sábado, 30 de agosto de 2014

Fábulas: # O cego e a Sala do Silêncio


Um cego esgueirou-se inadvertidamente para dentro da Sala do Silêncio, e como o silêncio já lhe era companheiro de todas as horas – as pupilas aposentadas calavam o zumbido rotineiro daqueles que as tinham em plena forma -, o cego enlouqueceu, somando o vazio da vista com o outro dos ouvidos mudos, forçado pela boca calada dos videntes que na Sala do Silêncio formavam numerosa plateia, e tratou de romper a regra fundamental ao tatear com sua vareta uma possível rota de saída. TEC-TEC-TEC-TEC. Foi censurado, alvo de piadas e chacotas preconceituosas, xingado em sussurros escabrosos até. Conseguiu encontrar a porta e sair. A Sala do Silêncio, então, voltou ao normal, com aquela sensação de que fora feita somente para o usufruto dos menos privilegiados, aqueles que reuniam todos os sentidos sem falhas. Chega de considerações. Silêncio agora.




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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Sou tão limitado no que faço
A consciência de minhas fronteiras atam meus pés em terrenos tão restritos
Minha pessoa é feita de poucas possibilidades
Uma esquina dobrada e já me esgoto
As mangas da camisa que trajo são curtas e nada afeitas a truques 
Parece que por falta de talento em ludibriar-me, naufrago em uma transparência onde engesso-me e sair não mais posso
Não entendo os aventureiros que hoje estão aqui e amanhã já arrumam-se em jornadas arriscadas
Paira sobre mim um medo e covardia fundamentais
Mas será que não tomo gosto por quem sou justamente por conta disso?
Será que não consigo plenamente enxergar-me exatamente porque enxergo tudo o que sei que não posso ser?
Minha cela é minha liberdade
Preso aos meus grilhões desejo preso continuar sendo 

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domingo, 24 de agosto de 2014

Fábulas # O remorso divino

Havendo Deus criado o mundo em seis dias, e notando que o sétimo era justamente o domingo, trocou o descanso pelo remorso e matou-se. Nessa altura Nietzsche já existia, e coube a ele espalhar a notícia de que Deus estava morto. Mas, entre o fato e o anúncio, já era segunda-feira, portanto, tarde demais. A tragédia que se segue é bastante conhecida de todos nós.


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Se tenho lembranças
Obrigado sou
A lembrá-las 
Se não as tenho
Sofro em dobro 
Em esforço
Por inventá-las

Quisera não fosse alvo do tempo
Seja no vazio ou no lamento
Entristeço
Sempre 

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É difícil viver, não?
Que nada!
Mas difícil ainda é ver quem vive
E pouco se vê
Vivendo

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terça-feira, 19 de agosto de 2014

Houve um tempo em que eu acumulava desejos
Hoje eu desperdiço os vazios que não pude - ainda que desejando
Em mim preencher

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Fábulas: # O sujeito incrédulo... e o leão do circo.

Um sujeito incrédulo ao ouvir a notícia de que o leão havia fugido do circo, duvidou, como de costume, e foi até o circo para provar que aquilo não passava de um boato grosseiro, e que o tal do leão muito provavelmente não havia fugido do circo coisíssima nenhuma. Chegando ao circo, de fato, o sujeito incrédulo viu o leão dentro da sua jaula esparramado feito um tapete gigante de pelos e ruminou contente para si próprio: ‘A-há! O leão não fugiu do circo!’. Mas estava também muito triste o leão, com um olhar piedoso de quem adoraria fugir do circo. E como o sujeito incrédulo podia ser tudo nessa vida menos um sujeito incrédulo insensível, apiedou-se de imediato do bicho trancafiado e abriu o gancho de metal da jaula. E, como o leão podia ser tudo nessa vida incluindo um leão faminto, engoliu o sujeito incrédulo em uma só abocanhada. Depois voltou para a jaula para uma siesta, matutando consigo se o melhor a fazer seria fugir de fato do circo, ou, quem sabe, esperar o próximo que lhe quisesse salvar da sua miséria felina...



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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Fábulas: # O caderno de variedades inventadas


Era uma vez um jornalista de reputação ilibada que tinha como curioso hábito esconder-se atrás de pseudônimos e mandar cartas elogiosas à redação sobre suas próprias matérias publicadas no caderno de variedades inventadas. Um dia inventou que o leão fugiu do circo e foi a sua desgraça. Dona Cândida, ávida consumidora do caderno de variedades inventadas, ligou para a redação em protesto veemente, dizendo que era impossível o leão ter fugido do circo uma vez que não havia circo nenhum na cidade e muito menos um leão a se perimir que fugisse. Mas é um caderno de variedades inventadas, atentou em defesa o chefe da redação do jornal. Pois que inventem sobre algo que existe! Duas invencionices combinadas anulam-se mutuamente fazendo-nos ver que a mais pura verdade é que não sabemos inventar nada! Esbravejava dona Cândida do outro lado da linha. Mediante a tamanha insistência, não houve outra coisa a fazer senão acionar o jornalista responsável pela matéria e adverti-lo. No dia seguinte, uma tal de Dona Cândida aparecia descrita na sessão dos obituários. E, por curioso que seja, o jornalista de reputação ilibada não apareceu para trabalhar. Nem no dia seguinte. Tampouco na semana seguinte ele apareceu. Soube-se que morreu. Ataque de fúria repentina ao ligar para sabe-se lá quem. E, mais curioso ainda, totalmente trajado de mulher, com o fio do telefone a lhe esgoelar a goela.


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Fábulas: # O elevador indiscreto


Havia esse tal de elevador que não levava a lugar nenhum, ou, pelo menos, não a um lugar conhecido, já que, se entravam vivos e andando aqueles que usufruíam do tal elevador, quando as portas abriam-se, já estavam todos (Requiescat in Pace) estatelados ao chão e mortinhos da silva. Mais tarde descobriu-se que dentro do fatídico elevador existia uma dessas pequenas televisões de plasma pregada logo acima dos numerais dos andares, equipamento dedicado a transmitir as principais manchetes do dia, incluindo aí os altos e baixos da bolsa de valores e tendências da economia, ainda que nada disso interessasse aos que pisavam no tal elevador da morte. Sim, porque em dada altura da viagem, mais precisamente entre os andares 17 e 18, a tal televisão de plasma interrompia seu itinerário de efemérides cotidianas para projetar em sua película moderna a descrição de algumas das intimidades mais escabrosas e grotescas dos seus ocupantes, em alguns casos até mesmo recorrendo a fotos vexatórias para comprovar o que as palavras denunciavam. O assombro geral dava espaço a ojeriza, o que evoluía até a indignação, que baldeava no riso descriminatório do achaque alheio, que por sua vez encaminhava o comboio de emoções até o entreposto da denúncia, e que, por fim, na ideia de defender a honra até então inviolada longe daquela gaiola de alumínio movediça, chegava a mais brutal e convulsiva violência sangrenta. O curioso é que mesmo sabendo desse terrível estado de coisas o tal elevador nunca deixara de funcionar, havendo sempre um contingente interminável de passageiros sedentos por desnudar-se aos outros naquela diminuta lata de sardinha humana, e também, de ter a oportunidade de babar veneno nas idiossincrasias levianas do vizinho de sovaco. E, como todos sempre morriam, não se sabia quem estava com a razão.


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domingo, 17 de agosto de 2014

Fábulas: # O maestro e os aplausos


Um determinado maestro de nariz adunco e já avançado na velhice depois de ser fervorosamente aplaudido durante minutos intermináveis indo e vindo da coxia à boca de cena para dobrar respeitosamente a espinha dolorida pelas primaveras já tão avançadas no outono e mui vizinhas do ocaso invernal enfim depois de tanto repetir aquele trajeto na expectativa de que fosse a última vez e que o camarim o pudesse finalmente acolher no seu merecido descanso depois de haver descabelado-se na quinta de Tchaikovsky e já na iminência do arrefecer dos aplausos como um escoar final de água pelo ralo eis que nova enxurrada varria em eco a sala de concertos exigindo dele o seu retorno e lá ia o maestro de nariz adunco e já avançado na velhice até a boca de cena dobrar respeitosamente a espinha dolorida em sinal de agradecimento enfim cansado pela nonagésima vez de receber os louros barulhentos dos espectadores enfastiou-se daquele mar de espalmadas estrepitosas e mandou uma sonora banana para todos os que sumiam em uníssonos bravos e vivas e assim pôde finalmente acabar com aquela epopéia aclamatória e regozijar-se no silêncio de seu camarim solitário...


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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A pior das personagens - porque somos personagens sempre!
É aquela criada para defender a si próprio
Uma que chega sorrateira, sempre prestimosa, agradável aos outros e, sobretudo, simpática ao mundo

A pior das personagens é sempre uma máscara sobre a máscara
Tentativa frustrada de se dizer:
Veja quem sou!

A pior das personagens é o próprio ator
Que fingindo que diz a verdade
Mente
Mas mente sem saber

Luto para não ser ninguém
E ainda que falhe sempre
Resisto 
É essa triste consciência de saber que sou alguém
Que guarda forças para que quando eu minta
Possa de fato mentir
Bem

A pior das desgraças é forjar uma
Identidade

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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O que sinto só sinto para mim
Minhas palavras não palpitam sentimento algum
São somente palavras
Como um corpo que já nasce com a alma escondida
E com os contornos à mostra

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Fábulas: # O ator trágico que queria ser verdadeiro...

Era uma vez um ator trágico que queria ser verdadeiro - seu 'Ai de Mim', impôs ele a ele próprio, deveria sair do fundo nevrálgico da sua mais íntima alma...

Subiu ao palco

E, sem querer, inaugurou a comédia.

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A razão de tudo isso é que bicho algum, com a exceção dos gatos (cínicos desde o primeiro miau) poderiam ser atores

A tarefa de finjir é um providencial bálsamo
Reservado a somente quem nada é


Transparente 


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Se a mim foi reservada a tarefa de mentir sobre tábuas
E se nessa preciosa labuta cheguei ao precioso saldo de que mentira maior se escreve nas esquinas da vida
Digo que preservo meu direito de ser absolutamente sincero em cima do palco
Fora dele sou a mais completa fraude, inventando sempre que digo a verdade

Portanto
Não confiem nunca em mim!
A não ser quando esteja
Mentindo


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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Fábulas: # A saída para quem almeja à originalidade...

Era uma vez um sujeito que agregava duas desgraças num só lombo: além de ser um sujeito capaz de entender-se como tal, o que já é uma desgraça para toda a vida, era ele também escritor, incumbindo a si próprio a heroica tarefa de ser um sujeito original, e isso já bem depois de que todas as histórias originais, com personagens originais, haviam sido escritas, editadas e divulgadas por toda a espécie conhecida de escritores e sujeitos originais. E como lhe restava um pouco de consciência sobre sua miséria, um dia se deu conta da tamanha encruzilhada em que o destino lhe metera e gritou as seguintes palavras em ordem: MERDA! MERDA! MERDA! Foi a sua salvação. Virou poeta marginal, letrista de funk e ator junkie. E com a fama advinda do seu talento, virou um sujeito conhecido.


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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Fábulas: # o conluio de especialistas...

Começava-se a reunião dizendo que o mundo estava em vias de implodir, seguindo com o depoimento em que se manifestava a certeza absoluta de que os que lá estavam eram os mais preparados para evitar a tal implosão, prosseguindo, então, por uma detalhada retrospectiva das responsabilidades de cada um dos presentes na matéria referente ao pavio que deveria ser apagado antes que a iminente implosão implodisse, e botasse, portanto, tudo a perder, instante esse em que, uma vez terminada a roda preliminar de manifestações espontâneas, era chamado ao púlpito, e em silenciosos vivas de respeito auto-imposto, os elementos de mais longa data, e já tarimbados em reuniões emergenciais como essa, que sempre relutavam em falar num primeiro momento - todo sábio rejeita satisfazer o desejo alheio de ser ouvido - mas que acabavam por falar novamente - todo sábio ainda guarda consigo um tico preservado de vaidade latente - e sobre aquilo que todos já sabiam, mas que seria interessante, e porque não dizer urgente, saber mais uma vez, discurso que ia pegando fogo aos poucos e cujo teor acabava irremediavelmente por virar até bastante inflamado e recheado de arroubos de ilibada militância ética e moral, versando, portanto e em resumo, sobre a impossibilidade de se evitar qualquer implosão, porque é da natureza do mundo, ora ou outra, implodir-se, cabendo a nós, excelentíssimos membros da reunião, compactuar ou não com esse terrível fenômeno inflamável, deixando a cargo da consciência dos que lá estavam, sem dúvida nenhuma os mais preparados para tal circunstância especulativa, riscar o fósforo com as próprias mãos, ou, então, arcar com as consequências de ser ele o alvo imediato da onda de impacto que, ora ou outra, iria repercutir sobre o mundo que, como dissemos desde o mais primevo princípio, está que está para ir aos ares, e muito em breve... ao que parece, enfim...


Aplausos 


Fim



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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Fábulas: # O cão que não dava para ator...

Ensinaram a um gato a ser ator, e, como o cinismo lhe era congênito, grandes dificuldades não teve ele em ceder aos bigodes a tarefa de fingir estados de humores que não eram os seus. Então chegou o dia em que um cão ousou arriscar a mesma carreira, mas, como era sincero demais - coisa denunciada pelo rabo, sempre propenso a revelar o estado de espírito da alma -, naufragou de imediato, deixando, ainda que a contra gosto, ao rival felino o futuro das artes dramáticas. 


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Fábulas: # Quando os comediantes se suicidam...


O primeiro comediante tratou de ser tradicional e apareceu com o pescoço esganado por uma gravata dentro do armário de roupas, exatamente entre o suéter de lã e a jaqueta de couro. O segundo comediante, dali a alguns dias, tivera o ímpeto bravio dos machões que não medem conversas por meias palavras, estourando os miolos com um tiro seco e sem perdão. O terceiro comediante, aquele que se amarrou à linha do trem, pertencia ao rol dos dramáticos e tentou deixar um bilhete explicando suas medidas desesperadas, mas sem sucesso - a letra tremelicante do condenado na iminência de selar o destino sem volta impediu que houvesse um epílogo formalmente compreendido -, o que o obrigou a entrar para a eternidade assim mesmo: atropelado como tantos outros, sem a alcunha de um monólogo emblemático, na fila dos anônimos, e tampouco merecedor de direitos autorais. Somente quando o quarto comediante desiludido fora flagrado submerso na hidromassagem, já azul e de olhos esbugalhados, foi somente aí, pressionado pela sociedade, que o governo resolveu tomar alguma providência. Uma comissão de especialistas articulou-se para entender o fenômeno até então desconhecido, chegando à conclusão, depois de análise minuciosa do inquérito, que a cada vez que uma piada sem graça era detectada em um lado da cidade, do outro, e imediatamente, um comediante tirava a própria vida. Estava armada a encruzilhada jurídica: sancionar uma lei abolindo o direito dos incapazes de tentar fazer o povo rir, e por isso assassinos indiretos dos capacitados para tal, ou, mantendo as coisas no patamar em que estão, preservar a liberdade de expressão, arcando com a estupidificação geral, já incluindo aí as futuras e novas baixas – não tantas, porque já se faz notar a escassez de indivíduos assaz inteligentes...?


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Fábulas: # A assembléia dos pavões...


Na pequena sociedade rural coube aos pavões letrados a tarefa de representar os demais bichos nas questões referentes ao bem estar social. Uma assembléia de pavões era armada uma vez ao mês para que cada pavão pudesse, cada um em seu tempo, diagnosticar e prever soluções para os entraves éticos e morais da granja. Porém, como é do feitio de todo pavão, em especial dos pavões letrados, mal começavam a falar e já esbanjavam beleza própria ao ostentar suas penas ao vizinho. E como cada vizinho também era um pavão ostentador, e também letrado, ao invés de nutrir inveja pelo espetáculo do concorrente, ao contrário, respondia a ele com outra abertura fulminante, agora do seu próprio leque colorido. Ao cabo de todas as apresentações preliminares, enfim, a assembléia podia ter início, e assim tocar, finalmente, no cerne das angústias referentes ao andamento da granja. Porém, afogados que estavam em seus chumaços enfeitados e nunca recolhidos, já que é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, nunca arrefecer em seus princípios paradigmáticos, ninguém mais se via, cada um refém das plumas alheias, que ao roçarem narinas imprevistas, produziam uma sinfonia esquisita de espirros e interjeições várias. E assim, impossibilitados de resolver qualquer coisa, os pavões letrados, como é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, remarcavam um novo encontro, para dessa vez, e finalmente, tentar resolver alguma coisa concernente aos entraves éticos e morais da granja... Longe um do outro, como é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, cada qual recolhia sua cauda espetaculosa, voltando a ser, individualmente e solitários, pouco mais que uma ave semelhante às galinhas D'Angola...

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Fábulas: # A mula que foi vender os miolos pensantes na feira municipal...


Uma anta que atravessou o caminho de uma mula apressada perguntou a ela onde ia com tanta urgência, obtendo como resposta da mula que ela ia para a feira municipal botar à venda os próprios miolos pensantes, mas como, perguntou a anta curiosa, tendo-os tão reduzidos como eu tenho os meus cá comigo, o melhor não seria preservá-los para que assim, confinados, possam preservar um tanto de valor? Nisso a mula retrucou de imediato dizendo que de jeito nenhum, antes ter patas ativas e músculos torneados do que assemelhar-se à coruja, que do alto do galho vê tudo, sabe de tudo, compreende tudo, mas pouco ou quase nada age, valendo pouco ou quase nada o movimento invisível que guarda para si. Mas a coruja não é uma filósofa respeitadíssima, replicou a anta, é sim, rebateu a mula; e também não é a coruja uma reconhecida professora de pupilos que almejam um lugar nas academias, mais uma vez inquiriu a anta, sem dúvida que sim, disse a mula; e também a coruja não escreve lindíssimos artigos nos jornais da cidade versando sobre os mais variados temas da atualidade, insistiu a anta, e como não, arrematou a mula; e por acaso todas essas habilidades não tornam a inteligência da coruja visível aos olhos dos outros, errado, não é a coruja, tampouco a inteligência dela, mas a imagem forjada de si própria que se arvora aos olhos dos outros, já reparou que não é senão para isso que ela vive, para fazer plateias ao redor das asas? Disse isso a mula e já se foi galopando, sumindo das vistas da anta...

Há uma sabedoria especial em suar os músculos, essa sim uma sabedoria nada abstrata e deveras palpável, e se opta por não produzir ecos, é justamente porque as plateias não lhe são necessárias. 


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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Fábulas: # a capciosa arte de se fazer banquinhos de madeira...


Houve um tempo em que fazer banquinhos de madeira consistia em cortar a madeira na medida exata para que, havendo partes distintas de madeira, e uma vez encaixáveis e encaixadas, pudessem, enfim, e com algum esforço, dar forma a um banquinho de madeira. Mas chegou a teoria, e com ela toda uma digressão filosófica sobre o sentido e razão última embutidos no árduo ofício de se fazer banquinhos de madeira. E com a teoria vieram também os teóricos, todos eles compelidos, e preparadíssimos para tal, em convencer-nos de que fazer um banquinho de madeira exigia tais e quais requisitos mínimos, e, uma vez os tendo, fazia-se necessário, antes de fazer o banquinho de madeira, compreender as implicações éticas e morais incrustadas nessa tomada de decisão nada ingênua, e portanto longe de imparcial, que é optar por arregaçar as mãos, apanhar as madeiras, cortá-las em partes encaixáveis, e, encaixando-as, dar forma, finalmente, a essa coisa a que habituamos nomear como banquinho de madeira. Mas para cobrir esse tempo ocioso entre decidir fazer o banquinho de madeira e, de fato, fazê-lo, foi-se necessário o surgimento dos professores, essa espécie abastada que no passado polvilhou o mundo com uma infinidade de banquinhos de madeira, mas que, agora, cônscia da sua cristã tarefa de engolir o peixe para ensinar aos outros o como pescar, empresta-se ao abençoado martírio de esfregar o focinho do pupilo na madeira até que este se convença da necessidade de cortá-la em partes encaixáveis, e, uma vez encaixadas, e com um retumbante esforço, possa, finalmente, fazer um bendito dum banquinho de madeira, ainda que capenga e manco em uma das pernas na primeira tentativa, e feioso e sem charme nas demais. Assim, então, e graças a Deus, as escolas superiores de fazedores de banquinho de madeira foram abertas, todas elas concorridíssimas, formando um precioso elo de interessados em galgar a difícil porém gratificante arte que é a de fazer banquinhos de madeira, e que hoje anda tão relegada, infelizmente, ao segundo plano das urgências terrenas e metafísicas.


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Fábulas: # O tal do senhor Américo que enxergava tudo ao pé da letra...


Era uma vez um tal de senhor Américo que levava tudo ao pé da letra. E tanto passou os seus dias a cheirar o calcanhar das sílabas, lixando as unhas sobressalentes das palavras, assoprando a poeira para que as frases pudessem passar e com isso poder ele, o tal do senhor Américo, olhar em minúcia acurada os parágrafos de baixo para cima exatamente como quem ajoelha-se e pede ao firmamento alguma luz que só cega e nunca abençoa, que, em virtude do nariz sempre prostrado, uma corcunda veio a se instalar bem no cume espinhoso do seu lombo há muito acostumado no dobrar-se, mas, como nunca o via, o cume espinhoso do lombo curvado, e, por conseguinte, a corcunda alojada no lombo curvado e espinhoso, a ela, a corcunda, não rendia homenagens ou reverências. Continuou a viver assim o tal do senhor Américo, mas só até o dia em que a corcunda exigiu a devida atenção que toda corcunda, hora ou outra, há de merecer ter, mas aí já era tarde demais para que o tal do senhor Américo pudesse analisa-la com seus olhinhos apertados e perspicazes. Morreu dando uma cambalhota, fruto do peso acumulado de suas certezas.



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Fábulas: # As feras palitam os dentes...



Não há aqueles ratos alvos e de olhos esbugalhados e vermelhos que são criados especialmente para servirem de iscas vivas às cobras famintas dos institutos de soro antiofídico? Pois então, como recriminar a prática instaurada naquele zoológico do interior que passou a servir crianças serelepes e barulhentas para saciarem os apetites das feras enjauladas? Os pais levavam os próprios rebentos para o parque, instigavam os pimpolhos a pularem a cerca que separava a raça evoluída dos quadrupedes de mandíbulas afiadas, e, uma vez lá dentro, a meninada dava início a um cerimonial de aporrinhação gradual que compreendia desde a execução de danças provocativas, passando a um repertório de línguas a mostra e gestos insinuantes de que os bichos selvagens não eram de nada lá-lá-lá-lá-lá, até chegar ao clímax hediondo de bruxulear com uma pena de ganso atada aos dedos a parte inferior do focinho úmido dos animas cativos. Ainda que nada famintos, talvez por haverem degustado uma turma de quinta série já naquela manhã, e também diferentes de nós que a tudo contemporizamos sob pretexto de manter a dignidade de uma civilização erigida por séculos de labuta intelectual a título de reprimir a selvageria, as feras, feridas na sem paciência, avançavam no agente perturbador para num só golpe acabar com o barato, diferente das cobras, que por uma razão só delas, insistiam em demorar a engolir o rato preso entre as presas peçonhentas. Aos pais que a tudo assistiam, primeiramente esfuziantes e depois afogados em lágrimas, era oferecido um apoio psicológico através de um pacote de sessões de terapia regulares, além de um pequeno diploma que os agradecia pela preciosa ajuda dada em nome da perpetuação das espécies ameaçadas de extinção, e, por isso mesmo, tratadas com tanto esmero por aqueles que decidiram as preservar atrás de grades especialmente construídas.


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sábado, 2 de agosto de 2014

Fábulas: # O bigodão do sr. Dutra


O sr. Dutra acordou com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade. Forçou a memória na tentativa de lembrar se na véspera não havia barbeado a face, mas logo atinou que ainda que o tivesse esquecido, o bigodão agora visto era coisa de semanas, meses, quiçá décadas de semeadura sem poda. Talvez uma piada? Avançou com os dedos para arrancar o bigodão concluindo com um sorriso que algum matreiro fora o autor da travessura, colando o dito cujo cabeludo enquanto dormia. Era verdadeiro. O bigodão lhe pertencia, como também lhe pertencia cada parte do corpo. Desceu as escadas até a cozinha na esperança de que a esposa pudesse encontrar alguma explicação para o curioso fato, e foi quando percebeu que ela própria, Lucrécia, ostentava um bigodão exatamente igual ao seu, toda ela compelida em despejar o café na xícara sem prestar qualquer resistência àquilo que a ele parecia absurdo e sem razão. Atônito, o sr. Dutra sentou-se e esboçou um início de assunto que sugerisse o assombro de encontrar a si próprio e a mulher portando um bigodão peludo feito taturana debaixo do nariz, e foi quando percebeu que a filhinha, Anabela, do outro lado da mesa e até então silenciosa, mirava o pai numa composição de olhos arregalados, bochechinhas roseadas, e... um bigodão bem debaixo do seu narizinho de menina levada. O sr. Dutra, meio tonto meio descrente, saiu para a rua. Cada um que lhe atravessasse o caminho levava junto outro bigodão debaixo do nariz. Fosse uma velha, um executivo, um mendigo ou quem quer que seja, todos, sem exceção, estampavam a mesma marca peluda e indelével pregada ao rosto anônimo. Após um dia de trabalho extenunate, e sempre misturando o seu bigode aos bigodes alheios, o sr. Dutra voltou para casa. A visão da família feliz, brincando enquanto o pai não chegava, amenizou aquela sensação hamletiana de que o mundo está fora dos eixos, e ainda que o bigodão lhe causasse certo incômodo na hora de sorver a sopa, uma certa consciência prática o salvou de entrar em crise completa, ajeitando os lábios para uma melhor embocadura sem mais creditar ao bigodão o motivo central de sua angústia; afinal, qual é o problema de um dia acordar com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade? Chegou mesmo a se divertir com a filhinha Anabela cofiando seus bigodões no instante em que esperava ansiosa pela mãe, outra portadora do suntuoso bigodão, lhe servir uma colherada de doce de abóbora para a sobremesa. E agora, com as horas já avançadas, vemos Lucrécia, esposa do sr. Dutra, que antes de dormir inclui mais uma ação ao seu já demorado ritual de cuidados estéticos noturnos, a saber, um meticuloso desembaraçar de fios negros e grossos, não sem antes ter besuntado de creme hidratante aquela massa polpuda feito taturana, coisa herdada sabe-se lá de quem, e que tampouco importa saber. O sr. Dutra, há tempos entregue ao sono, ronca em plenos pulmões. Parece feliz.


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