sábado, 26 de dezembro de 2015

Pequena Ladainha para um eterno agradecimento sem fim e cuja razão de o ser paira na falta absoluta de qualquer aparente razão...



Meus parabéns, senhor Correia! Ora, senhor Prado, recebo os seus cumprimetos e já os repasso ao senhor Moraes, que sem a participação decisiva do senhor Silva não estaria eu, agora, nem perto de alcançar tamanha gratificação. Parabéns, senhor Silva! Uma honra receber tão calorosa manifestação de afeto, meus senhores, afinal, o que somos nós senão eternos espectadores do reconhecimento alheio? É aos senhores a quem delego todos esses aplausos e cujo merecimento, sabemos nós, é mais do que evidente. Parabéns! Meus parabéns a você! Eu que o diga! Ora veja! Não seja tão humilde! Um momento, senhores! Penso que seria justo dedicar um tempo a alguns breves testemunhos de cada um aqui presente, caso os senhores não venham a se opor, evidentemente, que pudessem tornar público e norótio, enfim, a alegria que brota dentro dos nossos corações nesse exato momento de profunda alegria. Concordo! Apoiado! É uma ótima ideia. Por que não começamos com o senhor Gomes? Humildemente passo a palavra ao senhor Oliveira. Adoraria aceitar mas acho que por razões óbvias o senhor Vilas-Boas deveria ser o primeiro. Longe de roubar a vez do senhor De Marchi. Criminosos seríamos todos nós, senhores, se atecipássemos o verbo ao do senhor Araújo. Senhores, caso ninguém venha a se opor, evidentemente, eu tomarei a iniciativa desse nosso pequeno circunlóquio festivo. Queiram sentar-se por favor. Verba Gratidaum infinitum latejas quid coracao baetere.



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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Escondo em mim uns duzentos de mim
Não porque o queira escondê-los
Mas porque é preciso que algum deles escape e diga ao mundo:
Prazer, este sou eu

Sou isso:
Uma recusa de tantos outros
Em dizer
Quem sou

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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Quando falo de mim, falo de um eu idealizado
Um que não sou eu, e que - com um pouco de imaginação -, sou eu também 
Ou invento que sou
Uma vez que me é impossível saber quem sou eu por inteiro
Encontro-me comigo mesmo numa imagem maior
Fingindo sumir-me dessa minúscula escala de tamanho da qual sou eterno hóspede 
E refém


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domingo, 4 de outubro de 2015

Gosto mais de aeroporto do que de viajar de avião
O instante antes de a cortina abrir é o que vale o preço do ingresso no teatro
A véspera sempre anima-me mais do que o fatídico dia
Pertenço a esse lugar de promessas não cumpridas
A ante-sala de tudo
O breve silêncio da pausa que precede o primeiro acorde da sinfonia.
Sou feito de contagens regressivas que nunca acabam
Termino quando aconteço.


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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Por fora, mais um soldado raso
Por dentro, um comandante de um exército inteiro de solidão 

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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Fábulas: Engenhocas espetaculares - A Catapulta Gigante.

Recusados os meios tradicionais de busca e conquista da liberdade, um dado sujeito de inconformismos latentes, um sujeito desses sujeitos que não desistem nunca de ver a sua ideia fixa tornada ideia concreta, resolveu construir uma catapulta gigante que pudesse o catapultar para longe dos muros da cidade, os mesmos muros que aprisionavam quem dentro de seus domínios estivesse feito sardinha na lata, e, uma vez livre da cidade, liberto também estaria daqueles outros todos que adoravam tê-lo como sardinha, uma vez que é hábito das sardinhas andarem unidas e solidárias umas com as outras, condição que as torna pouco ou nada atentas para a consciência de que são elas irremediavelmente sardinhas de fato e não lambaris, e que, curiosamente, desconhecem também as fronteiras da lata que as fazem sardinhas unidas, lata que só é lata porque é preciso haver sardinhas para trancafiá-las. Enfim, catapultado para longe, morreu espatifado bem no centro do muro, o mesmo muro do qual teimava em ver-se livre, e, se é correto dizer que neste mundo não alcançou o que queria, mistério obsequioso é esse o de conjecturar se lá, do outro lado, do lado desconhecido onde tantos cardumes já foram e não voltaram, conseguiu, finalmente, ultrapassar a qualidade de sardinha enlatada para, ufa!, a de lambari ligeiro...


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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Plantão de Notícias: # O Tombo do Limpador de Janelas...

O limpador de janelas acaba de despencar do vigésimo sétimo andar do prédio de vidros espelhados da avenida principal depois de haver testemunhado pelo lado de fora da janela e pendurado em seu andaime sustentado por cordas de aço o executivo-chefe da empresa do prédio de vidros espelhados da avenida principal esganar com as duas mãos um homem que mais tarde provou-se ser o outro limpador de janelas que na véspera havia flagrado o mesmo executivo-chefe esganando um outro homem que até então não se sabe quem é e por quais motivos mereceu o destino que ambos os limpadores de janela do prédio de vidros espelhados da avenida principal couberam ter e cada qual em situações bastante similares excetuando o fato de que um deles, o último, encontrou no chão o passaporte que os outros dois homens ganharam das próprias mãos do executivo-chefe da empresa do prédio de vidros espelhados da avenida principal.


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domingo, 13 de setembro de 2015

Fábulas: # A honra revolucionária dos piolhos-pulguentos...



Era uma vez uma colônia de piolhos-pulguentos que viva num tranquilo lombo felpudo de um cachorrão igualmente tranquilo e felpudo por inteiro. Então, certa vez, um piolho-pulguento, cansado do mormaço interminável dos dias de marolas nada bravias, botou-se de pé nas suas pequenas e alquebradas patas serrilhadas de piolho-pulguento e disse aos outros companheiros de mamata: senhores! Façamos alguma coisa! Mordamos o bendito cachorro! E, acometidos pelo ânimo revolucionário do piolho-pulguento, todos os demais piolhos-pulguentos puseram-se imediatamente a abocanhar o lombo tranquilo e felpudo do cachorrão igualmente tranquilo e felpudo por inteiro. Numa primeira coçada, o cachorro deu conta de matar metade da colônia de piolhos-pulguentos, e, em meio as exéquias fúnebres que vieram na sequência, os piolhos-pulguentos sobreviventes evocaram a gloriosa lembrança daqueles outrora piolhos-pulguentos revolucionários, dispostos a dar a própria vida de piolho-pulguento para que outros piolhos-pulguentos pudessem, aquele dia, lembrar do quão corajosos a nobre raça dos piolhos-pulguentos podem dar conta de ser, caso queiram ser, evidentemente. E o exemplo deu tão certo que todas às vezes em que um cachorro tranquilo e felpudo abdica de sua canina tranquilidade para coçar o próprio lombo felpudo, não surpreendam-se!, trata-se de uma outrora tranquila colônia de piolhos-pulguentos em busca de alguma homenagem autocontemplativa...

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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ator 
E quem suspeitaria
De que morrer todo dia
Como o ator que ao palco sobe
Suprimindo seu próprio nome
Para o bem de não sei quem
Seria vida que fica
Infinita
E deveras nobre?
E quem recusaria exasperar-se até seu último e derradeiro amém
Fingindo que finda
Se a oração bendita
É ladainha divertida
Sem profetas, fiéis ou evangelhos
Só liturgia
Riso frouxo que sobra
De quem ainda se enamora
Da alegria?
E assim acometido
Por cansaços sucessivos
Coroar-se servo sem amos e rei de tantos ninguéns
Que nascem, vivem e morrem
Na poeira soprada de todas as horas
Pó mágico dos sonhos de quem com o riso ainda ri
E com o pranto
Ainda
Chora
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domingo, 5 de julho de 2015

Fábulas # O Chamado do Telefone...

É sempre assim. Alguém, em algum lugar distante daqui, resolve fazer uma ligação para um outro alguém, que deveria estar por aqui para ouvir o telefone tocar e atender à chamada. Só que esse alguém para quem a ligação é feita nunca aparece. Então eu, que passo regularmente por aqui todos os dias, resolvo tirar o fone do gancho e dizer alô. É o que basta para que esse alguém do outro lado da linha comece a falar um monte de coisas imaginando que eu sou esse outro alguém a quem ele, sabe-se lá quem ele seja, decidiu, por qual razão misteriosa, dedicar algum tempo para digitar os números no aparelho telefônico na esperança de que do outro lado quem atendesse à chamada não fosse outro senão esse a quem eu, que ele mal faz ideia quem seja, finjo ser. É isso que eu faço. Invento que sou esse a quem esperam que eu seja. E como tudo é feito à distância e no completo anonimato, eu não me sinto nenhum pouco mal por isso. Aliás, não me sinto nada mal por isso. Para dizer a verdade, sinto-me plenamente vivo quando finjo ser esse outro alguém que tanto é requisitado por esse alguém que, de algum lugar distante daqui, resolve gastar seu tempo para digitar todos os dias alguns algarismos num aparelho telefônico na esperança de poder falar com esse alguém com quem ele tanto gostaria de falar, e que nunca aparece para atende-lo. Sim, eu me sinto bem agindo assim. É quase como uma boa ação: aliviar a expectativa de alguém que eu mal conheço, e que provavelmente nunca venha a conhecer.
- Alô?


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# Fábulas: O Sr. Moraes, o Assistente para Obviedades.

Este é o senhor Moraes, o Assistente para Obviedades. Depois de contratar os serviços do senhor Moraes a minha vida mudou, tornou-se mais leve, evitando que eu precise pensar naquilo que pensaríamos caso não tivéssemos outras coisas mais importantes para pensar. Porque é preciso separar as coisas importantes das coisas não tão importantes. E o senhor Moraes ajuda-me a pensar tudo o que é óbvio livrando-me a cabeça para que ela pense naquilo que vale, de fato, o esforço de pensar. É isso que o senhor Moraes faz, ele é o meu Assistente para Obviedades. Aliás, faz bastante tempo que não me ocorre nada importante para pensar, mas, mesmo assim, faço questão de não abrir mão dos serviços do senhor Moraes. O senhor Moraes me é altamente necessário nesses dias em que não há nada para se pensar a não ser em tudo o que é óbvio. É verdade que houve uma época em que eu era bastante solicitado para pensar coisas importantíssimas tais como: o que é a justiça, o amor, o destino da humanidade e até mesmo a razão de não haver razão alguma para estarmos aqui nesse exato instante em que estamos aqui e não sabermos o porquê de estarmos aqui, agora... nesse exato instante. Mas esse tempo passou. E é bom que tenha passado. Porque na atual circunstância, é preciso um tempo para poder descansar o pensamento. Não é muito bom conviver o tempo inteiro com questões que demandam de nós um alto esforço de pensamento. E é aí que o senhor Moraes entra com os seus prestimosos serviços, aliviando nossa consciência daquilo que teríamos de nos ocupar ainda que fosse óbvio ocupar-nos com alguma coisa óbvia. Eu gostaria de agradecer ao senhor Moraes. Gostaria de agradecer aos serviços do senhor Moraes. Obrigado então, senhor Moraes!

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segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sou sempre eu...
Quando não sou eu
Sou eu dizendo:
Não sou eu!
Para todo o restante das ocasiões - não se preocupe! -,
Sou eu mesmo...


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quinta-feira, 4 de junho de 2015

Fábulas: # O Salão de Chá e os Nobres Senhores de Fraques e Bigodes Pontudos...

Três nobres senhores de bigodes pontudos e trajando fraques sorviam cada qual em sua xícara uma infusão de chá de camomila no salão de chá aberto somente para ilustres senhores trajados com fraques e cujos bigodes haviam sido aparados nas extremidades formando pontiagudas pontas... E foi quando o teto começou a baixar. O tilintar do lustre que fazia balançar as delicadas gotas de cristal penduradas em delicadas armações de metal banhado a ouro não deixava mentir: de fato o teto do salão de chá aberto somente para ilustres senhores trajados com fraques e cujos bigodes haviam sido aparados nas extremidades formando pontiagudas pontas estava baixando. E baixava em ritmo constante, porém lento, sem interrupções outras senão os agudos tilintares das gotas de cristal do lustre que tremelicavam em uníssono, ora ou outra promovendo afinadíssimos choques sinfônicos que preenchiam o salão de chá aberto somente para ilustres senhores trajados com fraques e cujos bigodes haviam sido aparados nas extremidades formando pontiagudas pontas com o mais alto si bemol inscrito na escala cunhada pela clave de sol. O primeiro nobre senhor deitou carinhosamente a sua xícara ainda fumegante da infusão de camomila no pires que erguia espalmado no ar com a mão contrária e conjecturou que o teto começara a baixar devido a algum misterioso evento que por razões também misteriosas ocorria no andar superior, teoria que não foi absolutamente refutada pelo segundo nobre senhor que viu-se obrigado a interromper a ação circular que promovia com a colherinha de prata mergulhada no líquido quente a fim de espalhar em iguais proporções o açúcar despejado e disse que misterioso ou não o evento no andar superior que provavelmente era a causa do teto principiar a ameaçar a tranquilidade daqueles que lá estavam somente para sorver uma inocente xícara de chá de camomila era fruto, isso sem a menor sombra de dúvidas, da mente assassina de alguns elementos interessados em eliminar a paz que reinava naquele pacífico salão de chá e que mal algum poderia oferecer ao mundo senão adocicá-lo com o aroma campestre da camomila verde, teoria que não foi totalmente contrariada pelo terceiro nobre senhor que, antes de ser esmagado pelo teto junto com seus colegas trajados com fraques e cujos bigodes haviam sido aparados nas extremidades formando pontiagudas pontas, explanou a necessidade urgente de se buscar um acordo diplomático com aqueles que, no andar de cima, engendravam mecanismos misteriosos que faziam o teto baixar e promovendo, também, agudos tilintares das gotas de cristal do lustre que tremelicavam em uníssono.

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segunda-feira, 18 de maio de 2015

Exagero quem sou
Porque não sei quem sou
Mas, se enxergo o exagero
Enxergo também o que não poderia
Jamais
Ser

Sou quem sei
Que não
Sou

A máscara 
Ao anular-me
Mostra-me a mim

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sexta-feira, 1 de maio de 2015

Comunicados Urgentes e Oficiais: # O Dia da Labuta...

Senhores! Venho por meio desta dar-vos a dizer que neste dia azeitado pela preguiça da labuta-comemorada, quando justamente não se labuta patavina nenhuma para poder comemorar o fato de não precisar labutar, inaugura-se, enfim, a sábia consciência de que é infinitamente mais proveitoso deitar o vosso grisalho bigode no vinagre do tédio a ter de, evidentemente, fazer dele o protótipo do que já é e mostra-se ser e por infindáveis alvoradas pregressas - seja devido ao impulso viciado do hábito adquirido, ou, então, por força da correnteza sádica da vida -, ou seja, enfim e portanto, um bigode-operário a serviço dessa indústria de bigodes-operários que não faz outra coisa senão embigodar de pelos encaracolados a existência a qual foi nos dada a patinar. Cônscio da presente ementa e nutrido do poder da lábia comunicativa {a qual não posso furtar-me o talento de adquirir}, venho por meio desta alertar-vos em carinhoso apelo humanitário: vão todos pastar! Ou melhor: pastai, senhores! Pastai enquanto é possível que pastem! E no lento ruminar do capim em vossas mandíbulas travadas por dentaduras encariadas, lembrai de que hoje é o dia de cofiar vossos grisalhos bigodes, senhores, e, permitam-me dizer, a cofiação, afinal, é verbo imperativo, o único que, de fato, valeria a pena conjugar hoje e sempre.
Grato.
A Direção.
*** Obs: O miserável que por desgraça da providência divina veio a este teatro de misérias destituído de um bigode (grisalho ou não grisalho) por debaixo da napa, que vá ele se virar nalguma loja de disfarces e o adquira em prestações que lhe caibam no vazio e esfomeado do bolso...


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Comunicados Urgentes e Oficiais: # Declaração de amor ao Cão...

Senhores! Venho por meio desta pedir-vos que tapeis vossas pestanas enxeridas e sedentas por bisbilhotar impressões alheias impressas nessa tábua dos mexeriqueiros virtuais porque desta vez farei eu uma declaração que interessa unicamente ao meu cachorro, uma vez que é ao meu cachorro - e tão somente ao meu querido cachorro - que desejo dirigir-me, e uma vez que eu sou livre para dirigir-me a quem minha petulância quiser se dirigir - a constituição legislativa mo permite! -, dirijo-me pois a essa belezura peluda e portadora de quatro patas almofadadas que, diferente de vós - tristes bípedes de patas duplas e peladas - não tem como prática viciada grudar o focinho nessa tela iluminada de bobagens aleatórias, e sim aproveitar o úmido cheirador para vasculhar o infinito invisível dos aromas que só as calçadas gramadas podem dar conta de oferecer, e somente aos cães, oferecidos por natureza ao exercício de cheirar e cheirar até não mais poder discernir o que é o cheirador daquilo que é cheirado. Enfim, senhores, cansei-me sobremaneira de vós, Sapiens Intelectus Petulantis, sempre a perguntar-me o porquê disso e o porquê daquilo, e, como não nasci para oráculo de Delfos, digo-vos sem ressalvas ou verrugas de constrangimento: vão todos pastar no pasto dos inquietos, e deixai-me, agora, e finalmente, abrir esse meu bondoso coração para, uma vez aberto, revelar meu amor que tanto reservo para essa doce criatura de rabo balouçador que tanto entende esse que por ora vos dirige a palavra mas que agora não dirige mais:
Meu querido cão, amo-te ao infinito das pulgas coçantes!
Grato.
A Direção.


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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Memorandos da Chefia: # O Dia Mundial das Antas...

Senhores, venho por meio desta informar-vos de que acabo de informar-me eu de que no presente dia de hoje que já se finda num crepúsculo outonal de vapores frescos comemora-se o dia mundial da anta, e como não é do feitio dessa empresa de frases geniais e pensamentos não menos brilhantes - e mui respeitada e de reputação ilibada! - e cuja chefia cabe a este sábio-de-bigodes que por agora vos dirige o diletante verbo - deixar, enfim, passar batido as datas que fazem valer o sentido último dos nossos suados esforços, ou seja, esquecer por completo desse quadrúpede que tanto nos inspira na qualidade de protagonista dos assuntos que demandam 99% dos neurônios preservados em formol pelo nosso departamento de estocagem de massa encefálica, venho, portanto, na qualidade de comandante desse empório de resistência à saúde das poucas capivaras que restam nesse mundão já de escassos capins, dedicar-vos, então, um minutinho de excelso silêncio, que, esperamos, não seja utilizado para guinchar repúdios ou vestir carapuça nenhuma...
Obs: Algum de vós, por obséquio da sagacidade reinante, saberia dizer-me quando é que se comemora o dia mundial da Paca-Mentecapta?
Grato.
A Direção.

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# Convocatórias para a guerra...

A rebelião dos anões só tinha uma única e curta bandeira: 

- O mundo não está à nossa altura! 

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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Fábulas: # O discurso pelo levantamento dos moribundos...


Confesso-vos, senhores! Estou indignado! Vejam, senhores, a minha indignação frente a esse mundo vaidoso onde pisam vossos pés-chatos! Cada qual fazendo acontecer o seu teatrinho íntimo, ou então regido por sabe-se lá qual drama de multidão, arrastado por consensos, anônimo no meio de tanta enxurrada de vozes alheias à sua própria e genuína voz. Quanta perversão! Porque ao falar de vaidade, senhores, essa é também, notem!, um tipo outro de vaidade, uma vaidade inversa, perniciosa, às avessas, a vaidade da inviabilidade. A vaidade que não se assume vaidosa, mas que despacha ao vizinho o crime de ser ele o vaidoso! Ah, como isso deixa-me indignado, senhores! Eu indigno-me! E quanto a vós, indignai-vos também, ou hão de permanecer embevecidos na mesma letargia consumidora, essa mesma que é responsável por sugar o fel doce da potência criativa? Ah, senhores! Vejam bem, apertem vossos olhos miúdos e notem que há aqueles que querem o seu refletorzinho de foco apino a iluminar o charme de qualquer exposição que brote da manga, ainda que seja o truque mais banal e gasto dos últimos séculos! São os adeptos do solilóquio exibicionista, senhores! Oh, quanta indignação me é infiltrada ao dar-me conta disso, senhores! Percebem, senhores, o quão indignado eu estou? É importante, senhores, que percebam cada músculo desse meu corpo se retesar como resposta voluntária à tamanha indignidade! EU, senhores, alerto-vos: indignei-vos! Indignei-vos assim como eu que, já desperto e preparado que estou, tomo o direito de indignar-me para que, com a vossa compreensão e sensibilidade, possa assumir para mim esse vanglorioso papel de despertar nos outros a indignação que por ora corre em disparada por entre minhas veias já engessadas por tanta carga sensível e intelectual dedicada ao derradeiro ocaso das qualidades gregárias as quais vemos naufragar nos horizontes da vida, senhores! Hoje é cada um por si, oh trágica conclusão! Erguei-vos, senhores! Erguei-vos como EU hoje estou erguido e, preparado que estou, vestido pela manta da humilde pedagógica para voz dizer em alto e bom som: INDIGNAI-VOS AGORA! Ah, senhores! Quanta necrose anda carcomendo os miolos dos nossos pares por aí! Uns idiotas exigindo protagonismos, esperando angariar prêmios da crítica especializada, e outros nascendo para ser o coro do musical, seguindo caretas e passos marcados feito pupilos de doutrinação simiesca! Oh, indignado que estou! Eu, senhores, sou contra todo esse conjunto de perversidades, de abjeções do ego, de comércio barato da alma humana! Ah, a alma humana, senhores! Que produto é esse que está em plena liquidação no mercado de pulgas da atualidade! Vejam a mim, senhores! Alguém finalmente consciente de tal vilipêndio embrutecedor do espírito! EU EU EU EU EU EU estou indignado, senhores! VEJAM A MIM em minha indignação e aprendam de uma vez por todas o caminho correto da indignação! Venham, senhores! Venham todos atrás de mim! Eu clamo por vossa anuência, eu exijo vosso respeito, eu vos quero, senhores! E é papel dos senhores quererem a mim! ME QUEIRAM, SENHORES! PELO BEM DE TODOS, ME QUEIRAM! EU ROGO! OH, INDIGNADO QUE ESTOU...
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terça-feira, 14 de abril de 2015

Fábulas: # Ascensão e queda do dublador mímico-facial de vozes famosas e não tão famosas

O dublador mímico-facial de vozes famosas e não tão famosas notabilizou-se por isso, por dublar vozes famosas e não tão famosas ao emprestar seu repertório mímico-facial para as tais vozes sem rosto, fossem elas famosas ou não tão famosas. E era de tal maneira talentoso naquilo a que se propunha fazer que - a despeito de qual voz lhe caísse às mãos -, imediatamente sua máscara ajustava-se ao mastigar sonoro daquele dono invisível, fosse ele famoso ou não tão famoso, homem ou mulher, coisa humana ou animal, animal famoso e não tão famoso. E ficou famoso, ele, o dublador mímico-facial de vozes famosas e não tão famosas, e tão famoso que o programa de maior audiência da televisão nacional o convidou para uma exclusiva entrevista no horário nobre. E foi quando abriu a boca pela primeiríssima vez que todo o universo de admiração evocado por sua mudez carismática veio abaixo. Ouvi-lo era terrível, quase um acinte à saúde dos tímpanos alheios, praticamente um assobio ranhento e fanho que maltratava qualquer gramática, fosse ela talhada ao formato erudito, ou mesmo adequada aos desvarios das gírias populares. Enfim, eis o fim meteórico da não menos meteórica carreira do dublador mímico-facial de vozes famosas e não tão famosas, que após dar a conhecer os grunhidos escabrosos de sua gutural garganta nunca mais pôde fazer-se silencioso, ainda que dublando de maneira magistral o mais variado escopo de vozes esquisitas ou não, vozes humanas ou de animais, vozes famosas e não tão famosas...


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Fábulas: # As antas e a capivara

Uma capivara entrou numa sala repleta de antas e disse em alto e bom som: 'sois todas umas belas dumas antas...' ao que recebeu como repreensão da mais combativa delas 'e quem pensas que tu és para acusar-nos de sermos antas?', emendando então a capivara: 'uma capivara! Que só não é uma anta como vós porque sabe ser uma capivara, o que, automaticamente, já livra-me de ser uma anta, seja ela uma anta parcial ou completa, como sois vós', 'e se nós assumíssemos o que somos, então, e disséssemos que belas e completas antas que somos, o que seria de nós, finalmente?'... 'Seriam capivaras', respondeu a capivara. E as antas emudeceram.
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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Fábulas: # O espectador das coisas alguma...

Um sujeito sentou-se na cadeira central de uma plateia vazia numa noite em que os espetáculos estavam em recesso. E lá ficou por horas, mirando o nada do palco descortinado e silencioso que acontecia bem diante de seus olhos atentos. Perguntado sobre a razão daquele ato doidivanas, respondeu que não havia melhor divertimento que aquele, quando ninguém o tentava divertir, quando ninguém resolvia aparecer para que o dissesse 'veja como eu estou aqui!', que, enfim, nada substituía aquela deliciosa atenção deitada em coisa alguma.

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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Fábulas: # O Dia Mundial da Verdade...



O dia mundial da Verdade era assim comemorado: às moscas. Ninguém saía de casa. Um dia de desertos auto-impostos. Ruas vazias. Silêncio absoluto. Diálogos de ecos. Uma reza infinita e lamentosa, porém não destituída de seu júbilo, que indicava o que parecia obvio:

- A vida é um teatro. Suprima-lhe a mentira, e o que sobra é a vergonha de se estar vivo.

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sábado, 28 de março de 2015

Fábulas: # O filtro de verbos...



Descobriram um filtro que seleciona o dito daquilo que vale a pena ser dito em paralelo ao que é simplesmente dito sem que se diga coisa alguma. E como é praxe não se dizer nada, ou quase nada, e no meio do tanto que se diz sem que se saiba o que se disse, o tal do filtro acabou virando uma espécie de oráculo disputadíssimo onde todos acorriam com sua bagagem de verbos-jorrantes aos borbotões, e cuja principal palavra brotada das engrenagens acionadas, ou expressão revelada, ou verdade inalienável nascida, fruto de repetições quase que recorrentes e infinitas, era, enfim, somente um curto e incisivo, e não menos sábio, NÃO...

- E o mundo, e os que nele habitam em palavrórios, finalmente estancou, estacionou, numa imprevista e celebrada felicidade de recusa, e devolvendo os pensamentos ao seu lugar de pertencimento, ou seja, ao misterioso e inaudito silêncio da consciência de cada um.


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quarta-feira, 25 de março de 2015

Obituários Exemplares: # Cornélio Clemente


Depois de mui meditar sobre o método que o levaria aos umbrais da eternidade - fosse aquela do subterrâneo sulfuroso, ou a do refrigerado teto celestial, tanto fazia -, Cornélio Clemente optou pela estricnina (havia gasto outro tanto bom tempo na pendenga em que o cianureto, de um lado, disputava sua preferência com a estricnina, do outro [tinha uma evidente queda por fármacos, herança dos tempos de leitura dos romances da famosa dama inglesa do crime]. Venceu a última, a estricnina, mas não por nocaute, e sim por pontos!) Mas que pudesse, ao menos, mirar o horizonte de sua abnegada varanda elevada pelos dois dígitos de andares! Era sua única exigência para consigo: morrer com os olhos lá adiante, afinal, se o gesto era deveras egoísta, que ao menos o foco estivesse em outra coisa senão em seu umbigo, equalizando assim a equação a que estava decidido por passar um traço. Levou, pois, o chá de camomila onde já havia ministrado o alvo pó, arauto do nunca-mais, ou do para-sempre, a depender do ponto de vista. Pois antes de sorver o cálido líquido envenenado, e radiante pela brisa fresca que lhe beliscava as bochechas, encostou-se tão precariamente na balaustrada que, não houve como impedir, desequilibrou-se e despencou. Uma verdadeira tragédia. Não deixa filhos, tampouco esposa. Somente uma xícara de chá envenenada e ainda fumegante, que, esperemos, evapore-se silenciosamente até que a fumaça se perca no fatídico horizonte, o mesmo cruel horizonte que matou desavisadamente esse que um dia fora Cornélio Clemente. Já não mais

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segunda-feira, 16 de março de 2015

Fábulas: # A convocação para que ninguém fosse...

Havia sido marcado um ato público convocando toda a população a não comparecer. Que ninguém fosse, porque ninguém indo, e somente dessa forma, a pressão ao governo seria deveras incisiva, obrigando-o finalmente a ouvir os clamores populares, naquela altura já nos limites da goela revoltada. E ninguém foi. E por ninguém ter ido - o vazio das ruas chegou a ser comparado às cercanias da usina nuclear de Chernobil -,  o sucesso fora retumbante, avassalador. Que lindo de ver! Não se via ninguém, nenhuma viva alma! E mediante a tamanha adesão em massa seguiu-se a mais óbvia conclusão: o orgulho patriótico havia atingido o cume estratosférico daquilo que se esperava de uma nação democrática, espargiu por cada esquina desértica, amalgamando à todos nessa curiosa ciranda da solidariedade que só brota naqueles instantes de crise suprema onde o ser humano, piedoso ao seu irmão de augúrio, oferece ajuda ao vizinho de infortúnio. 'Não esmoreceremos' - era o grito que ninguém gritava! 'Viva o Povo' - era a faixa que não se via! Que lindo tudo aquilo! Um verdadeiro hino calado em louvor coletivo! Pois ninguém foi. E não havendo ninguém, nada fora discutido, nenhum carro de som com ninguém em cima a gritar palavras de ordem, um tapa na cara do partido da situação, e, decisivamente, a arrancada da oposição. E como nada se discutiu - um alfinete derrubado no piche do asfalto chegou produzir um eco de ferir os tímpanos -, e não havendo debate algum, não se chegou, portanto, a nenhuma conclusão, o que já era, efetivamente, a melhor das conclusões a que se poderia esperar chegar num evento dessa magnitude. E como resultado de nada, nada foi feito. E o governo capitulou - o clamor não aclamado surtiu seu efeito. E ninguém comemorou. E as ruas já voltam agora a abarrotarem-se. Mas só até a próxima convocação pública. Que orgulho desses meus pares! Que orgulho de meu país! Gente honesta e de compromissos de princípios ilibados e irrevogáveis! 


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Fui tantos
Quantos
Não pude
Sê-los

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Na impossibilidade de ser
Fui
Muitos
E por sê-los tantos
Dei por mim
Esse um de quem despeço-me 
Por carência absoluta
De substância 

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quarta-feira, 11 de março de 2015

Fábulas # O dente extra


A firma de implante de próteses dentárias cujo destaque do mês deitava louros na funcionária Margareth Cunha por haver ela vendido tamanha quantidade de caninos postiços aparafusados diretamente na mandíbula daqueles que por distração ou imperícia desperdiçaram os originais de fábrica prometeu para breve o lançamento de um novo modelo de molar lapidado numa cerâmica cujo esmalte prometia competir em longevidade com a arcada dentária das múmias egípcias e que não viria para substituir nenhum dos outros molares originais senão para adicionar um novo e originalíssimo dente àqueles que já existiam por força da providência divina e assim publicou enfim nos jornais a novidade o que fisgou de imediato toda uma clientela que mesmo portadora de uma mastigação perfeita creditou futuro na promessa de poder mastigar melhor bem como falar melhor e por que não pensar melhor...


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quarta-feira, 4 de março de 2015

Fábulas: # O escritor e os escritores


Era uma vez um escritor que, diferentemente dos escritores de seu tempo, sabia que era ele um escritor condenado a viver nos piores tempos imagináveis para que um escritor, como ele efetivamente o era, desse o azar de viver. Morreu. E muito tempo depois apareceu outro escritor que, convicto que estava de ser ele o mais azarado dos escritores, e entendendo, diferentemente dos escritores de seu tempo e dos tempos já passados ou futuros, que aqueles tempos que corriam agora eram, sem dúvida nenhuma, os piores possíveis para que um escritor, como ele efetivamente o era, praticasse a arte da escrita. Morreu. Outro escritor veio e, numa geração seguinte de escritores que enchiam laudas de papel impunemente, nutriu-se ele próprio dessa convicção que era, para sua desgraça e infortúnio, a sua triste maldição: ser ele o escritor que teria de lidar com a mais nefasta época que se poderia imaginar para que se viesse ao mundo e fizesse dele algum possível argumento de escrita. Morreu. E assim, por capricho do destino e sorte do acaso, a mesma história vem acontecendo repetidamente: vez ou outra o mundo dá a sorte de abrigar entre os seus aquela ovelha negra que, diferentemente das outras de lã alva e fofinha e que se empanturram de capim até embalofarem, mastiga com amargor o produto da abundância dos dias...

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terça-feira, 3 de março de 2015

Sou uma parte
Não queiram-me maior do que sou
Minha grandeza está nisso:
Em não ser ninguém 
E tanto melhor fico
Quanto puder eu passar incólume 
Sumindo
Não tirem-me de mim esse prazer: o de recusar dar-me ao prazer dos outros
Se falo é porque desejo calar-me 
Se apareço é porque o que me move são os desaparecimentos
Quando escrevo esgoto-me em aflições até o ponto final - bendita sentença!
Minha eternidade será medida em amnésias garfadas à força 
Sou um ator 
Fingir é um jeito de não ser
Ou ser não sendo
Escondo-me em propósitos só meus
Sem aos teus olhos fazer-me lembrar 
Sem pedir qualquer licença 
Sem que saibas que um dia
Existi

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Hei de ser sempre um personagem de mim mesmo
Para que no reflexo daquilo que eu sei que não sou
Possa finalmente
Saber
Quem
Sou

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domingo, 1 de março de 2015

Fábulas: # A Dupla de Nado Sincronizado...


A dupla de dançarinas aquáticas Dolores & Dóris, duas das mais destacadas nadadoras de nado sincronizado que a história haverá por justo mérito – e por ainda muito tempo - gazetear, festejar e aplaudir (as pioneiras Berenice & Blanche já haviam anunciado a aposentadoria das toucas, ainda que, era regra geral admitir, dessem muito o que fazer com seu submerso talento lírico), ambas, Dolores & Dóris, ganhadoras dos mais concorridos prêmios referentes ao conjunto de competições aquáticas onde o nado sincronizado representa, sem dúvida alguma, a cereja dos olhares, enfim, ambas, Dolores & Dóris, com seus cabelos longuíssimos presos em coques besuntados com pasta a prova d’água, cada qual espetada nos focinhos finos com um pregador de ouro reluzente a produzir faíscas de brilho e que tapavam as narinas das competidoras para que, uma vez de cabeça para baixo e embaixo d’água, fosse evitado o que seria uma tragédia de âmbito nacional, ou seja, o afogamento trágico de ambas as dançarinas aquáticas que mundo nenhum jamais viu melhores (havia quem dissesse que as pioneiras e já retiradas Berenice & Blanche eram do mesmo quilate das referidas Dolores & Dóris), enfim, depois daquela marcha triunfal até a beirada da piscina, ambas feito espelho refletido uma da outra – pernoca vai, pernoca vem: tchum, tcham, tchum -, e, finalmente, dentro d’água após um mergulho praticamente siamês, coube observar que nenhuma delas, Dolores e tampouco Dóris, decorridos longos minutos de expectativa, voltava à superfície para dar início ao tão esperado número, sumindo por debaixo d’água sem que tivéssemos qualquer notícia de que um dia, depois do estrondoso sucesso das pioneiras Berenice & Blanche nas piscinas do circuito mundial de competições aquáticas onde o nado sincronizado representa, sem dúvida alguma, a cereja dos olhares, essa nova e reluzente dupla festejadíssima de dançarinas aquáticas, Dolores & Dóris, existiu, quiçá estampou por justo mérito seu nome nos jornais para ser gazeteada, festejada, ou aplaudida, tanto hoje quanto amanhã e por horizontes ainda futuros. Pois o que se seguiu, em razão do sumiço repentino de Dolores & Dóris, foi um mergulho coletivo atrás de ambas as dançarinas aquáticas, primeiro o técnico artístico responsável pela coreografia do balé submarino, o Sr. Bolaños, que uma vez na água também nunca mais emergiu aos vapores da superfície, gesto repetido por toda a audiência que, enciumada pelo ato de coragem piedosa uns dos outros, cada qual em seu termo, atirou-se piscina adentro para o silêncio eterno das profundezas misteriosas, só restando para a continuidade da competição a bancada de jurados, que por não saber nadar, resistiu ao ato de bravura coletiva e permaneceu onde estava, em testemunho fiel ao epílogo funesto de tantos aqueles que, contaminados pelo alvoroço geral, meteram-se a sumir junto com a dupla de dançarinas aquáticas Dolores & Dóris, ambas postas no pódio da história como as herdeiras das pioneiras Berenice & Blanche...

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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Os surdos e a orquestra...


A política de cotas para minorias não-privilegiadas, ou privilegiadas pelo desprivilegio, ou então acometidas de algum infortúnio da ordem biológico-funcional, enfim, a coisa de acolher os desacolhidos era coisa que andava de vento e popa, e com vivas de viva à igualdade, ainda que tirada à força das idiossincrasias misteriosas impostas pelo destino, que sem chamegos de justiça, outorga a cada miserável a cota de miserabilidade que lhe cabe sem consultá-lo ou pedir anuências prévias de autorização. E foi assim, nutrido pelo espírito da boa vizinhança, que reservaram alguns assentos para portadores de audição perfeita na sala de concertos onde a orquestra, até então aplaudida unicamente pela massa surda, tocava. E foi assim que ela própria, a orquestra, foi à falência, tão brutalmente desmascarada em sua desordem rítmica que até os surdos, a partir de então, não tiveram outra alternativa senão voltar a ouvir, rogando que interrompessem os trabalhos e causando novo alvoroço, porque agora, mediante a formação de nova maioria, composta desta vez por ouvintes de orelha afiada, já segregava aqueles poucos e míseros que, afortunadamente, insistiam em permanecer surdos, e surdos tanto para aquilo que não se ouvia porque não era dado a ouvir, quanto para todo o resto de barulho, que por ser barulho - afinado ou não-, exigia ouvintes...
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Enforcamento da Faxineira...


Razões não havia, ou eram tantas que não sobrava motivo algum, somente um desejo incontrolável que Odorico experimentou aquela manhã de, finalmente, enforcar a sua faxineira. E só não levou a cabo o plano porque nunca na sua vida teve uma faxineira que faxinasse os seus curtos domínios domiciliares. Porque havendo uma, uma que pudesse chamar de sua, pensou Odorico, definitivamente não só a enforcaria como também serviria à ela um delicioso chá de camomila açucarado com arsênico. Mas antes era preciso arrumar uma faxineira que aceitasse sem admoestações maiores o seu destino de epílogo dramático, porque Odorico gostava das coisas bem explicadas, e nada do que planejava ficaria escondido nas frestas da sua íntima perversão assassina, não! Uma vez encontrada a faxineira, a perfeita candidata e aspirante ao enforcamento seguido do envenenamento por chá de camomila açucarado com arsênico (quem sabe também não a atirasse janela abaixo envolta num alvo lençol de linho?), Odorico faria questão de travar uma conversa franca com ela, explicando suas intenções da maneira mais cordial e afetuosa possível, convencendo-a de que não havia qualquer sentido em começar uma história entre ambos se não houvesse logo de cara um ápice trágico, qualquer coisa que justificasse o enredo dos dias, e que barrasse a modorrenta tirania das tramas sem sal onde as personagem rodeiam por décadas os próprios rabos até que, chegado o momento fatal, literalmente morrem de tédio sem nunca terem sequer arreganhando os dentes para a sombra. Odorico sabia que as grandes figuras são feito pavios de curta extensão, aparecem e já desaparecem, sem sobra de rebarbas ou desvanecimentos em intermináveis palavrórios sentimentais, e que, por isso, a não ser por profunda falta de espírito da escolhida, concederia à ela, à faxineira sortuda, a chance de virar protagonista, enquanto ele, servindo-se do manto humilde dos coadjuvantes, sumiria nos anais da história como mais um a passar ao fundo do palco sem chamar qualquer atenção, mesmo do mais estrábico dos espectadores colado à cena...
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Depois de repetidas interpretações da 5ª de Mahler, lia-se no epitáfio:
'Aqui jaz aquela orquestra, que acometida de adágios demais, foi condenando seus naipes a enferrujarem num lento e soluçante engessamento lacrimoso, até que não sobrassem forças para ferir as cordas, fôlego para soprar os metais, músculos de suporte às madeiras, coração palpitante para o rumo da percussão, até que tudo parasse, o maestro por cima do púlpito enraizasse, até que o público congelasse, até que o silêncio rompesse, e sem desejos de retorno '...




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Fábulas: # As Cortinas Precoces...


Da algazarra que se seguiu após o final do espetáculo na forma de conjecturas inflamadas sobre a razão do pano haver sido erguido muito antes do combinado - o que acabou por colocar a nu o quarteto de atores que descansava esparramado no sofá do cenário, cada qual com o queixo apontado para cima e sem a preocupação de defender qualquer personagem em solilóquio dramático senão à triste e irremediável máscara que aos envolvidos a providência divina não rogou piedade em maquilar -, chegou como resposta ao conhecimento geral, apimentado pelas odes da surpresa que costuma temperar o inesperado dos assuntos graves, que o público, não informado sobre o incidente imprevisto – e crendo que o que via era o que de fato deveria ver como parte integrante do espetáculo -, não só rendeu fervorosos aplausos àqueles que, desprevenidos, tiveram de sambar para esconder as barrigas flácidas, como não mais conseguia arredar o pé da sala de apresentação - e isso ainda depois de horas corridas quando os atores, evidentemente desesperados, haviam há muito buscado refúgio em seus respectivos camarins -, tamanha fora a gratidão por haver naquele exato instante que recusava-se a desvanecer no limbo esfumaçado da memória presenciado tão incrível performance, que se, como é típico da pouca habilidade de discernimento das massas, não sabia como traduzir, traduzimos nós agora e aqui como a mais cristalina demonstração da verdade da alma humana, quase como um testemunho genuíno e irretocável do grande desespero que é saber-se vivo e diante de um bando outro de gente igualmente viva e que não tem outra intenção na vida senão julgar aqueles que, desprevenidos ou não, cruzam os entroncamentos da existência com as calças nas mãos, performance que ensaio nenhum, mal desconfiava disso o público, daria conta de reproduzir com tamanha contundência dramática, restando aqui, e por que não?, congratular com honras merecidas o anônimo contrarregra, que sabe-se lá por qual motivo, naquela fatídica noite, quis antecipar o ritmo natural do movimento dos astros...
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O misterioso país e sua intrigante engenharia de controle demográfico...


Havia esse misterioso país que ninguém sabia ao certo onde no mapa deitava suas fronteiras, tampouco sobrando registros comprovados de que alguém por lá tivesse visitado os seus domínios, conversado com o seu povo, anotado detalhes geográficos, topográficos ou climáticos, quiçá conhecido a língua de comunicação entre os seus habitantes e qualquer outra espécie de testemunho fotográfico ou documental de que, de fato, o tal país existia para além dos boatos de que havia em algum lugar esse dado pedaço de terra onde era por hábito praticar uma intrigante e jamais vista engenharia de controle populacional. Fruto do conto da carochinha ou não, a curiosidade, em compadrio com a imaginação, vence por pontos a batalha com raciocínio lógico e, esfumaçando a divisória entre o que é real com o perfume da fantasia, absolve-nos de qualquer provável devaneio para dizer que o tal mecanismo referido consistia em levar a público um determinado compatriota para que, diante de um microfone apontado para a praça abarrotada de populares, pudesse ele, enfim, dizer algo de relevante – qualquer coisa que fosse! - aos que lá se reuniam para ouvi-lo. E, como era praxe nunca haver nada de importante para chamar a atenção de tanta gente quieta e com as orelhas atentas, o orador, sempre sorteado a esmo, era, portanto, levado à degola. E assim, em escassez de palavras justas ou novidades importantes, a demografia mantinha sua saúde em perfeito equilíbrio, ceifando do seu quadro de funcionários tantos quantos emudeciam – ou quando ousavam dizer aquilo não valia a saliva de tê-lo dito -, todos pobres azarados, sorteados pelo destino, em condenação por absoluta falta de conteúdo.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Falecimento da Estátua Viva

Por força do matraquear anônimo que levou à baila pública a notícia de que aquela determinada estátua viva havia morrido, exatamente aquela que na praça do coreto e ao lado do chafariz simulava ela própria um querubim a despejar água na fonte dos prazeres, enfim, soube-se que a estátua viva de torso prateado e semi-nua e com um dos pezinhos suspensos ao vento na pose barroca de algum anjo alado-gorducho a apontar o beiço como quem implora ao céu um beijo estalado, ela mesma, enfim, a estatua viva, já não mais vivia. Porém, acostumada a engessar em vida, coube ganhar da morte a rigidez de outrora, ou melhor, dobrada, e dessa vez ainda mais impressionante, porque, enfim, se é hábito de quem vive desmanchar-se sem rigor algum, espera-se do defunto um desleixo de exponencial habilidade, desmilinguindo o esqueleto para nunca mais tê-lo de pé, coisa que não aconteceu, ao menos não com aquela estátua viva, que agora estátua morta, enfim, preservava a placidez de um bloco firme de mármore, e toda ela lapidada na expressão perfeita e imutável dos querubins talhados com esmero, coisa só comparável ao David de Michelangelo que, enfim, não se sabia se antes de ser estátua morta era, de fato, um David vivo, o que se sabe, ou se soube, é que, advento do bulício geral, uma enormidade de afluxo de gentes foram conferir a recém falecida estátua viva, agora muito mais visitada do que quando, enfim, de fato vivia, havendo passado anos até o presente dia sem que um único tônus muscular fosse desmanchado em função da eternidade imposta, período em que, nota-se, não faltaram romarias dos quatro cantos do planeta a celebrar a maravilhosa estátua que antes vivia, e que, hoje, enfim e por fim, e para sempre, condenada estará à celebridade imutável dos blocos rijos de matéria bruta.

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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Fóssil do Homem Honesto...

Em recente escavação arqueológica num dado sítio dos recônditos improváveis da Mauritânia, misturado aos cacos de cerâmica do neolítico, foi arrancado da terra um vaso intacto, em cujo interior, não menos intacto, jazia encolhido o fóssil de um homem honesto, e de preservação tão impressionante que ainda dava-se a sorte de vê-lo balbuciando a sua última frase. O arqueólogo-chefe da expedição requereu, então, que imediatamente lhe trouxessem um amplificador auricular para não perder a chance de ouvir o que aquele Matusalém-Jurássico havia a mastigar tão baixinho, imaginando que a força de seu maxilar não suportasse tanto tempo o rarefeito cheiro da atmosfera moderna e, enfim e por fim, calasse-se para todo o sempre. Uma vez chegado o cone-amplificador, dobrou-se o arqueólogo-chefe até à distância de ser possível captar qualquer mínimo ranger de dentes, e foi então que pôde ouvir em muito claro e bom som:

- Vão todos à merda!


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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Fábulas: # A precipitada aposentadoria do Caçador de Codornizes...

O caçador de codornizes de repente e sem aviso prévio anunciara que deixaria de caçar codornizes e assim efetivamente o fez abandonando portanto duas coisas ao mesmo tempo não somente desistindo de ser um caçador de codornizes como também de ser um caçador de qualquer coisa que voasse fossem codornizes ou não e interpelado do porquê dessa sua atitude radical o agora ex-caçador de codornizes dissera que as codornizes de hoje fervilhavam nos céus feito pernilongos e que bastava atirar sem qualquer mira para que um punhado de codornizes caíssem mortas no colo de qualquer diabo que apontasse para as nuvens fato que menosprezava por completo qualquer perícia do caçador transferindo o mérito para as próprias codornizes que agora pareciam que voavam justamente para serem abatidas por qualquer idiota que atirasse em sua direção e não bastassem as codornizes a povoar os céus os céus parecem também fervilhar com toda a espécie de pássaros que decolam somente com a ideia de atulhar os horizontes e sem qualquer rumo ou objetivo senão serem abatidos eliminando assim o ardiloso labor de qualquer caçador de exercitar a paciência e a mira para uma vez decidido a atirar haver nesse último estampido terminado um processo de meticulosa artesania cuja esperança era a de atingir alguma codorniz e caso não o fosse possível engolir então o fracasso que justamente porque entalava na garganta motivava o caçador a aprimorar a sua técnica de caça e novamente interpelado do porquê desistir de um ofício tão fadado ao sucesso uma vez que um tiro dado a esmo poderia fazer despencar dos céus não somente uma codorniz como também uma águia um gavião ou um albatroz o caçador de codornizes ou melhor o agora ex-caçador de codornizes dissera que antes a mediocridade era privilégio de poucos e tornando-se moeda barata era melhor morrer de fome do que convencer os céus de que os céus é que estavam errados por permitirem que tantas asas revoassem por seus domínios fossem elas asas de codornizes ou de qualquer outro pássaro raro ou não...


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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Os indignados são sempre solitários. Porque essa coisa de coletividade é sempre um aprender a resignar-se na dignidade indigna. E os indignados, ao menos os indignados verdadeiros, nunca juntam-se para indignarem-se em grupo e exigir maior dignidade de outros, sejam lá estes quem forem. Os verdadeiros indignados sabem perfeitamente bem que não há responsáveis diretos pela indignidade da vida, ou todos o somos, o que, em ambos os casos, anula a ideia de eleger alguém, ou 'alguéns', como autor(es) da nossa miséria indigna. E essa, precisamente, é a maior das bobagens: a indignação é o motor de mudanças! A indignação é por demais preciosa para ser confundida com revoluções progressistas. Um verdadeiro indignado preserva para si a sua indignação porque sabe que é ela um bem verdadeiro e incorruptível. E tudo o que é compartilhado, sabe o indignado, é coisa passível de corrupção, ou, ao menos, de tempo deveras perdido na tentativa de convencer o mundo de que é preciso indignar-se.

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A paradinha da bateria evoluiu de síncopa para uma semibreve, mas do tipo de semibreve longuíssima. A mulata, ainda assim, sustentou o rebolado por alguns eternos silenciosos segundos, e depois congelou. Todo o resto congelou também - baianas, mestres-sala e portas-bandeira, alegorias, plateia e foliões dentro e fora da avenida. E congelados permaneceram até que a neve começara a cair. E feito doces polvilhados por açúcar, cada estátua foi crescendo em uma camada de branco pelo cocuruto e até que só o nariz sobrasse para fora, e depois nem mais o nariz, talvez somente uma única pena de pavão remanescente da última fantasia do destaque que pairava altíssimo no derradeiro carro alegórico. Tudo coberto por um cobertor gigantesco de neve, abafado por uma outra melodia, dessa vez uma melodia branca e carregada de notas longas, nada percussionadas. Passaram-se mil anos, e as escavações descobriram ali os vestígios de uma antiga civilização, e ao que tudo indica bastante primitiva, e cujos habitantes, mumificados, comunicavam-se praticamente pelados, de posse de tinturas no corpo, e de um estranho sorriso paralisado na face...
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Obituários exemplares: # O fim da foliona Betina Albuquerque

Após incontáveis acareações reconstituições e encenações in loco nunca se conseguiu chegar à conclusão de quem ao certo foi o autor do fatídico pisão no rabo de pavão da foliona Betina Albuquerque o que se provou sem que houvesse qualquer fumaça de dúvida é que com o tal derradeiro pisão a foliona Betina Albuquerque fora parar ao chão junto com o seu rabo de pavão e que de lá do chão não levantaram-se nunca mais pisoteados que foram pela ala das crianças e logo após atropelados pelo carro abre-alas que sem se dar conta de Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão estatelados ao cimento da avenida continuou seu trajeto rumo à dispersão mas não sem antes prensá-los ao chão feito massa de pão deixando o corpo de Betina Albuquerque e o seu rabo de pavão sovados ambos aos sabores dos rodopios das baianas que vindas na sequência também fizeram a sua parte ao chutar a foliona Betina Albuquerque que a essa altura já sentia os dentes lhe escaparem da boca o que de fato se confirmou quando o casal de mestre-sala e porta-bandeira lha desferiu uma baita duma bicuda no maxilar como consequência do movimento de um desses passos nobres ao qual a foliona Betina Albuquerque junto ao seu rabo de pavão só poderiam render admirações uma vez que a especialidade de ambos era sambar e não bailar ainda que agora nem isso mais era viável haja vista que o rabo de pavão de tão amarrotado estava mais para penugem de frango de macumba e ela pobrezinha toda ela banguela e à imagem e semelhança de uma santa surrada na periferia e se ainda não era completamente santa porque ainda não era morta para ser beatificada pelo papa o fato é que cumpriu a primeira etapa do processo morrendo já quando a velha guarda que acreditava-se iria toda ela empacotar antes da foliona Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão serem pisados proferiu bengaladas no crânio de Betina Albuquerque que já sem vida e com os miolos espalhados pela avenida por sorte do destino fora recolhida por um passista que munido da perspicácia dos malandros alocou o cadáver atado ao rabo de pavão na última alegoria da escola que era justamente e por sorte do destino uma alegoria que trazia um caixão puxado por tantos outros foliões fantasiados de coveiros e assim a foliona Betina Albuquerque encerrou a sua participação na história do samba ainda que essa história prometa capítulos futuros uma vez que a agremiação enseja para o ano que vem um enredo em homenagem à Betina Albuquerque cujos registros de canonização já foram delegados aos ministros do vaticano e que na passarela da alegria será lembrada com sangue suor e muitas penas.... de pavão.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Procura-se um idiota...

Em virtude da recente e não anunciada escassez de idiotas no mercado de varejo, saíram correndo às ruas à procura de alguém que se prestasse a ser o novo idiota do momento, alguém com potencial inequívoco para a idiotice, que talhasse aquele perfil idiota típico dos aspirantes ao trono dos idiotas, um não-se-sabe-quem com certo rebolado idiota que se encaixasse aos padrões idiotas, e, sobretudo, alguma alma de eminência idiota que suportasse contente a carga de festejos, apupos hormonais, e toda a sorte de uivos coletivos que só aos idiotas verdadeiros é dado receber, e disso fazer a sua razão idiota de vida. Pois encontraram aquele a quem vislumbravam futuro tão promissor e imediatamente interpelaram o candidato com a pergunta já prenhe de expectativas, a saber, então, se ele aceitaria tornar-se um completo idiota para o bem completo de todos os que ansiavam pela eleição do mais novo idiota do momento, e por qual motivo eu aceitaria tornar-me um idiota, perguntou de volta o interpelado, ora, veja bem, o senhor já é praticamente um idiota completo, o que lhe falta é um trabalho mais efetivo de marketing, de venda da sua imagem para que os outros possam conhecer do senhor tudo o que é preciso que conheçam, e assim, portanto, lhe render as admirações e aplausos que só os idiotas verdadeiros em sua prática ininterrupta de idiotices diárias são alvo, e o que isso traria vantagens para mim, retrucou o quase convencido a tornar-se o novo idiota do momento, vantagens inúmeras, a começar por arrancar fora da sua pessoa qualquer qualidade de crise ou pensamentos nebulosos que possam por ventura vir a esfumaçar essa sua consciência de tendências idiotas – note que todo idiota que se preste a ser o que realmente mostra ser, ou seja, um retumbante idiota, é sempre dotado de uma alma translúcida e cristalina, quase feita do mesmo material dos cristais das lojas de taças de cristais – a assim alumiar-se sem medo da luz solar, e para que todos possam o ver naquilo que você realmente sente e mostra sentir, ou seja, dar ao conhecimento alheio todo um repertório vazio de frases feitas e de clichês já mastigados por não sei quantas outras mandíbulas – note que o verdadeiro e completo idiota é sempre esse arauto da voz pública, um legítimo representante do matraquear anônimo da massa sem rosto – e dessa forma, então, cair nos braços daqueles que estarão preparados para carregá-lo até o lugar em que você disser que deseja estacionar, ainda que esse lugar seja o inferno. E além de tudo isso, saiba que o idiota com carteirinha de idiota, para além de todas as vantagens citadas, exala também o raro perfume do charme, esse elixir que faz levitar as narinas dos que tem narinas para cheirar mas que nunca souberam, ele próprios, vaporizar pelos sovacos o aroma que tanto admiram, porque o idiota é exatamente isso, a projeção estúpida e idiota daquilo que os outros, por falta de tarimba ou disciplina para galgar o cume rarefeito da idiotice, sonharam um dia poder ser. E já convencido de dar-se ao sacrifício de vir a ocupar o lugar vago de o idiota do momento, o sujeito interpelado só reuniu fôlego para mais uma única de fulminante pergunta, essa que veio a ser, e se eu quiser deixar o bigode crescer, sobre isso trataremos mais adiante, a bem da verdade é que já faz algum tempo em que não temos um idiota-de-bigodes e talvez seja esse o exato momento de apresentar ao povo um novíssimo idiota-de-bigodes, talvez um idiota-de-bigodes venha a ser um idiota-de-bigodes-de-meia-idade, quem sabe até um idiota-de-bigodes-grisalhos-de-meia-idade, não deixa de ser uma excelente sugestão!


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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Fábulas: # A Loja dos Suicidas...

Um suicida entrou na loja de artigos para suicídio e perguntou ao atendente se a corda da forca era de qualidade, ao que recebeu como resposta que era sim, protocolada, inclusive, pelo órgão público que regia a satisfação dos consumidores para produtos vendidos no comércio varejista, e, ainda assim, havendo qualquer problema de fabricação, que voltasse imediatamente que a troca seria garantida, mas que duvidava peremptoriamente de que o material fosse falhar, uma vez que ontem mesmo havia vendido o mesmo produto para um velho hipocondríaco cujo nome já aparecia na sessão de obituários do jornal, veja, aqui está o obituário para que não me deixe passar por mentiroso, ótimo então, disse o suicida, mas e quanto ao patíbulo, isso não fornecemos, é de responsabilidade do consumidor providenciar onde pendurar a corda bem como uma cadeira ou coisa que o valha para equilibrar-se a fim de desequilibrar-se depois para aí sim pender pendurado pelo pescoço e enfim suicidar-se, mas isso é muito difícil, alegou o suicida, não é possível que alguém ajude-me a realizar tal procedimento, alguém da loja mesmo, quem sabe até mesmo o senhor que já está bastante acostumado com os mecanismos de incentivo da prática alheia de se ceifar a vida, definitivamente não, meu senhor, nesse caso eu me tornaria assassino, o que é, evidentemente, absurdo, uma vez que eu apenas ofereço produtos para que as pessoas se assassinem deliberadamente, o que me enche de satisfação e orgulho, uma vez que me sinto bastante realizado quando alguém decide mandar uma banana para essa vida sem sentido e sem cor que por sabe qual lá motivo nos acostumamos a amar, o senhor fala como um verdadeiro suicida, é exatamente isso o que penso, pois acha que nunca tentei me suicidar, evidentemente que sim, e várias vezes, e por que nunca o conseguiu, é essa pergunta que martela a minha cabeça dia e noite, todas as vezes em que tento engolir um veneno, cortar os pulsos, meter uma bala na cabeça, alguma coisa acontece que impede a minha ida ao além devolvendo-me a esse desgraçado ao qual já acostumei-me a ser, não seja por isso, eu poderia muito bem empurrá-lo do parapeito do meu apartamento, são quinze andares, aposto que ao chegar lá embaixo o senhor já não mais existiria, ou existiria somente a vossa carcaça estatelada ao chão, mas aí o senhor é quem se tornaria um assassino, pois eu não me importo, uma vez que logo depois seria eu a dizer adeus à vida ao fazer uso dessa corda que teria de encontrar algum lugar para amarrar e depois equilibrar-me numa cadeira ou coisa que o valha e depois desequilibrar-me para aí então pender pendurado com o pescoço asfixiado, o senhor é muito gentil, vamos fazer assim então, eu o espero até conseguir enforcar-se, depois, se tudo der certo, eu me atiro janela abaixo, poderia ser assim sim, mas, se o senhor não se importa, eu gostaria de vê-lo morto primeiro, isso me daria um empurrãozinho final, o ânimo decisivo para dar cabo da minha própria vida, então o seu desejo é matar-me jogando-me janela abaixo, de forma alguma, meu senhor, não me tome por outra coisa que não sou, meu desejo é ajudá-lo a se matar, uma vez que o senhor mesmo foi quem confessou que há tempos empaca nisso e não consegue matar-se, pois isso é o que eu tento fazer, afinal, sou eu quem vende artigos para suicidas e não o senhor, disso não posso contrariá-lo, então ponha-se daqui para fora e não me aborreça mais, farei isso sim e desculpe-me por aborrecê-lo, e ficaria muito grato caso o senhor soubesse de uma vaga para trabalhar como vendedor nessa sua loja de artigos para suicidas e pudesse eu, quem sabe, vir a ocupá-la, para isso acontecer teria que me matar, meu senhor, a loja só tem vaga para um único vendedor que sou eu, não seja por isso, para que essa arma, não se assuste, eu só vou puxar o gatilho, ajudá-lo a se matar, exatamente como o senhor sempre o quis, mas isso o tornaria um assassino, e qual é a diferença entre matar os outros por tabela e matá-los diretamente, a diferença é enorme, pois eu não vejo a coisa assim e além disso eu preciso de um emprego, portanto, foi um prazer conhecê-lo meu senhor, e tenho certeza de que a corda me seria muito útil caso fosse eu a querer aparecer amanhã nas páginas dos obituários...

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