terça-feira, 19 de maio de 2009

a desculpa das engrenagens.


Quando se é o responsável por lubrificar as engrenagens de uma pequena fração de uma máquina ainda maior, é fácil e conveniente abrir concessões para tornar o próprio ofício um meio seguro de se ter benefícios, mesmo que para isso o funcionamento geral sofra conseqüências diretas, percebidas de imediato ou nem tão evidentes assim.

As poucas porcas que são desatarraxadas pela esperteza não carregam de pesar a consciência do fraudador, há muitas vantagens em se posicionar como o funcionário de algo maior, invisível pela complexidade e distante de qualquer significação íntima, pessoal. O que é íntimo, nesse caso, é a habilidade de articular circuitos ocultos que tem como função saciar a fome de quem os construiu. É preciso sobreviver, diriam os pragmáticos.

Quando se aceita a posição de operário de algo maior, recebe-se como troco o valioso salvo conduto de agir sem pensar em nada maior do que o próprio umbigo. É preciso tomar coragem de chegar até a alavanca que comanda toda a máquina para então empurrá-la com as próprias mãos. É quando se chega à posição de chefe da maquinaria que toda a ação, mesmo aquelas mais ínfimas, passa a reverberar sensivelmente na própria alma de quem as ousou perpetrar.

Finalmente não há nada mais a esconder, não há espertezas, atalhos ou falcatruas. Há somente, e tão somente, ação visível – seja para o bem, seja para o mal. Antes fazer o mal às claras do que praticar a esperteza autopiedosa às escondidas. É o silêncio da autopiedade que envenena de ferrugem as engrenagens de qualquer máquina e suja de graxa as mãos do autor.

Aqui a evidência é clara e a esperteza não pode ser mais confundida com fraude, mas como um modo de agir, passível de julgamento.

É preferível e aconselhável arriscar-se ao julgamento do que permanecer na graxa anônima. É justamente por aproximar as ações do próprio espírito – por tomar as rédeas da grande engenhoca - que aquele que comanda as ações evita os circuitos autopiedosos para buscar um olhar mais amplo. O espírito não é egoísta como o é a matéria. O “é preciso sobreviver” dos pragmáticos, agora é substituído pelo breve e mais significativo: “é preciso viver”.

Escrito por Francisco Carvalho, às 22h10min de terça-feira, 19 de maio de 2009.



FILOCTETES:

Neoptólemo:
(...) antes cair jogando limpo, a tornar-me um porco vencedor.

Odisseu:
Quando era rapazote, eu também tinha a mão ativa e a língua preguiçosa. Mais calejado, vejo que é a língua, e não a ação, o que se impõe aos homens.

(...)

Neoptólemo:
Não vês na farsa um golpe que rebaixa?

Odisseu:
Não, se dela resulta a salvação.

Neoptólemo:
Mas com que cara falas disso às claras?

Odisseu:
Quando vislumbro o lucro, nunca hesito.

Trecho da tragédia “Filoctetes”, de Sófocles.

domingo, 17 de maio de 2009

A poesia e a simplicidade.



O bolo sem cobertura é o que mais agrada ao meu paladar.

A paisagem mais bela, para o meu gosto, é aquela que apresenta a natureza em sua absoluta simplicidade e força: um barquinho distante envolvido por um oceano de infinitas proporções, uma única árvore solitária rodeada por um campo cujos limites não se apresentam a nossa curiosa visão.

A música de Beethoven interessa-me mais do que a de Bach porque o autor da nona sinfonia preenche de sons os silêncios de suas pausas. Enquanto as melodias de Bach produzem um balé carregado de emoções e sentidos, é no silêncio que é possível escutar o que Beethoven tem a dizer sobre a alma humana. É na ausência das notas musicais que a música se faz viva. O silêncio é musical.

A poesia mais verdadeira, para mim, é aquela que não precisa ser sublinhada, aquela que ganha vida pela secura das palavras, pela objetividade crua que a motiva. As lágrimas não cabem ao artista, a ele resta, tão somente, a beleza da articulação singela das palavras.

O recheio não me interessa porque ele indica o gosto que eu, como espectador, gostaria de formular.

A aridez, a simplicidade, o vácuo, são estados de altíssima poesia, alcançados somente pelo mais absoluto despojamento. Uma força que se faz presente pela ausência, pela incompletude.
DESPOJAMENTO:




Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei velas copos guardanapos
e a música





Bani a inutilidade do discurso





Na mesa de madeira
nua
apenas dois pratos
brancos
sem talheres





O banquete será tua presença




Poema de Ivo Barroso.



Escrito por Francisco Carvalho. Domingo, 17 de maio de 2009, às 17hs


quinta-feira, 14 de maio de 2009

As benesses da impertinência


Por que me sinto cada vez mais um sujeito impertinente? Que sensação de inadequação é essa que quase sempre alimenta o meu espanto para com o mundo dos homens?

Se a minha impressão é verídica, se constitui uma falha de caráter ou até mesmo uma qualidade do meu espírito, não faço idéia e pouco me interessa investigá-la dentro de qualquer perspectiva ética ou moral. Aliás, essa prática que elege o julgamento como ferramenta de identificação do que é modelar ou condenável também me parece cada vez mais questionável. Aqui também sou impertinente, você poderia dizer.

Agora me lembro que já fui acusado, certa vez, de encarnar o gênio romântico. Um Werther sofredor que, desiludido com a humanidade, trancafia-se numa torre de marfim e olha para si próprio como único representante de um ideal já extinto.

“Oh Céus, Oh vida”, já diria a hiena melancólica do desenho animado.

Encontro uma resposta, mesmo que incompleta, para a minha impertinência. Sou impertinente porque duvido. Se tivesse a oportunidade de servir como réu em um tribunal regido por um fictício panteão de Deuses e a mim fosse perguntado o que penso a respeito da raça a qual pertenço, responderia da seguinte maneira:

Não glorifico os homens, nem tampouco os condeno por suas atitudes, apenas reservo o direito de duvidar do que dizem.

Se no início a minha consciência foi povoada por certezas e convicções, hoje identifico claramente que caminhar para a velhice é, para mim, um percurso trilhado pela via da interrogação. Com direito a paradas incertas que conduzem a um comportamento de resistência.

Mas como duvidar que a raça humana, em sua grande maioria, assina embaixo do tratado feito em homenagem as tartarugas de Galápagos?

A “camaladagem” humana – termo criado por mim para enaltecer a perspicácia do camaleão em mudar de cor para manter-se vivo – reside na sua enorme capacidade de desenvolver o cinismo como arma de defesa.

A seleção natural preserva os cínicos, os espertos. Quem nunca viu na televisão aquele pássaro que prefere alocar o seu ovo no ninho de outra espécie para que o rival crie o seu rebento sem que ele dispense qualquer esforço para isso? Oh grande filósofo e profeta da humanidade: Charles Darwin.

Duvidar é dar um passo atrás, promover uma interrupção no fluxo da normalidade, recusar a adaptação. É uma posição de evidência, mas também de muito perigo. A chance de perecer rapidamente é grande.

Comecei a duvidar das grandes soluções: de um Deus salvador, de um regime político ideal, de um emprego impecável... e acabei empregando a mesma atitude nas coisas mais simples da vida. O cotidiano, acreditem, é um terreno tão fértil em cinismos adaptativos que é perfeitamente possível reconhecê-los como os alicerces das grandes soluções. E, com um pequeno exercício de impetuosidade, não é difícil desmontá-los com alguns petelecos.

Quanta audácia! Quanta impertinência! Remar contra a corrente! Evitar o inevitável!

Não penso que eu seja parecido com o Werther de Goethe, mas gosto da comparação com a hiena. Depois das lamentações - “Oh céus, oh vida” - o bicho do desenho animado desata a rir, numa gargalhada fabulosa.

Como é fabuloso viver entre os homens, cínicos apaixonantes. Mais apaixonante ainda é assumir o risco da impertinência, porque embora seja uma posição sempre arriscada – e os riscos são muitos – não há ângulo melhor para rolar no chão de tanto rir.

Escrito por Francisco Carvalho às 23:43; quinta-feira / 14 de maio de 2009.

terça-feira, 12 de maio de 2009

A 8ª praga do Egito.


Um enxame.

Identificar o que são? Impossível.

A única coisa visível é a nuvem, densa formação de partículas indecifráveis.

Os contornos falam a mesma língua, denotam uma certa característica comum que impede qualquer tentativa de diferenciação. Uma massa de zumbidos inaudíveis.

A nuvem começa a se formar através da abertura de um estreito funil, toma forma rapidamente como no movimento de uma represa que rompe a barragem sem pedir permissão. Em instantes a tempestade já está armada.

Cada qual protegendo o seu grão de pólen, precioso prêmio da labuta diária. Não há nada senão movimento, enxurrada de reflexos condicionados.

Os atalhos mais concorridos somem de vista. São como insetos que, guiados por algum sentido aguçado, sabem exatamente para onde seguir sem prestar atenção aos lados.

Uma praga.

Qualquer resistência é abafada, não há voz, não há silêncio, não há nada senão movimento que arrasta, arrasa.

Sem sobras.

Devastação.

Ó Pai dos Pais, engendrador supremo, será que resta alguma dúvida quanto à natureza da 8ª praga do Egito? Aquela criada a partir da tua imagem e semelhança?

Relato de um dia no metrô de SP, escrito por Francisco Carvalho, às 22:26 de quarta feira – 12 de maio de 2009.

domingo, 10 de maio de 2009

Ah que saudades, grande Diderot!


Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Aquele que entrava em cena pelos trilhos da inteligência e aquecia os nossos corações com sua performance da humildade.
Aquele mesmo que ao encharcar as mãos de sangue nos olhava de soslaio – sem que percebêssemos – para perguntar em silêncio se a tragédia que contava chegava até nossos espíritos.

Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Fiel representante de uma arte que a cada dia se esvai na torrente de lágrimas enquadrada pela tela plana das televisões de plasma. Ainda se o palco estivesse a salvo de tamanha inundação!

Pobre Shakespeare! Onde foram parar os corajosos artistas contadores de história? Por que será que virou crime o exercício do ator que, despido de vaidade, se dirige de cara limpa para a platéia?

Muitos são aqueles, ó pai do século das luzes, que condenam o seu ator por insensibilidade ou, ainda pior, por falta de entrega ao ofício. Será que não percebem que essa pedra de gelo cabe muito mais aos auto-piedosos do que aos inteligentes?

Ah, grande formulador das enciclopédias! Como ensinar que soluços e engasgos não são atalhos confiáveis para a arte recriar a experiência da vida? Como esclarecer que o seu ator torna-se vivo aos nossos olhos justamente por optar pela incompletude – distante da onipotência daquele que chora para impressionar aos outros e a si mesmo?

O seu ator, ó grande Diderot, não arma gatilhos emocionais como ferramenta para glorificar o seu talento – aí está o que chamo de vaidade e, inclusive, egoísmo. Seu ator, ó Diderot, espera na absoluta ignorância o contato com o público para a partir dele estabelecer um espaço de construção criativa. A criação da verdadeira arte se dá entre o ator e o espectador. Eis um exercício de humildade carregado da mais alta dose de sensibilidade e emoção.

O ator vaidoso chora para mostrar como é virtuoso, nega o espectador como elemento criativo e se encerra em uma redoma de auto flagelação. Não será esse, ó sábio Diderot, aquele que merece o título de homem de gelo? Impenetrável em sua particular sofreguidão?

Os tempos são outros, saudoso Diderot, parece que hoje até mesmo uma lista telefônica torna-se matéria prima para os nossos atores encherem os olhos de lágrimas. Antes de compreenderem para que número estão discando despejam em jorros seus rios lacrimosos esperando do interlocutor um outro soluço de compaixão.

Ah, Diderot! Quantas saudades daquele seu ator! Aquele que fazia da mentira um exercício de prazer. O mesmo ator que dava as mãos a sua personagem para apresentá-la a nós, curiosos espectadores. Saudades de Shakespeare que divertia-nos como nunca ao mostrar o quão fantástico é viver em um mundo articulado por títeres invisíveis, ou talvez visíveis até demais.

Que paradoxo é esse, ó grande Diderot, que estimula as pessoas a arrancar de algum lugar uma verdade, custe o que custar – verdade? Que verdade? – sendo que esse mesmo esforço não produz mais do que um leque imenso de novas mentiras?

Oh, Diderot, quantas saudades!

Escrito por Francisco Carvalho. 10 de maio, às 14hs.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Prólogo para um vizinho egoísta


Eis, amigos, aquele que por pura perspicácia pulou para o lado do legislador, aquele que aproveitou da conveniência para depositar confiança no outro que outrora ignorava.

O asfalto que hoje pisa, moeda da benevolência, é o motivo da sua gratidão. Antes a poeira do descaso, hoje o negrume acético, guardião do bem-estar.

Eis, amigos, aquele que ostenta o jardim defronte a sua casa, o mesmo que fora adubado pelo esterco dos interesseiros e que hoje interessa a narinas merecedoras. E ele o fez por merecer.

Eis, amigos, aquele que é teu vizinho, sujeito de língua ímpar, engolidor das salivas da ética e portador do broche da boa moral.

Eis, amigos, nosso ventríloco da justeza, defensor daquele que existe para lhe dar o verbo.

Eis, amigos, o nosso maior representante: o homo-hipócritas.

AVE HOMO-HIPÓCRITAS.

Tu, homo-hipócritas, que praguejas interjeições nefandas sobre tua pobre sorte nesse mundo em que habitas,

Tu, homo-hipócritas, que desejas uma justiça menos cruel capaz de tornar tua existência menos imprestável nesse mundo de espertos,

Tu, homo-hipócritas, que fazes uso de teu maxilar para mastigar com nojo e revolta os impropérios alheios,

Tu, homo-hipócritas, que nascestes para exigir teu direito de navegar por águas calmas e doces,

Tu, homo-hipócritas, que trajas o manto imaculado da erudição, adornado pelas pérolas da boa conduta,

Tu, homo-hipócritas, que elegestes o líquido da temperança como fluído vital a percorrer por tuas veias azuis,

Tu, homo-hipócritas, que recusas o palanque por temer ou duvidar do som que amplifica tua angústia,

Tu, homo-hipócritas, que encontras respaldo na fortaleza das instituições sagradas, no berço da família e nos tijolos do saber acadêmico,

Tu, homo-hipócritas, que labutas para lamber o suor do sacrifício como honra ao mérito pelo teu sofrimento,

Tu, homo-hipócritas, que diriges teu olhar ao chão em busca de um terreno só teu,

Tu, homo-hipócritas, que agradeces ao asfalto terreno sem se dar conta do escuro sombrio que engendra o firmamento estrelado,

Tu, homo-hipócritas, é apenas mais um, aquele ao qual compadeço e chamo de irmão.


________________________


escrito por Francisco Carvalho; quinta feira, 7 de maio de 2009, às 1:12 da manhã.