quarta-feira, 26 de novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fábulas: # Guilhermino Constâncio, ou, A verdade e nada mais do que a verdade...


Guilhermino Constâncio gabaritava-se de ser o dono dessa fina espécie de escrúpulo em extinção cujo resumo poderia ser bem pintado como o compromisso primordial com a verdade e nada além da verdade. Aliado à ponderação matemática que cuida de somar isso mais aquilo para que desse isto sem pôr nem tirar quiçá pestanejar, Guilhermino Constâncio primava por perseverar entre o último dos dialéticos à serviço da corroboração fiel e imparcial dos fatos. E quando naquela manhã abriu o jornal e leu o seu nome impresso na sessão dos obituários do dia, correu para o espelho e certificou-se de que estava, de fato, vivo, haja vista que seria bastante improvável - a análise minuciosa das circunstâncias concordava com ele - que um defunto pudesse dar-se ao exercício de se dirigir ao espelho para certificar-se de estar morto (que o dirá vivo!), e de que, portanto, aquilo que publicavam não passava da mais pura e enfática mentira sedimentada sob patamares indiscutivelmente caluniosos o que acabara por injetar em Guilhermino Constâncio uma veia ruborizada de ira em sua testa que somente espocava em situações de extrema justificativa e na face daqueles que reuniam por direto jurídico estampar a indignação. Pensou em ligar para o jornal e pedir uma imediata retratação mas como ainda não havia batido aquelas primeiras horas da manhã que fazem tingir de luz os últimos arroubos silenciosos da madrugada, e concluindo com a exata parcimônia do raciocínio lógico que a redação do folhetim haveria de estar às moscas, coube à Guilhermino Constâncio, então, uma difícil decisão interna que culminou num ato de extrema hombridade que devolveria à ele a reputação perdida ainda que por quase insuspeitos instantes: debruçou-se no parapeito da varanda de seu apartamento e num átimo de segundo estufou o peito com aquela resoluta coragem só atribuída a quem usa o nariz para aspirar a justeza e, enfim, pulou para o vazio do nunca mais. No dia seguinte o mesmo jornal publicou em primeira página o passo a passo do suicídio, sem tirar nem pôr, e com a devida assepsia informativa dos acontecimentos pregressos até a culminação do ato fatídico. Algumas páginas adiante e lá estava, numa errata com letras diminutas e quase ilegíveis, as desculpas do redator pelo erro no obituário da edição da véspera. 

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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Por que será que é preciso morrer para dar atenção àquilo que quando vivo passávamos ao largo?
Será que é preciso deixar de existir para saber que 
De fato
Existíamos
E pouco disso
Sabíamos?

Será que a vida é isso
Um adiamento
Que quando deixa de ser
Virando esquecimento
Dela lembramos com saudoso
E irreversível
Lamento?


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Vou andando
E já quando ando já mudo o jeito de andar
Porque, afinal
Quem anda não sou eu somente
Mas também o chão
Que ao ser por mim andado
Me anda por inteiro
E completamente

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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Falo de mim como se fosse outro que não eu
Eu próprio não interesso-me por quem sou
Não nutro identidades
Ou, se as crio
Prazer maior tenho em colocá-las em contradição 
O que sobra é somente uma fronteira sem substância
Isso sei que sou - nada!

Vazio
Flutuo olhando a mim
Que vejo
Não defendo verdades
Não havendo quem creia
Como então crer?

Tomo esse protótipo imperfeito de quem imagino ser
E divirto-me 
Nada
De fato
Sendo


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Se nos deram o bendito verbo
Por que mastigamos ele de um jeito que se mastiga um pedaço de pão? E como se o alfabeto fosse coisa de se digerir?
Entre facilitar as duas equações: a da gramática e a do estômago
A mim chega mais ao gosto matar a fome da carne
Enquanto reservo à dentadura uma inutilidade mais rica do que simplesmente a de se fazer comunicar no regime da farinha de trigo

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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Atravesso a esquina e já me canso
Mas não do tipo de cansaço que é irmão do tédio
Não! Minha esquina é coisa atribuladíssima e exige de mim arroubos de explorador de cordilheiras
Agora, e quanto ao tédio?
Pois tédio eu tenho de quem precisa atravessar o mundo
Para entender que é somente da esquina de nós
Que não podemos nunca - ainda que queiramos! -,
Sair

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domingo, 16 de novembro de 2014

A verdade é que tenho duas metades juntadas
Uma é de mentira
A outra
Inventada

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O essencial só é visível
E
Aos olhos!

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Meu maior personagem é o mundo
Que sou eu

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Não faço esforço nenhum para nada
Ainda menos para ser esse que sou 
Sou o que sou e sem remorso algum de o ser
Minha identidade é saber que existo
E isso basta
Meus sofrimentos são de ordem diversa ao da substância íntima que tantos imaginam habitar o interior de suas almas
A minha alma padece de vazios incomensuráveis 
Sou ninguém!
E por isso sou tantos sem a nenhum poder-me ater - eis a minha sina!
Sou essa moldura oca jogada ao palco do mundo 
Não escondo-me atrás de personagem algum
Sou eu próprio o único personagem possível
Se sou só isso
Já sou infinitos  

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sábado, 15 de novembro de 2014

Tenho especial apreço à insignificância 
Enxergo impérios em coisa alguma
Um sopro e já é um vendaval!

Com que preguiça não me chegam os grandes temas!
A intensidade cansa-me os ossos
Sou antes um preguiçoso
Demorando pelas beiradas

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Para que alguma coisa aconteça é preciso que nada aconteça
Para que nada aconteça basta que nada continue acontecendo
O que já é um baita 
De um
Acontecimento!

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Ser ator é viver povoado de ninguéns
Quando o ator é
Já vai com pressa
De deixar
De ser

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O cardiologista morreu de ataque do coração
O oncologista cancerou e morreu 
O nefrologista teve um piripaque irreversível nos rins e hoje é memória 
O geriatra de tão velho finou-se de velhice
O especialista em trauma teve um traumatismo e se foi
O neurologista fora vítima de um curto-circuito nos miolos e já não existe mais
E o ator?
Esse foi morrendo e desde sempre
Uma vez de cada vez fingia que morria
E assim foi vivendo
Em soluços breves de existência 
Até que um dia morreu completamente
Mas de doença nenhuma
Senão por esgotamento
Da paciência 

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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Um dia hei de ser ator por inteiro
Hoje ainda junto pedaços de fingimento colados entre brechas de consciência 
Um dia serei só isso
Uma despedida de mim 
Cimentada num bloco enorme e inteiriço
De mentira


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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Estufo o peito com coragem e digo a mim próprio:
Serei sempre aquele quem quiser ser
Mas como nunca sei esse que sou hoje
Espero o amanhã
Curioso para saber quem fui
Ontem

E assim vou adiando-me 
Tropeçando nas vésperas
Dos tantos
De mim

Até quando, cansado
Compreenda:
Por ter sido vários
Termino aqui
Sem nenhum  

Ninguém
É quem sou 

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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Fábulas: Da experiência de onde procede a inteligência humana

Uma junta de pesquisadores acadêmicos da área comportamental fez julgar que a inteligência humana é coisa medida menos a partir da capacidade de raciocínio do que pelo cálculo sistemático de impulsos programados e inferidos por estímulos externos. Desta feita - e para provar a teoria -, reuniu-se numa praça pública um certo número de transeuntes e durante algumas horas um alto falante comunicava à todos de que todos, sem exceção, nasceram idiotas e haveriam de morrer idiotas. Passado algum tempo, um ator travestido de ambulante trouxe uma coleção de desentupidores de pia enfileirados sobre uma bancada de madeira e comunicou à todos de que todos, sem exceção, poderiam livrar-se da idiotice caso adquirissem um daqueles desentupidores de pia e o grudasse bem no meio da testa. Passado algum tempo, todos, sem exceção, estavam dialogando sobre os mais variados temas filosóficos e científicos, articulando verbos nunca antes articulados, enveredando por alamedas sinuosas e eruditas que poucos, com alguma exceção, haviam enveredado, e nunca antes, sem exceção alguma, com um desentupidor de pia grudado no meio da testa.


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Fábulas: # Do código de ética dos abutres

Um abutre grandalhão pousou no ombro direito de um sujeito jovem e viril dizendo-lhe que acompanharia toda sua vida até que virasse carniça e pudesse dele se servir. O tempo passou e um novo abutre grandalhão fez do ombro do tal sujeito, dessa vez o esquerdo, igualmente poleiro de espera. Decorridos tantos outros anos, e já velho e decrépito, um terceiro abutre grandalhão assentou ninho na cabeça do referido sujeito, contente pela refeição iminente. Mas quando finalmente a morte veio, e como nunca antes fizera qualquer esforço para espantar os abutres grandalhões, os abutres, então, num gesto de consideração e respeito póstumo, pouparam-lhe a carniça, deixando aos vermes subterrâneos - que nunca foram sentimentais com carniça alguma - o trabalho que antes haviam prometido realizar.


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Fábulas: # O Fotógrafo indignado

Era uma vez um fotógrafo especializado em fotografar cenas desastrosas, escorregou numa casca de banana e foi fotografado esborrachado ao chão por outro companheiro de trabalho. Indignado, processou a imprensa sensacionalista.

Obs: os detalhes correm em segredo de justiça. 


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Entre ser e parecer
Encontro-me eu
Que vivi parecendo
Quem fui

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terça-feira, 11 de novembro de 2014

Fábulas: # Nada mais do que a verdade...

Um sujeito metido a desconfiado foi chafurdar nos anais da história e depois de meticulosa investigação veio a saber que tudo o que até então havia sido divulgado como verdade era a mais pura e cristalina mentira, que a muralha da China não existia coisa nenhuma, que a lua era um satélite projetado com luzes especiais provindas daqui mesmo, da terra, que o deserto do Saara não ficava exatamente no Saara e que, pasmem, Jesus Cristo era tão real quanto um dos anões da Branca de Neve. Decidido, pois, a recontar os fatos, e dessa vez imbuído do desejo de retratar somente a verdade e nada mais do que a verdade, ele, então, assim começou: 

- Era uma vez...


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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Fábulas: # Vida e morte de um determinado Papai Noel


Um certo Papai Noel de Shopping Center - espécime que nessa época do ano ocorre nos principais Shopping Centers da cidade e é extremamente requisitada -, sentado em sua poltrona de Papai Noel e depois de haver recebido em sua perna direita de Papai Noel uma quantidade próxima a duzentas crianças (entre choronas, birrentas e ressabiadas), e outras tantas crianças, talvez trezentas ou mais (entre animadas, barulhentas e remelentas), e dessa vez na sua outra perna, a perna esquerda, e também perna de Papai Noel, enfim, morreu (fadiga foi cogitada como a provável {mas ainda não comprovada} causa mórtis). Mas, no intervalo entre perceberem que estava morto e, de fato, imaginarem uma alternativa para a remoção do corpo, outras tantas crianças, (entre mimadas, bocudas e banguelas), talvez uma centena delas ou mais, sentaram-se em ambas as pernas do já falecido Papai Noel (que por sorte havia mantido um certo sorriso por trás das barbas) para posar para fotos que os seus pais espocavam de suas máquinas de fotografia digitais; e, foi só quando o referido Papai Noel (hoje já ex Papai Noel) principiou a feder, foi somente aí que as autoridades do Shopping Center resolveram apanhar a agenda de contatos para encontrar um suplente à altura daquele que, mui bravamente, dera a vida ao seu ofício de servir às crianças em seus mais pueris sonhos infantis.


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Fábulas: # O Concerto derradeiro...

O nonagenário maestro romeno Rubin Rabesco anunciou que iria morrer ao final daquele concerto, exatamente no chapar derradeiro dos pratos, mas anunciou somente ao spalla da orquestra, o trintagenário violinista belga Elois Chambertan, advertindo-o de que se algo desse errado, que se por um acaso ele batesse as botas antes do previsto, que ele próprio assumisse o posto de regente e seguisse com a música até o seu final, quando os pratos decretariam o fim do concerto. Pois o concerto mal começou e o que se viu foi o nonagenário maestro romeno Rubin Rabesco ser acometido por uma torção convulcional que o fez despencar do púlpito, morto nem bem o primeiro compasso havia acabado. Pois o spalla da orquestra, o trintagenário violinista belga Elois Chambertan, - que antes do início do concerto havia avisado o seu companheiro de estante, o quarentão e também violinista (armênio) Zachar Schinni, que se algo desse errado e ele precisasse se ausentar da sua função de spalla, que ele ocupasse a sua cadeira de comandante dos músicos e continuasse a música até o seu final, quando os pratos decretariam o fim de tudo -, pois então ele, o spalla Elois Chambertan, rapidamente galgou o púlpito e tratou de assumir a batuta, mas nem bem havia vestido as vezes de maestro e ele próprio convulcionou rolando púlpito abaixo bem ao lado do corpo já frio do nonagenário maestro romeno Rubin Rabesco, morto ele também. O que se viu foi, então, o quarentão e também violinista (armênio) Zachar Schinni pular para o púlpito e assumir a batuta, coisa que não durou muito pois ele também viu-se morto após breves instantes em que havia tomado para si a batuta. E então, assim, num perfeito mecanismo de revezamento coordenado, todos os músicos, cada qual em sua vez, trocavam de lugares de acordo com o decoro da importância melódica de seus instrumentos a título de não deixar a sinfonia morrer, e, eles próprios, cada qual em sua vez, morrendo após tocarem na batuta. Cordas, metais, madeiras foram se extinguindo como repolhos colhidos na horta, e formando no palco uma espécie bastante concreta de cemitério, até que, por fim, sobrou apenas o pratista da orquestra que, na dúvida do que fazer - reger o vazio ou tocar o seu instrumento - deu preferência à música e contou silenciosamente as pausas até que, depois de quase vinte minutos mergulhado no mais absoluto silêncio, ouviu-se, por fim, o chapar vigoroso dos seus metálicos pratos, pondo fim, então, ao concerto da noite.


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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Quando viajo 
Não sei o que mais gosto
Se da viagem
Ou do livro que comigo levo

Se não viajo
O livro empobrece nas paisagens cegas
E se vou sem ele
Pouco ou nada há para se ler
Naquilo que aos olhos
Dá-se a ver

Quando viajo
Viajo duas vezes
Uma viagem para lembrar-me de mim
E a outra que se despede de mim

Que viajo


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Fábulas: # O cemitério de almas nada perecíveis

Quando Lopard Lionel Landwitch, o pianista, desgrudou lentamente as mãos do piano, e após uma nota de longa pressão nas teclas como epílogo magistral do concerto da noite, então, e só depois disso, abriu finalmente os olhos - cerrados até aquele instante em um inspiradíssimo contrato firmado com o último acorde -, e o que se seguiu foi um silêncio tumular. Ninguém da plateia esboçou reação alguma. A orquestra congelou-se num quadro de magnitute espetacular. O maestro empedrou-se com a batuta apontando para o céu e para nunca mais descer. Pareciam todos engessados como que estátuas cimentadas pelas camadas melódicas de Leopard Lionel Landwitch, o pianista, ele próprio inerte, alvo de sua própria audácia. A situação era tão grave que, imagino, se alguém voltasse aquele cenário dali a duzentos anos, certamente encontraria aquelas mesmíssimas figuras imobilizadas como agora, fósseis futuros para uma escavação arqueológica. É bem verdade que não fosse por aquele espirro (alguém espirrou) e tudo isso teria se consumado, dando origem ao primeiro cemitério de almas intactas, nada afeitas ao apodrecimento da carne. Pois a vida voltou pelo espirro. Um espirro anônimo, mas plenamente audível. E todos dispersaram-se para suas casas. E na solidão de cada um, lembraram-se de que haviam esquecido de aplaudir a performance de Leopard Lionel Landwitch, que haviam retornado para casa sem emitir nenhum som de agradecimento, nenhuma palma sequer, nenhum 'bravo!' que fosse, nada senão um toc-toc dos sapatos indo para bem longe de onde até então haviam estacionado. Na cidade já escura, e aos olhos do bom observador, podia-se enxergar algumas luzes acesas, distribuídas entre tantas outras janelas apagadas, dormentes, e delas, das janelas iluminadas, saíam ruídos abafados, que, se somados, repercutiriam numa estrondosa avalanche de entusiasmo, ainda que tardio.


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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Fábulas: A timidez de um Alguém promissor

Um proeminente Alguém que viria a ser importantíssimo não fosse sua timidez que o impedia de dizer as verdades que guardava, resolveu, para não desperdiçar o verbo e atrofiá-lo para sempre no mudo escuro da alma, armazenar pequenas pílulas de sabedoria dentro de bolhas de sabão que seriam por ele mesmo assopradas e lançadas ao sabor do vento, e, quando o destino quisesse que fossem estouradas, aquilo que havia dito na ocasião do sopro rebentaria aos ouvidos de quem ouvidos tivesse, desvinculando o autor do verbo, e, o mais importante, preservando a timidez do aspirante à alguém importantíssimo da sensaboria coletiva. Pois a primeira tentativa foi exemplarmente bem sucedida, e quanto a bolha estourou ouviu-se um retumbante e acachapante 'vão todos à merda!'



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Fábulas: # O sujeito paranoico

Era uma vez um sujeito paranoico cujo nome não divulgamos aqui para que ele não encontre chance de decretar que estas linhas não são o que aparentam ser, ou seja, um texto qualquer desses que qualquer um redigiria por puro tédio, falta do que fazer, ou mero pretexto para a digestão do desjejum, senão um relatório forjado e manipulatório de denúncia contra a sua pessoa, inocente pessoa, evidentemente, que, enfim, decidiu abrir os olhos para aquilo que o mundo evidencia em faiscantes manchetes a cada vez em que gira em seu ensimesmado eixo - e por isso mesmo alvo fácil daqueles que desejariam a sua cabeça a prêmio, uma vez que dizer a verdade e nada mais do que a verdade é um golpe de coragem e audácia indesculpável para aqueles, a maioria - maioria que é cega, mas não porque é cega, mas porque [vejam só!] enxerga perfeitamente bem e ainda assim faz-se de cega para não ter que ver) que vivem patinando no limbo escorregadio da mentira -, ou seja, a de que tudo nessa vida não passa da mais deslavada fraude, e cujo intento é o de desmoralizar os justos e festejar a vitória dos corruptos, aqueles com culpa lavrada no cartório e quase nunca desnudados em seus pérfidos crimes aos quais o povo, burro, costuma dobrar-se por pura ingenuidade ou burrice mesmo, o que dá na mesma (burro = burrice). Pois bem, e enfim, era uma vez um sujeito paranoico que, atento para todos os indícios farejantes de que o mundo estava fora dos gonzos {to be, or not to be}, entendeu que aquele exato pingo de chuva que lhe aliviava o fervor da careca - quente por tanta atividade intelectual dos miolos vigilantes -, era, de fato, a pista que faltava para abrir as comportas inundantes das provas comprobatórias de que aqueles que lá estavam no poder eram não só assassinos deslavados, chifrudos mascarados, bufões maquiavélicos, como, também, necessários representantes daquilo que há de mais nojento em qualquer filme do James Bond, qual seja, a crença pela massa desinformada de que os vilões não são do mau, mas, charmosos, e, até, necessários para o andamento da narrativa novelesca, a qual - como sabemos - cabia a ele, o sujeito paranoico, desvelar em todos os seus fio emaranhados até que estivessem, um por um, desemaranhados.

- Era uma vez, e de uma vez por todas - até que enfim -, um sujeito paranoico que, para alimentar sua verde de paranoias, abriu uma conta no Facebook e passou a compartilhar todas as notícias dos principais jornais, que, como bem sabemos, de paranoicos não tem nada, quiçá interesse em disseminar a paranoia nos que ainda não são paranoicos, ou, tampouco, naqueles que de paranoia já estão com a barriga cheia.

Prazer!


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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Fábulas: # Os canoístas e os rinocerontes de chifre cinza


Sabe-se por fontes seguras que após a inauguração do serviço de travessia de rinocerontes de chifre cinza em canoas, cumprindo o trajeto de uma margem a outra do rio, houve uma ocasião - que por razões misteriosas nunca se chegou a conhecer o real motivo -, os rinocerontes de chifre cinza decidiram em comum acordo entrar em greve e não mais empreender deslocamentos fluviais, fazendo com que os canoístas, condutores das canoas, sentindo a orfandade de seus colegas de embarcação, entrassem em greve também, e, desde então - e depois de uma assembléia onde os rinocerontes decidiram em comum acordo retornar à prática dos deslocamentos fluviais em canoas -, sabe-se que não há qualquer chance de se avistar uma canoa onde haja somente um canoísta sem o seu companheiro rinoceronte de chifre cinza embarcado também, ou, então, que haja qualquer rinoceronte de chifre cinza empreendendo solitariamente sua travessia numa canoa sem a ajuda de seu fiel escudeiro, o canoísta. 

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Fábulas: # A razão de haver construído uma pista de patinação sobre o gelo em pleno deserto, e outra não menos razão para não haver razão alguma

Perguntado sobre a necessidade de haver construído uma pista de patinação sobre o gelo em pleno deserto escaldante, o empreendedor de tal loucura retrucou perguntando se alguém haveria por acaso respondido a outra dúvida, essa mais essencial, a saber qual a necessidade de haver nascido se antes tantos outros já o fizeram, insistindo sem sucesso nesse tão louco negócio de existir, e sabendo que outros tantos virão na mesmíssima toada da bancarrota dos anteriores, sem razão, propósito ou explicação, e, ainda pior, tendo consciência de tudo isso, dos becos sem saída, e, ainda assim, sem a menor intenção de fechar as suas lojas de absurdidades as quais apelidam de vida... Por que?


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Fábulas: # Do humor insensível das intempéries

À crise de desabastecimento seguiu-se outra, de abundância, e entre excesso e falta, já não sabendo o que era pior, se afogar-se no muito disso ou expirar ao vento na falta do tanto que já não havia, foi decretado, enfim, as diretrizes que faziam legitimar as saudades da miséria, em épocas de vacas gordas, e o desejo saudoso de ofertas generosas, no período da estiagem completa, equilibrando, assim, as emoções, que, no final das contas, era o que se fazia crer que importava, ainda que a natureza operasse por um capricho misterioso aos corações alheios.

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Fábulas: # A Agência de Conceitos...

Caro interlocutor desconhecido cujos olhos agora acompanham estas palavras de outrem não menos desconhecido ao mesmo tempo em que rói vossas unhas justamente porque a existência não te conferiu profundidade outra fora o ato de olhar para onde quiseres olhar e unhas para que possas roer, anuncio pois, e para a salvação de ambos – eu que o desconheço e tu que me desconheces -, e em primeira mão, que encontrei aquilo que há tanto tempo andava procurando: um jeito de substanciar esse meu eu já tão oco e sem substância quanto o oco vazio de um poço oco, sem água, já no limite da aridez que um poço, justamente porque oco e seco, possa vir a suportar. Entrei, pois, para essa Agência de finalidades sublimes cujos fins ainda não me foram apresentados, e cujo princípio fundamental e pioneiro é mais do que claro e está, grifo meu, em conferir conceitos a tudo o que possa ser conceituado, fazendo daquele que conceitua, eu portanto, um agente fervilhante de criatividades ultra exponencial, revertendo em jorros de vida aquilo que antes, como já o disse, padecia como sertão de vida enrugada, ou quase sem vida, ou totalmente morta, e enrugadíssima de peso existencial, ou seja, o eu que o era e, graças a essa Agência miraculosa de milagres inequívocos, já não o sou mais. Perceba, caro interlocutor, que o mero fato de reportar-me a ti já confere a mim uma felicidade da ordem do incalculável, já havendo aqui, caso não o tenha percebido, uma função conceitual de gravíssima, ou grandíssima, ou ambas as coisas, importância – tu lês este texto enquanto eu o escrevo, ainda que quando o leres eu já o tenha escrito e, provavelmente, esteja eu conceituando em outra praia enquanto tu ainda és alvo dessa luminosidade tardia e exemplar a qual te rendes em justificada reverência como um lagarto que lagarteia ao sol nutrindo-se de seus nutrientes vitaminais. Caro interlocutor, a Agência a qual me refiro, e a qual invoco que tu a conheças antes que te faltem unhas nos dedos, ensina-me que lavar as mãos na pia de cerâmica implica num conceito (outro conceito do que seria lavar as mãos, por exemplo, numa hipotética outra pia, de mármore, por exemplo, e não de cerâmica, por exemplo), e que, por uma contingência do destino, vem a ser um conceito completamente particular – o de lavar as mãos – tão diferente quanto outros tantos, quais sejam, por exemplo, o de coçar o cocuruto quando houver coceira, ou o de bater três vezes uma palma da mão na outra ainda que não saibas para quê, ou porquê, ou tanto faz. Porque veja, caro leitor desconhecido, aí está a eureca da tese, ou a tese da eureca: sendo tu o agente conceituador, há, portanto, para qualquer coisa a preciosa chance de descobrir uma finalidade oculta, ainda que tudo esteja tão escondido que seja difícil dizer: a-há, eureca! Caro interlocutor desconhecido, antes que roa vossas falanges invoco-te a procurar o fim desse arco íris onde o pote de ouro é substituído pela incrível capacidade que tu tens aí, embora não saibas, de chafurdar conceitos em tudo, coisa que o fará desistir dessa consciência mui precisa de que és hoje um miserável entregue a essa tua desgraçada condição de reles leitor daquilo que te vier aos olhos, assim como um medíocre mastigador de matérias mastigáveis. Caro interlocutor desconhecido, passar-te-ei o endereço de tal Agência, e, espero eu, que tu não percas a oportunidade que te entrego de bandeja, qual seja, a de te aguar nas fontes transbordantes da matéria criativa e conceitual.


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