sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Fábulas: # O cemitério de almas nada perecíveis

Quando Lopard Lionel Landwitch, o pianista, desgrudou lentamente as mãos do piano, e após uma nota de longa pressão nas teclas como epílogo magistral do concerto da noite, então, e só depois disso, abriu finalmente os olhos - cerrados até aquele instante em um inspiradíssimo contrato firmado com o último acorde -, e o que se seguiu foi um silêncio tumular. Ninguém da plateia esboçou reação alguma. A orquestra congelou-se num quadro de magnitute espetacular. O maestro empedrou-se com a batuta apontando para o céu e para nunca mais descer. Pareciam todos engessados como que estátuas cimentadas pelas camadas melódicas de Leopard Lionel Landwitch, o pianista, ele próprio inerte, alvo de sua própria audácia. A situação era tão grave que, imagino, se alguém voltasse aquele cenário dali a duzentos anos, certamente encontraria aquelas mesmíssimas figuras imobilizadas como agora, fósseis futuros para uma escavação arqueológica. É bem verdade que não fosse por aquele espirro (alguém espirrou) e tudo isso teria se consumado, dando origem ao primeiro cemitério de almas intactas, nada afeitas ao apodrecimento da carne. Pois a vida voltou pelo espirro. Um espirro anônimo, mas plenamente audível. E todos dispersaram-se para suas casas. E na solidão de cada um, lembraram-se de que haviam esquecido de aplaudir a performance de Leopard Lionel Landwitch, que haviam retornado para casa sem emitir nenhum som de agradecimento, nenhuma palma sequer, nenhum 'bravo!' que fosse, nada senão um toc-toc dos sapatos indo para bem longe de onde até então haviam estacionado. Na cidade já escura, e aos olhos do bom observador, podia-se enxergar algumas luzes acesas, distribuídas entre tantas outras janelas apagadas, dormentes, e delas, das janelas iluminadas, saíam ruídos abafados, que, se somados, repercutiriam numa estrondosa avalanche de entusiasmo, ainda que tardio.


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