é, para mim, um percurso trilhado pela via da interrogação. Com direito a paradas incertas que conduzem a um comportamento de resistência.

Mas como duvidar que a raça humana, em sua grande maioria, assina embaixo do tratado feito em homenagem as tartarugas de Galápagos?

A “camaladagem” humana – termo criado por mim para enaltecer a perspicácia do camaleão em mudar de cor para manter-se vivo – reside na sua enorme capacidade de desenvolver o cinismo como arma de defesa.

A seleção natural preserva os cínicos, os espertos. Quem nunca viu na televisão aquele pássaro que prefere alocar o seu ovo no ninho de outra espécie para que o rival crie o seu rebento sem que ele dispense qualquer esforço para isso? Oh grande filósofo e profeta da humanidade: Charles Darwin.

Duvidar é dar um passo atrás, promover uma interrupção no fluxo da normalidade, recusar a adaptação. É uma posição de evidência, mas também de muito perigo. A chance de perecer rapidamente é grande.

Comecei a duvidar das grandes soluções: de um Deus salvador, de um regime político ideal, de um emprego impecável... e acabei empregando a mesma atitude nas coisas mais simples da vida. O cotidiano, acreditem, é um terreno tão fértil em cinismos adaptativos que é perfeitamente possível reconhecê-los como os alicerces das grandes soluções. E, com um pequeno exercício de impetuosidade, não é difícil desmontá-los com alguns petelecos.

Quanta audácia! Quanta impertinência! Remar contra a corrente! Evitar o inevitável!

Não penso que eu seja parecido com o Werther de Goethe, mas gosto da comparação com a hiena. Depois das lamentações - “Oh céus, oh vida” - o bicho do desenho animado desata a rir, numa gargalhada fabulosa.

Como é fabuloso viver entre os homens, cínicos apaixonantes. Mais apaixonante ainda é assumir o risco da impertinência, porque embora seja uma posição sempre arriscada – e os riscos são muitos – não há ângulo melhor para rolar no chão de tanto rir.

Escrito por Francisco Carvalho às 23:43; quinta-feira / 14 de maio de 2009.

terça-feira, 12 de maio de 2009

A 8ª praga do Egito.


Um enxame.

Identificar o que são? Impossível.

A única coisa visível é a nuvem, densa formação de partículas indecifráveis.

Os contornos falam a mesma língua, denotam uma certa característica comum que impede qualquer tentativa de diferenciação. Uma massa de zumbidos inaudíveis.

A nuvem começa a se formar através da abertura de um estreito funil, toma forma rapidamente como no movimento de uma represa que rompe a barragem sem pedir permissão. Em instantes a tempestade já está armada.

Cada qual protegendo o seu grão de pólen, precioso prêmio da labuta diária. Não há nada senão movimento, enxurrada de reflexos condicionados.

Os atalhos mais concorridos somem de vista. São como insetos que, guiados por algum sentido aguçado, sabem exatamente para onde seguir sem prestar atenção aos lados.

Uma praga.

Qualquer resistência é abafada, não há voz, não há silêncio, não há nada senão movimento que arrasta, arrasa.

Sem sobras.

Devastação.

Ó Pai dos Pais, engendrador supremo, será que resta alguma dúvida quanto à natureza da 8ª praga do Egito? Aquela criada a partir da tua imagem e semelhança?

Relato de um dia no metrô de SP, escrito por Francisco Carvalho, às 22:26 de quarta feira – 12 de maio de 2009.

domingo, 10 de maio de 2009

Ah que saudades, grande Diderot!


Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Aquele que entrava em cena pelos trilhos da inteligência e aquecia os nossos corações com sua performance da humildade.
Aquele mesmo que ao encharcar as mãos de sangue nos olhava de soslaio – sem que percebêssemos – para perguntar em silêncio se a tragédia que contava chegava até nossos espíritos.

Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Fiel representante de uma arte que a cada dia se esvai na torrente de lágrimas enquadrada pela tela plana das televisões de plasma. Ainda se o palco estivesse a salvo de tamanha inundação!

Pobre Shakespeare! Onde foram parar os corajosos artistas contadores de história? Por que será que virou crime o exercício do ator que, despido de vaidade, se dirige de cara limpa para a platéia?

Muitos são aqueles, ó pai do século das luzes, que condenam o seu ator por insensibilidade ou, ainda pior, por falta de entrega ao ofício. Será que não percebem que essa pedra de gelo cabe muito mais aos auto-piedosos do que aos inteligentes?

Ah, grande formulador das enciclopédias! Como ensinar que soluços e engasgos não são atalhos confiáveis para a arte recriar a experiência da vida? Como esclarecer que o seu ator torna-se vivo aos nossos olhos justamente por optar pela incompletude – distante da onipotência daquele que chora para impressionar aos outros e a si mesmo?

O seu ator, ó grande Diderot, não arma gatilhos emocionais como ferramenta para glorificar o seu talento – aí está o que chamo de vaidade e, inclusive, egoísmo. Seu ator, ó Diderot, espera na absoluta ignorância o contato com o público para a partir dele estabelecer um espaço de construção criativa. A criação da verdadeira arte se dá entre o ator e o espectador. Eis um exercício de humildade carregado da mais alta dose de sensibilidade e emoção.

O ator vaidoso chora para mostrar como é virtuoso, nega o espectador como elemento criativo e se encerra em uma redoma de auto flagelação. Não será esse, ó sábio Diderot, aquele que merece o título de homem de gelo? Impenetrável em sua particular sofreguidão?

Os tempos são outros, saudoso Diderot, parece que hoje até mesmo uma lista telefônica torna-se matéria prima para os nossos atores encherem os olhos de lágrimas. Antes de compreenderem para que número estão discando despejam em jorros seus rios lacrimosos esperando do interlocutor um outro soluço de compaixão.

Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Aquele que fazia da mentira um exercício de prazer. O mesmo ator que dava as mãos a sua personagem para apresentá-la a nós, curiosos espectadores. Saudades de Shakespeare que divertia-nos como nunca ao mostrar o quão fantástico é viver em um mundo articulado por títeres invisíveis, ou talvez visíveis até demais.

Que paradoxo é esse, ó grande Diderot, que estimula as pessoas a arrancar de algum lugar uma verdade, custe o que custar – verdade? Que verdade? – sendo que esse mesmo esforço não produz mais do que um leque imenso de novas mentiras?

Oh, Diderot, quantas saudades!

Escrito por Francisco Carvalho. 10 de maio, às 14hs.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Prólogo para um vizinho egoísta


Eis, amigos, aquele que por pura perspicácia pulou para o lado do legislador, aquele que aproveitou da conveniência para depositar confiança no outro que outrora ignorava.

O asfalto que hoje pisa, moeda da benevolência, é o motivo da sua gratidão. Antes a poeira do descaso, hoje o negrume acético, guardião do bem-estar.

Eis, amigos, aquele que ostenta o jardim defronte a sua casa, o mesmo que fora adubado pelo esterco dos interesseiros e que hoje interessa a narinas merecedoras. E ele o fez por merecer.

Eis, amigos, aquele que é teu vizinho, sujeito de língua ímpar, engolidor das salivas da ética e portador do broche da boa moral.

Eis, amigos, nosso ventríloco da justeza, defensor daquele que existe para lhe dar o verbo.

Eis, amigos, o nosso maior representante: o homo-hipócritas.

AVE HOMO-HIPÓCRITAS.

Tu, homo-hipócritas, que praguejas interjeições nefandas sobre tua pobre sorte nesse mundo em que habitas,

Tu, homo-hipócritas, que desejas uma justiça menos cruel capaz de tornar tua existência menos imprestável nesse mundo de espertos,

Tu, homo-hipócritas, que fazes uso de teu maxilar para mastigar com nojo e revolta os impropérios alheios,

Tu, homo-hipócritas, que nascestes para exigir teu direito de navegar por águas calmas e doces,

Tu, homo-hipócritas, que trajas o manto imaculado da erudição, adornado pelas pérolas da boa conduta,

Tu, homo-hipócritas, que elegestes o líquido da temperança como fluído vital a percorrer por tuas veias azuis,

Tu, homo-hipócritas, que recusas o palanque por temer ou duvidar do som que amplifica tua angústia,

Tu, homo-hipócritas, que encontras respaldo na fortaleza das instituições sagradas, no berço da família e nos tijolos do saber acadêmico,

Tu, homo-hipócritas, que labutas para lamber o suor do sacrifício como honra ao mérito pelo teu sofrimento,

Tu, homo-hipócritas, que diriges teu olhar ao chão em busca de um terreno só teu,

Tu, homo-hipócritas, que agradeces ao asfalto terreno sem se dar conta do escuro sombrio que engendra o firmamento estrelado,

Tu, homo-hipócritas, é apenas mais um, aquele ao qual compadeço e chamo de irmão.


________________________


escrito por Francisco Carvalho; quinta feira, 7 de maio de 2009, às 1:12 da manhã.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Por que eu prefiro a inadequação?


"Conhecem a história do menino que pediu ao pai para lhe mostrar uma floresta?

O pai concordou, e, quando chegaram o pai perguntou se o menino avistava a floresta. Admirado, o menino disse:

- Vejo, mas são tantas árvores que não consigo ver a floresta.

Quando se tem tanta árvore alinhada de um lado a outro, já não se vêem as árvores. Vê-se outra coisa que transmite um outro conceito. Penso que se pode ter a mesma impressão quando há muitas pessoas juntas. Também elas perdem a própria individualidade e tornam-se massa e se conservam juntas por causa de seu interesse social. Nessa situação, as pessoas concentram-se unicamente em torno de seus interesses coletivos, tornam-se maravilhosas como protagonistas de um movimento social, mas não possuem nenhuma individualidade. As pessoas podem pensar de forma diferente para si, mas rendem-se aos interesses coletivos, que acabam por destruir a sua individualidade."


Abbas Kiarostami


Será que a ânsia por se aninhar no aconchego do anonimato, na escuridão confortável dos bastidores - já povoado por milhares de outras sombras sem rosto -, não é mais uma necessidade de auto-conservação, de defesa de uma aparente individualidade conquistada pela condescendência alheia, do que uma reivindicação por qualquer interesse coletivo? A massa amorfa dos sem-rosto é a muralha perfeita para a construção de um indivíduo egoísta que procura a sombra para se esquivar do perigo da radiação luminosa. Nesse sentido, aqui temos, ao invés de um representante das causas coletivas, um indivíduo doente em sua independência que só poderá defender, e para isso há forças de sobra, a manutenção da saúde do seu próprio umbigo.




Escrito por Francisco Carvalho. 21 de Abril; às 14:30.




quarta-feira, 15 de abril de 2009

"VOCÊS, OS VIVOS"



















Um viva para os suecos!

Não há protagonistas, a câmera não segue ninguém, apenas permanece estática advertindo que por ali quem manda não são as figuras desgarradas que desfilam pelo seu ângulo de captura. O mundo exibe-se em recortes secos, sem recheio. Enfim, um filme que apresenta personagens em sua forma humana, longe da patifaria virtuosística e sentimental dos heróis americanos – que, para o bem ou para o mal, povoam nossas mais sinceras expectativas.

“Vocês, os vivos” é uma obra de arte, não somente um filme de bilheteria. Tragicamente divertido, não nos perdoa em um só instante por nossa triste condição de marionetes errantes. Não há salvação, culpa e tampouco redenção, por esse motivo, não há vergonha em deixar-se seduzir pela personagem que entra em cena unicamente para ensaiar apaixonadamente a sua partitura de bumbo.

BUM BUM BUM BUM BUM... BUM BUM

O tempo é preenchido por uma absoluta crueza cotidiana, o que nos abre os olhos para identificar que as nossas mais portentosas paixões são justamente aquelas cabíveis no terreno da frugalidade. Lavar a louça adquire um clímax de arrepiar os sentidos – o que diria Benjamim Button disso – com os seus violinos apontando para a celebração apoteótica com a sua amada proibida -?

A vida é seca e é na secura que reside a sua poesia. E quanta poesia! Também não há resignação nesse cenário árido, aqui ainda existe o espaço para ajoelhar-se e pedir perdão por todo o repertório de cafajestagem a que a humanidade foi capaz (e ainda é) de colocar em prática. Justo é o médico que admite a sua frustração por atender ano após ano o repertório de reclamações mesquinhas de seus pacientes egoístas. Mas pergunte-me se esse mesmo médico – ele próprio um egoísta de plantão – permiti-se a audácia de jogar tudo para cima para sorver os dias restantes de sua vida em uma existência menos burocrática?

BUM BUM BUM BUM BUM... BUM BUM

A banda de jazz, não sei bem como classificar o ritmo, convida o espectador a batucar com o pé o andamento tragicômico das desventuras das personagens perdidas em suas insignificâncias. A garota que lamenta o amor não correspondido dá as mãos ao marido que prefere listar suas pendências financeiras a dar atenção ao orgasmo da mulher. Quando tudo está prestes a desmoronar – porque nesse ponto já é possível admitir finalmente que a vida é uma aventura que não faz sentido algum – a música nos força a rir. E esse é o sentido último, o único que de fato vale o esforço: o de rir.

Tudo isso com a câmera estática, sem reclamar a atenção por alguma justificativa maior. A simplicidade de “Vocês, os vivos” revela uma rigorosa consciência artística que lembra as construções líricas de Fellini.

Não deixe de conferir esse filme, uma verdadeira inspiração principalmente para nós, brasileiros que ainda reivindicamos um cinema que precisa subir ao morro – e apelar para o método de lobotomia que tenta arrancar a expressão de alguma verdade escondida – para promover a identificação com o espectador. O sonho, o onírico, o absurdo em “Vocês os vivos” é mais eficiente no reconhecimento da humanidade do que os tiros de fuzil que cortam os barracos para absolver ou condenar nossos heróis de farda.

Escrito por Francisco Carvalho, às 23:34 – 15 de abril de 2009.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Dom Quixote, alma de artista.


Por que a alma do artista interessa-me mais do que aquela pertencente ao homem acostumado com a sua sobrevivência?

Por que este último aspira, mesmo em sua inocência, ao verdadeiro e, para isso, usa o julgamento como ferramenta de defesa – o outro, dessa forma, não escapa do jugo daquele, que, invariavelmente, o classifica de acordo com sua tabela de valores. É um homem preso em grilhões forjados não por ele, mas por alguma instância que não sabe reconhecer e a qual credita o status de “verdade”.

O artista, por sua vez, aspira ao falso, não porque não acredita na verdade, mas porque vive por buscar uma verdade que o satisfaça intimamente e que, ao contrário da outra, não servirá como ingrediente no cardápio dos consensos. Por essa razão a busca nunca termina, porque tê-la como encerrada é o mesmo que admitir uma soberania enganosa que recairá novamente numa escala de valores e, portanto, no julgamento.

A busca do artista é solitária, em última instância, o próprio artista é um ser solitário, não por opção, mas por necessidade. Aspirar ao falso é enveredar pelo caminho da vida como devir, como percurso de transformação que nunca congela qualquer movimento em certezas. Não será essa justamente a única certeza que a vida nos ensina? A de que somos perenes ao movimento e, portanto, parte constituinte dele?

O artista é um ser iluminado porque opta pelo caminho da bondade. Sua busca solitária não o torna obtuso e egoísta. Ao contrário, a criação, sua única ferramenta, não esgota a vida em princípios, mas a devolve em forma de aromas, sabores, sensações, possibilidades. Não há julgamento porque a expectativa aqui não se resume a cumprir, o exercício não é o de obedecer, mas o do convite a participação. Não há verdades, há formas inacabadas, imperfeitas, perenes ao movimento.

Dom Quixote não é mais um louco, é um ser de luz que trilha o seu próprio caminho através da vida como potência do falso. E nada precisará ser justificado porque o que é agora poderá não ser mais adiante. É um vidente que vive na plenitude da vida, ao invés de se esquivar por detrás dos moinhos das afirmações.

Dom Quixote é um artista e a sua alma interessa-me mais do que a do homem acostumado com a sua sobrevivência.

Escrito por Francisco Carvalho, 2 de abril de 2009, às 1:00 da manhã.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Quando a chuva cai...

Cara Miss Y,

Desculpe a falta de comunicação desde nosso último contato. Mesmo sabendo que você nunca irá ler o que escrevo – não por falha sua, mas por uma preguiça minha em procurar o correio mais próximo – ainda mantenho firme e forte o meu ânimo de expressar minhas impressões sobre o seu caráter. A única ressalva é o desejo que tenho em ler a sua réplica, mais por curiosidade do que por convicção. Sei que não entenderia nada e provavelmente um palavrão bastaria para selar seu envelope. Melhor engolir a frustração passageira e manter-me distante das lojas de correio.

Hoje choveu e lembrei-me de você, do dia em que confessou a sua paixão pela chuva. Uma semana depois você chegou ao escritório ensopada, vítima de uma chuva de verão. Praguejava por ter esquecido seu guarda-chuva que, desde então, não importa quão límpido esteja o céu, você o carrega como seu fiel escudeiro na sua bolsa. Como alguém pode gostar de algo e no instante seguinte amaldiçoá-lo? A dúvida aqui parece não questionar a natureza do que se gosta – já que ela sempre será a mesma – mas aquele que pronuncia o seu julgamento, ou seja, você. Mesmo que a idéia de chegar ao trabalho com as roupas encharcadas possa parecer uma situação incômoda para muitos, esse simples acontecimento me faz, hoje, entender ainda mais sobre a sua conduta na vida. Para você, a experiência em si, por mais apaixonante que pareça ser, não importa tanto quanto a sua conseqüência, dessa forma, seguindo o seu raciocínio, aproveitar a chuva no rosto não pode competir com o resultado desagradável da roupa colada ao corpo.

Você, Miss Y, vive no futuro do pretérito, acreditando que a prudência do agir é a moeda de troca que lhe irá garantir a felicidade mais adiante. Quase uma lógica judaico-cristã... o hoje é vigiado sob olhos atentos do grande criador que um dia lhe garantirá lugar ao seu lado, mediante, é claro, a uma régia obediência. E você gosta de obedecer, Miss Y, não aos seus desejos, mas ao olhar do magnânimo. E vive feliz por obedecer acreditando que o seu agir condiz com uma real experiência de vida. Quanto desperdício.

Quantas vezes a sua voz não foi abafada por uma auto-resignação ao encontrar pela frente uma opinião contrária, vinda, é claro, de um posto de “status” superior ao seu? Em um primeiro instante cerrava os punhos em uma convicção apaixonante que, no momento seguinte, virava cinzas de complacência diante da opinião inversa do mais forte. E você nunca se sentiu frustrada por isso, muito pelo contrário, a vida para você é feita de cargos de hierarquia que justificam a benevolência e o escárnio de quem os ocupa. Idéias próprias, desejos próprios só valem sob o jugo do outro. Tomar chuva na cara não é uma medida aconselhável, por mais que se tenha prazer nisso, porque mais adiante será preciso pensar nas toalhas. Ou então: “aproveite a chuva na cara, mas não se esqueça que mais tarde vem as toalhas”!

Prefiro o risco, Miss Y, porque a dúvida conduz à autonomia. Você tem razão quando diz que as coisas são como são e admito que a sua rotina de vida lhe permite uma sobrevivência mais tranqüila do que a minha. Mas quem disse que a rotina da tranqüilidade é sinônimo de felicidade? Não digo isso por orgulho, mas por certeza de que a vida deve ser fruída em todas as suas experiências reais, que não aquelas tabuladas pela prudência ou pela obediência – para isso é preciso estar só, levantar o rosto para receber a tempestade no rosto sem medo de se ferir.

Cordialmente e até breve,

Mister X.

Escrito por Francisco Carvalho, 20.03.09, às 14hs


“... É importante também para a adaptação social que o indivíduo não tenha convicções: as opiniões devem mudar de acordo com a ocasião; se não for assim, corre-se o risco de não se ter emprego, amigos, amantes, ou melhor, é importante aparentar convicção e não tê-la...”

“... As pessoas, em geral, tem consciência da exploração social, da violência, percebem a dominação em toda parte, e não necessariamente concordam com isso, mas, como devem se adaptar, exercem o que seria contrário ao que desejariam; para isso, devem acirrar as justificativas de seus comportamentos, que elas mesmas reprovam...”

José Leon Crochik – professor da USP – matéria da revista EDUCAÇÃO sobre Adorno.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Eu, eu mesmo e eu comigo mesmo...

O que há de pior nas pessoas senão aquele espírito mesquinho que recebe o nome de auto-conservação? Uma vez alocadas em seus confortáveis recantos de paz – fruto de anos de suor e lágrimas – agora dão-se ao direito de arrotar empanturradas, olhando orgulhosas para o próprio umbigo. Desperdiçam energia e força, consomem oxigênio e ocupam espaços para unicamente sentirem-se satisfeitas consigo próprias, radiantes de alegria por defender o lugar no tabuleiro que há muito almejavam. Peças competentes da indústria da mediocridade, mortos-vivos ligados a vida pela sonda do egoísmo. Mal percebem-se escravos do capricho alheio, mal conseguem imaginar a terrível linha de produção que fomentam e vivem felizes a obedecer regras, tirando o chapéu para quem merece e doutrinando os que aceitam o posto de ignorantes. Para que mudar? Para que olhar para si próprio? Para que correr o risco de se sentir perdido? A felicidade desses espíritos jubilosos que se olham ao espelho e agradecem pelo próprio talento é falsa. Toda a maquiagem dessa bem-aventurança esconde a mais profunda solidão que somente os corajosos conseguem ter forças para enxergar. E ter coragem significa olhar para si não pelo reflexo do espelho mas pela perspectiva do outro. Essa é a atitude da mudança que não garante de forma alguma o passaporte para a felicidade, mas que, ao menos, afasta definitivamente a tentação de mergulhar na ilusão.

Escrito por Francisco Carvalho – 7.02.09 – às 16:22

"(...) Ao mesmo tempo, pensava comigo: assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantém conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E tem razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até burlo dos homens nestas páginas, não será por isso que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo!"

Hermann Hesse – "O lobo da estepe".

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

TEATRO, MISTÉRIO, VIDA E ASSOMBRO.


Por que eliminamos os “porquês”?
Por que a vida se encarrega de eliminar as dúvidas para dar lugar às certezas?
Não, não é a vida que ajusta os ponteiros para que batam seus tique-taques simétricos,
somos nós que ansiosos por esclarecer o que é duvidoso teimamos em preferir o certo ao incerto.
Por que me encanto tanto com o teatro? Por que repito semanalmente o ritual de respirar fundo atrás das cortinas para esperá-las abrir? Muitos definem esse interesse por paixão, vocação, mas eu o chamo de assombro. É assombroso não saber o que virá depois de a cortina se abrir, é assombroso permanecer no escuro a espera do terceiro sinal, é assombroso perceber-se na mais profunda dúvida sobre o que virá quando as luzes se acenderem. Que sensação absurda é essa de ter certeza de que a vida hoje, nesse instante, se forma independente da minha vontade de querer tabulá-la?
O teatro, justamente por trabalhar com a repetição me ensina que a vida não se repete nunca, nem mesmo quando estou plenamente convicto do papel que me cabe desempenhar. O texto, habilmente decorado pelo ator, só tem sentido em existir para ser esquecido no momento seguinte em que sai da boca do intérprete. Repeti-lo decorado é o passaporte para a morte – que é o fim último da nossa mais profunda certeza. A vida pertence ao reino da incerteza e, principalmente, ao mistério. O teatro, com o seu microcosmo de magia, é o perfeito laboratório para testarmos o quanto precários somos e, por isso mesmo, o quanto é assombroso saber-nos ignorantes.
Nada disso é tranqüilo, toda a semana, momentos antes de as cortinas se abrirem, pergunto-me desesperadamente porque diabos estou enfrentando mais uma vez essa mesma sensação desconfortável. Mais fácil seria ter certeza sobre os relatórios a serem preenchidos em algum escritório qualquer, não só mais fácil como também mais reconfortante.
É duro abrir mão das certezas, o preço que se paga é alto mas a recompensa vem em dobro, em forma de vida que pulsa nas veias.
Escrito por Francisco Carvalho, em 30.01, às 2:47

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Para o Senhor X

Caro Sr X,
Compreendo seus impedimentos de horário, mas a situação me causou um problemão. Antes de ser minha comadre, Lady Ôxe é nossa cliente e tem de ser tratada como tal. A gente não pode determinar os horários em que ela vai falar com a gente. Aliás, é o contrário disso. A Sociedade Papirus deve estar à disposição dos clientes na hora em que eles acharem conveniente. Afinal, são os clientes. É assim com a Firpa inc, com a Loly Pop Papoula, com o Snorgs corporation e com quem mais vier.

Foi um fuá para acalmar Lady Ôxe e eu conseguir daqui fazer as correções. Estou a 2000 km de distância, de férias numa estância balneária, e consegui abrir um espaço para atendê-la. Ficou mal para burro para mim e para a empresa a gente não poder atender a Lady Ôxe e, pior, determinar o horário para ela corrigir o programa. Você, sr X, consegue entender a gravidade da situação?

Ass: Miss Y

Respondendo a Miss Y...

Cara Miss Y,
não consigo entender e me surpreendo em saber que as coisas funcionem dessa forma para você e para a Lady Ôxe - ou para quem quer que seja que tenha um pouco de formação humana. A minha vida não está a disposição de pessoa alguma, quanto mais de cliente - graças à Deus a única coisa a que devo satisfação é a minha consciência, tentando, na medida do aceitável, respeitar as diferenças daqueles com quem tenho algum tipo de relação. Eu procurei dentro das minhas possibilidades encontrar a melhor forma de "estar disponível" para sua comadre, e nossa cliente. Combinamos um horário que foi desmarcado por ela e logo em seguida - conforme me foi solicitado - tentei novo contato para resolver a questão, novamente não tivemos sucesso. Tenho um compromisso com meus ensaios de tango- já avisado anteriormente para você - que para mim é tão importante quanto qualquer outra coisa. Recuso-me a imaginar que a minha atividade profissional exija de mim a postura de um servo que ao primeiro chamado do amo coloca-se de pé e a disposição do seu senhor. Se isso para você é fazer parte de um mercado de trabalho e agir como profissional, me desculpe, mas o meu espanto é ainda maior. Surpreendo-me com o seu e-mail. Isso tudo implica em uma atitude para com a vida que não combina em nada com formação ética e humana. O dinheiro que recebo ao final de cada mês - seja ele quanto for - nunca será suficiente para me colocar nesse papel que você exige de mim. Viver para bater cartão, Miss Y? É isso que você assina no seu e-mail. Fico realmente triste em saber que a hierarquia para você significa subserviência, não espere isso de mim, nunca. Você é a minha chefe e sempre me tratou da forma mais respeitosa, humana e profissional - o que me faz ter ânimo e estímulo para o trabalho - agora, por que quando a situação se inverte e aparece um chefão "acima" de nós a regra é: limpemos o tapete para o Doutor passar? Não tenho e nunca tive essa relação com você e não vou ter com sua comadre e com ninguém, nem que eu vá para debaixo da ponte. Isso que pode parecer orgulho para você para mim chama-se liberdade, desejo de viver e ser feliz a despeito dos caprichos dos outros.

Estou a sua “inteira disposição” – atente para as aspas, Miss Y, - para conversarmos sobre o assunto e, se tudo o que eu escrevi lhe parecer absurdo, fique livre para procurar outra pessoa para ser o seu parceiro na Sociedade Papirus

Grato,

Sr X.