segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

(zzz).


(...) E foi assim, sem dormir e pedindo para que jamais o deixassem cochilar que chegou ao termo da sua vida: um sono longo e dos mais criativos... e finalmente pôde perceber a enormidade daquilo que nunca havia tido coragem de viver justamente por medo de deixar um dia de viver... mas aí já era tarde demais para devaneios. Morreu. Acabou de uma hora para outra, assim mesmo como quem acaba sem nunca ter acabado o que veio fazer, quando fazia...

Feliz ano novo...



E se eu pudesse reunir forças para me calar e não desejar nada a ninguém? E seu pudesse recolher-me mais uma vez na certeza de que o tempo não nos consagra essa injeção otimista que muitos fazem questão de trazer à tona nessa época de virada? E se eu pudesse também consolar os outros dizendo que as dores passadas não foram tão especiais ou doídas quanto às tantas outras já vividas e não vividas que há muito não lembramos? E se eu pudesse fazer com que alguém compreendesse que esse ano que passou, a despeito das tragédias que ocorreram e continuam a ocorrer com pequenas variações temáticas, a despeito das felicidades que não são tão luminosas quanto aquelas que em tempos passados cingiram a terra, à revelia de tudo o que se diz novo e original... E se eu pudesse convencer uma alma que fosse a dançar comigo a melodia desse disco riscado que se repete por cima de uma vitrola acionada desde sempre por um mistério metafísico qualquer? E se eu pudesse convencer alguém das delícias de não se surpreender com nada porque basta nascer para saber que o amanhã sucederá em igual medida as indicações do ontem? Ah que delícia é pasmar na convicção profunda de que os eixos encrencaram! Feliz ano igual, meus senhores! Feliz o que já foi, está sendo e sempre será! Contentemo-nos com a desgraça de não sermos nunca originais! Só depois de o mundo deixar de ser mundo e levar-nos consigo é que alguma coisa diferente poderá ocorrer, mas não mais para nós que já teríamos deixado de ser.

Daqui de onde estou acho maravilhoso entender-me um inútil, uma gota no meio de um oceano sem limites – e ainda que muitas gotas semelhantes à minha resolvam se unir para produzir uma onda de respeito, ainda assim não evocaríamos nem mesmo uma marola de mar manso.

Feliz ano novo! E se eu fosse corajoso o suficiente para ao primeiro sinal de sorriso de meu interlocutor, na iminência de um jubiloso ‘Feliz ano novo meu caro vizinho’, virar a cara e sair correndo sem prestar qualquer satisfação ao venturoso que ousou interpelar-me nesses termos?  Não por crueza de caráter ou mau humor congênito, duas qualidades que me sei portador, mas por uma alegria gigantesca em celebrar sem culpa o marasmo estagnador da vida. Quebrem os eixos! Parem a roda da fortuna!

Só os sonhos são passíveis de novidade, a eles sim poderíamos evocar novas perspectivas vindouras, mas quantos são aqueles que de fato habitam dentro de si para poder sonhar ao invés de simplesmente viver? A angústia que sinto me salva, porque é preciso desconfiar dos fogos de artifício de um mundo que barganha a esperança de algo que nunca vem para poder adentrar numa solidão intima a ponto de sonhar. Sonhos inúteis, e por isso mesmo sonhos libertadores, capricho de terras impalpáveis cujo início meio e fim coincidem, sem avanços, progressos ou brindes de viva o novo! O novo já é porque sempre foi desde que o dia em que nasceu para jamais deixar de ser, e a periferia ao entorno dessa verdade particular é o jeito que se encontrou para nublar a consciência com as tapadeiras da eficiência.    

Enfim... como não tenho coragem de nada disso, como não posso ficar alheio a sorriso nenhum, como os meus sonhos ainda não são malucos o suficiente para mandar uma bela de uma banana caramelizada para o mundo, sou obrigado a encerrar o que digo com um maravilhoso...

Feliz Ano Novo! J

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Armo a minha rede e aqui fico...



No saldo do novelo de obrigações costurado pelas demandas do mundo há que se desenvolver o tédio, essa resposta de ondas mansas que não se afeta com nenhuma maré de atribulações visíveis... o tédio é necessário e urgente para dar conta do que é invisível e interior – e é no dentro que o movimento deve estar prenhe de latência. Um dentro inútil, só dele, sem urgência alguma de mostrar-se eficiente. Ah, que sono terrível das equações de causa e efeito que nos ensinam a tabular desde que deixamos a idade infantil para galgar os Alpes da obtusidade adulta; quanta miséria de propósito tem em si a expectativa de passar adiante um recado que não lhe foi outorgado autoria, mas cujo simples exercício de dar vazão ao movimento, dizem, serve de prêmio ao fato de existir. Não existo, resisto; E nessa morte voluntária para tudo o que me é periférico, sento-me feliz no trono aristocrata no qual meu nariz reina absoluto, o reino daquilo que me é caro, daquilo que está ao meu alcance... tédio, tédio para todo o resto das miudezas que compõe o tecido funcional dessa maquete vista de cima, com seus sinais de trânsito a revezarem as mesmas cores de sempre, com a rotina diária a cumprir o mesmo itinerário regido pelo revezamento celeste entre sol e lua. Será que algum dia a raça humana não reconhecerá finalmente que o motivo para a sua cegueira repousa no desejo de manter acordado o ímpeto de continuar sempre adiante, seja lá por qual razão ou caminho? Eu estaciono, deliberadamente armo a minha rede para roncar os pedidos de vamos em frente, e ao meu redor um oásis de deixa-pra-depois se configura inviolável. Tédio, um tédio a tudo o que orbita ao meu redor para que o dentro de mim não sofra as misérias do existir em função dos pedidos alheios. Olho para o meu cão e o compreendo perfeitamente na sua bigodice aguda, entregue por completo de barriga ao chão gelado, pestanas cerradas enquanto lá em cima o cosmos insiste em avançar pelo infinito. Ora, que os astros se danem, pensa o cão! Para que render reverências aos benditos planetas que no alto distante cumprem uma jornada impossível de tanger com o focinho, quando as delícias do azulejo frio bastam para resumir toda uma vida de prazeres da preguiça? As almas dos bichos são invioláveis, por um destino que não sabemos porque a nós foi surrupiado, os animais descansam numa sabedoria de monarcas do próprio umbigo, já nós, pobrezinhos, crentes numa aristocracia da escravidão seguimos em fila indiana na certeza do progresso da civilização. Tédio e preguiça... é o que eu tenho para oferecer aos que insistem em me chamar a participar dessa gincana coletiva do perde-ganha. Na solidão desse meu retiro voluntário eu já venci antes mesmo de propor-me a competir. Subo no pódio do meu mundo com a certeza inabalável de que é pelo lado de dentro que as fronteiras da liberdade podem se expandir. Que modorrenta preguiça daqueles que entram e saem das suas labutas diárias na esperança de tornar melhor uma engenhoca artificial na qual não suspeitam ocupar uma minúscula parte de uma totalidade invisível. Que sono profundo desse trânsito infinito de funcionários do ‘bem estar’ social, agentes de uma mentira que nunca se resolve, todos distantes do entendimento de que é somente no exílio escuro da solidão que algum sentido de plenitude pode ser alimentado. Ah, se todos fôssemos náufragos de nossa própria jornada e pudéssemos suportar a dor de carregar nas próprias costas o peso de estar só... mas, ao invés disso, damos preferência ao bando, à multidão de sonâmbulos da proficiência, arautos da proatividade, do lucro e da vitória social. Espectros de fantoches humanos, marujos de uma embarcação à deriva. Armo a minha rede e aqui fico, exercitando o meu olhar, experimentando uma letargia de estar vivo... assim assino meu passaporte de estrangeiro na própria pátria, trocando as palavras e invertendo a língua que aprendi a falar desde cedo, mas que agora me é tão esquisita quanto qualquer outra na boca dos que estão do outro lado do mundo. No tempo do relógio a dor de me saber impotente, entregue a uma rotação que não é a minha... mas pelo menos dessa dor eu comungo e dela faço parte. Só separo o que não é de mim, o resto assumo como propriedade daquilo que sou, sempre serei e nunca deixarei de ser...

domingo, 23 de dezembro de 2012

Sou um velho cheio de rugas, carente das histórias que já se foram...



Para além dos poucos anos que carrego, sou um velho; mas sou um velho de proporções matusalímicas, contando muito mais de cem anos nas costas, cada palmo do meu ser engruvinhado em rugas de memórias que eu vivi só no desejo de um dia ter vivido. Se gosto do passado não é por admiração ao que foi e já não pode ser mais, mas porque sei que a história dos capítulos pregressos escreve linhas que me atam a um sentido de tempo estagnado, um tipo de tempo contemplativo que não me exige nada além do contemplar. Vejo agora que a minha nostalgia é uma força infinitamente maior do que aquela que cria, remando no leito turvo das minhas reminiscências até a época de comunhão com os deuses na terra, muito antes de qualquer evangelho surgir. A tragédia do tempo que avança não está na velocidade, cada vez mais vertiginosa, de se abandonar os pedaços de sentido que nos faziam sustentar a alma, mas na decadente e gradual perda dos mistérios. Minha nostalgia vem dos tempos em que o mistério nos enovelava em seu colchão de bordas invisíveis, olhando para o céu e explicando sem ver e vendo ao mesmo tempo o que há por trás de tanta grandiloquência silenciosa. Como uma taça que se estilhaça ao ser arremessada ao chão, a ânsia por respostas quebra a magia que outrora mantinha inteiriço o prazer da confusão daquilo que não se explica por linhas retas. O tempo que avança desanuvia o branco opaco dos olhos, colocando-nos capacetes de viseiras polidas para melhor ver o que vem. É nesse lugar de visão perfeita, de vistas que se acreditam perfeitas, que o mistério naufraga para dar passagem ao isso-é-igual-aquilo-haja-visto-quê-e-portanto-não-sei-o-quê-mais... As palavras que antes se juntavam ao cerimonial religioso do transcender para celebrar, hoje deitam sobre páginas em branco à espera de corretores ortográficos, servindo de plataforma à ideias de políticas tão rasas, empostadas por atores em cima de palcos tão egoístas. Minha nostalgia é a do tempo em que a música dava voltas ao redor de si própria para nesse redemoinho sem começo nem meio e nem fim materializar toda uma reverência melódica às dimensões incalculáveis desse universo, e nessa sinfonia de timbres variados o homem podia navegar como um dos elos de algo ao qual, mesmo sem saber, ele sabia que pertencia. Minha nostalgia é a do tempo em que os animais eram eles próprios Deuses na Terra, bastando sentir a presença de um tigre para ter a certeza de que os passos desse enorme felino não podem ser unicamente guiados por uma relação matemática de causa e efeito, havendo nele e em todos os seus companheiros selvagens um ingrediente concreto de espiritualidade latente. Não se fica impassível ao olhar frente a frente o simples espreguiçar de um cão, e o cão, sabedor do seu papel de mestre dos que perderam o vínculo espiritual nessa aventura da existência, torna-se o melhor amigo do homem não por acaso. Antes de seguir a qualquer evangelho, de obedecer a qualquer cartilha de ética e moral, antes de me doutrinar nas cátedras eruditas, eu dou-me o direito de conversar com o meu cão, levá-lo para passear, deixá-lo lamber as minhas mãos, alimentá-lo e compreender seu sofrimento quando algo lhe faz sofrer. Minha nostalgia é a do tempo em que não precisávamos tagarelar para conversar, onde as fronteiras do se fazer entender estavam para além da força atroz dessa nossa garganta que expulsa torrentes de ladainhas a cada segundo; minha nostalgia vem do tempo em que Dionísio mediava o saber e o pertencer através do meio termo entre uma coisa e outra, entre aquilo que é e aquilo que não é, entre a realidade concreta do homem e a face misteriosa da máscara do teatro; tempos em que o homem sabia-se pequeno, mas ao se saber pequeno podia engrandecer, alcançar territórios infinitos mesmo estando com os pés fincados ao chão. Sou um velho de proporções matusalímicas, carente do pó mágico de um passado ancestral que não volta mais...

sábado, 22 de dezembro de 2012

A fórmula da burrice!



Senhoras e senhores, descobri a fórmula da burrice! Confio-vos secretamente o segredo desse meu monumental achado com a condição de não surripiá-lo de mim, outorgando a vós aquilo que por direito cabe a minha honesta e elegante pessoa! Senhoras e senhores, estou animadíssimo com minha habilidade investigatória no campo antropológico-científico da análise programática da mentecapice-aguda, e confesso-vos que ainda não tive tempo de lavrar a autoria disso que eu chamo de Eureca-dos-Estúpidos, tão prontamente me dispus a retornar da minha pesquisa de campo para contar-vos o que vi numa simples e ingênua ida ao cinema. Como acabo de dizer, estava eu indo ao cinema quando ultrapasso com meu potente veículo um carro que no mais último volume repercutia um funk desses do tipo ‘vai pro chão, vai pro chão, dêxa eu vê seu popozão – hu hu hu hu’. O som era tão alto que uma possível nave espacial que estivesse nas redondezas tentando contato com nossa paquidérmica raça humana voltaria para Marte com o seguinte recado: ‘Bora arrancar o disco voador pra Júpiter porque pelas bandas da Terra a coisa anda feia’. Senhoras e senhores, a primeira unidade integrante da fórmula da burrice é justamente o barulho, porque tudo o que é burro precisa de alto-falantes para polvilhar sua canastrice acéfala pelos mais variados recônditos ambientais; e sobre isso há uma prova irrefutável – já que é preciso, como todo cientista de respeito, avaliar as hipóteses e julgar as provas e contraprovas nos seus mais diferentes casos e cenários laboratoriais -  que consiste em imaginar outro sujeito testando os tímpanos alheios, mas dessa vez, ao invés do funk-do-popozão, estivesse compartilhando dentro do mesmo veículo a Nona Sinfonia de Beethoven, tudo no mais alto volume. Não, senhoras e senhores, Beethoven e sua turma das cordas, sopros e metais, está longe de precisar da cumplicidade do vizinho ao recorrer às orelhas públicas o sentido de sua existência. Um desgraçado nessa posição de divulgador da Ode à Alegria seria imediatamente internado no manicômio mais próximo, muito diferente do seu parceiro do Pancadão, idolatrado em comício político por fazer rebolar um sem número de pessoas. E aqui chegamos à segunda unidade da fórmula da burrice: a multidão. Senhoras e senhores, todo bando é burro, e basta adicionar barulho nessa muvuca para que as moléculas da estupidez comecem a cantar em refrão. Explico. No mesmo trajeto de ida ao cinema – que agora reconheço ter sido um atalho à sapiência dos falidos de QI – me deparo com uma fila homérica de carros em marcha lenta à espera de um lugarzinho no estacionamento de um show caipira. Senhoras e senhores, prestem bem atenção: mais de milhares de almas isentas de massa cinzenta aguardavam pacientemente sua vez de gastar seu rico dinheirinho para testemunhar uma dupla de sertanejos universitários a tremer o gogó na base do ‘Eu me amarrei-hey, eu me amarrei-hey, eu me amarrei no seu coração, eu me amarrei!’. É uma epidemia! Onde houver uma aglomeração, podeis ter certeza meus senhores, o alvo da querela será inevitavelmente um troço de fazer rolar de rir o sujeito minimamente instruído na arte do bom senso. Até aqui, respiremos um tiquinho para avançar com todo ímpeto que o ensejo merece, temos duas unidades da nossa equação da burrice: o barulho – sendo traduzida pela necessidade vital de se gritar ao longe para que o Papa ouça: ‘Eu sou uma Anta-Lobotomizada’ –, e a multidão – se quiserdes inteligência, não será na Rua 25 de Março que encontrareis! Enfins – cunho agora esse intratável plural inexistente porque no meio de tanta tolice ninguém é de ferro -, enfins, para concluir, basta adicionar calor ao barulho e à multidão que teremos como resultado o surgimento de um exemplar amebal, produto de tudo o que é estúpido, banal e fugaz. Senhoras e senhores, que me desculpem os apreciadores do Piscinão de Ramos e cercanias tropicais, mas o calor corrompe; bote o Dostoievski com os pés na areia de Ipanema e o russo vira imediatamente um vendedor de canga... nenhuma inteligência resiste ao coco tostado.
Barulho + Multidão + calor = desentupidor de pia na testa! Ah, descobri a fórmula da burrice! Nada de surrupiá-la de mim! Sou um gênio!      

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Aqui jaz o busto de bronze do digníssimo e emérito Chico Carvalho!



Não me venha com essa história de viver a vida, o negócio todo é uma corrida danada de braços dados com a morte, cada um desesperado por garantir seu pedaço de eternidade antes que seja tarde demais. Viver a vida é com Manoel Carlos e sua turma bronzeada do Leblon; no real, trocamos de muito bom grado as delícias da praia pela carona de rabecão rumo à funerária. Isso porque a morte eterniza, estampa o ‘aqui jaz’ como emblema de vitória! Triste dos que nascem, ainda amadores na jornada do permanecer, sorte dos que morrem, vitoriosos na lembrança inquebrantável do perecimento. Nelson Rodrigues já bem dizia, somos um bando de suicidas desvairados, desejamos a morte como troféu final de nossas conquistas mundanas. Se não morrêssemos, vagaríamos por aí feito zumbis, vazios de propósito e carentes de significado! Graças ao bom Deus fomos um dia expulsos do Jardim do Éden, assim podemos morrer em paz, sem o peso da eternidade terrestre! Não, nosso desejo de eternidade é algo feito de tabela, plantado na lembrança dos desgraçados que aqui ficam, enquanto nossa alma – se é que tal coisa existe – flutua zombeteira igual à de Brás Cubas, angariando regozijos celestes com as homenagens rendidas pelos mortais que ainda, pobrezinhos, não tiveram a sorte de empacotar. Se passássemos por essa aventura satisfeitos com aquilo que temos hoje às mãos, seríamos bastante semelhantes aos animais, que deitam o nariz ao sol sem preocupação alguma com elucubrar a respeito do futuro da civilização – repare que não há STF’s no reino animal, dificilmente um labrador veste uma capa de zorro para julgar a conduta ética e moral de um chiuaua corrupto, quiçá de um companheiro seu de raça. O bicho está no presente, é eterno no que é, naquilo em que é, Nós não. Nunca somos o que somos, mas o que gostaríamos de ser; os otimistas diriam que essa é justamente a matéria da qual os sonhos são feitos, eu digo que é o mais bem acabado testamento existencial já formulado. Corremos para nos eternizar na lembrança dos outros, e para isso a morte é o laço final da empreitada. Já sei como vou me eternizar, vou providenciar um busto de bronze, uma estátua de ferro do digníssimo Chico Carvalho; ao invés de correr atrás dos feitos dignos de nota – uma posição social invejável, comportamentos beneméritos para com o próximo, atitude política em prol da ordem e do progresso social, caridade religiosa... ao invés de toda essa ladainha semeada muito mais através do lobby alheio do que pela honra ao mérito, forjarei eu mesmo numa fundição de esquina um belo de um busto de bronze, e fincá-lo-ei num parque público qualquer! E ali ficarei a disposição dos corredores e transeuntes que queiram render suas exéquias purpurinadas ao nobre Chico Carvalho, merecedor do bálsamo de ferro, cocuruto de caráter inviolável! Nada nem ninguém, nem mesmo um arsenal de dejetos de pomba, conseguirá pôr em xeque a minha reputação já embebida no mais puro metal eterno! Sobreviverei por gerações e gerações, sorridente do peito pra cima, enquanto meu esqueleto dorme feliz a sete palmos abaixo da terra! Serei lembrado, é só isso o que importa... amém.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Beckett no boteco da minha esquina...



Estava eu caminhando rumo ao sacolão – um dos entreatos nada cômicos a que resolvi afeiçoar-me depois de morar sozinho -, quando passo diante de um bar mixuruca de esquina, desses que podiam muito bem emprestar o endereço para qualquer cidadezinha do interior, do tipo cinco mil habitantes para baixo e-lá-se-vai-mais-um-pra-debaixo-da-terra, amém. São Paulo tem dessas coisas, de um lado uma avenida digna de uma metrópole de ficção científica, com carros atulhados no meio de uma chuva ácida à la Blade Runner, do outro um boteco onde o tempo não anda. E eu parei de andar um instantezinho, dando um tempo de descanso para minhas panturrilhas magricelas made-in-Etiópia, justamente para olhar o interessante quadro que se pintava dentro daquele pequeno bar beckettiano de esquina. A cena era quase morta, como se alguém estivesse dirigindo os atores e gritasse: estátua! Um cliente solitário estava sentado num dos três banquinhos encostados ao balcão, eu o via somente de costas, totalmente paralisado a olhar para a senhora estante de bebidas que havia do outro lado a sua frente. Mesmo que de costas, pude entender a tamanha guerra silenciosa que travava consigo próprio: qual delas escolher? Conhaque? Pinga? Cachaça... isso tudo corroborado por suas mãos, formando juntas a posição de reza dos necessitados, bem próximas ao rosto. O dono do lugar estava do outro lado do bar, também imóvel, a olhar um antigo aparelho de televisão posicionado no alto do estabelecimento, do seu ombro direito pendia um pano de prato mirrado e sujo que nas mãos de um mecânico não traria nenhuma esquisitice quanto à sua função. Além do ruído indistinto do aparelho de televisão, o ranger das pás de um antigo ventilador de teto também exigia sua parte na sinfonia da miséria. Vez ou outra uma mosca fazia vôos rasantes bem perto do nariz do dono do bar, o que o obrigava a apanhar o seu pano de engraxar carburador e executar um movimento de preguiça homérica, muito mais no intuito de dizer à mosca ‘vá plantar batatas’, do que para anunciar qualquer sentença de morte ao bicho voador. Nada mais acontecia, só isso: dois personagens estáticos, um no diálogo mental com a dúvida do que escolher para se embebedar, o outro atento a qualquer programa sem importância na televisão. No meio dos dois, uma mosca convocava à cena um movimento que ambos teimavam em aceitar. Imaginei ser aquela uma bela metáfora da vida... a despeito de qual bebida apadrinhar, aquele homem teria um único e certo destino: a sarjeta, trôpego de tanta comunhão com o álcool. E deste lado daqui, na posição dos analistas de cenas de botecos chinfrins, eu pergunto: que diferença faz beber da garrafa da arquitetura, do direito, das ciências sociais ou mesmo das artes cênicas, se no fim o único destino que nos é reservado é a sarjeta dos combalidos pela morte? Se o álcool é para o bêbado um jeito de suportar a vida, para nós, os sóbrios intelectuais formados na base das cartilhas da ética e da moral, são os papéis sociais o narcótico desejado. Nada acontecia. O dono do bar devia estar pronto para atender o cliente, mas enquanto este não decidia nada, que custo havia em também experimentar o prazer da letargia existencial? Um espera o outro que esperava a si próprio... a única coisa viva naquele lugar era a mosca. Uma bela sala de espera, eis a vida, e enquanto não se decide nada, melhor esperar... um jeito seguro de não se comprometer e evitar qualquer esforço desnecessário é esperar. ‘A espera de algo’, bem que podia ser esse o título do quadro que eu via enquanto minhas panturrilhas do Gabão descansavam. E eu não quis esperar para ver, apressei meu passo em busca da minha couve-manteiga que não sei e nunca soube cozinhar, mas teria de aprender se não quisesse esperá-las murchar dentro do ar condicionado da minha geladeira. Na volta passei novamente na frente do bar... tarde demais: portas fechadas. Mas não me surpreenderia em nada se hoje, no dia seguinte à minha excursão ao sacolão, aqueles dois personagens estivessem exatamente nas mesmas posições e atitudes em que os vi, repetindo uma cena que nunca de fato começou... e que só irá de fato terminar quando as portas do bar cerrarem para nunca mais subir...

domingo, 16 de dezembro de 2012

Pupilas dilatadas, sempre!


Será que não existe por aí nenhum alquimista de beira de estrada, desses que vendem a lágrima da mãe como se fosse algum elixir anti-rugas no balcão dos programas vespertinos de fofoca, algum pobre diabo capaz de bolar um colírio dilatador de pupilas, mas não daqueles que cegam como os de exame oftalmológico, mas do tipo que amplia a visão ao agigantar o globo ocular de modo a fazê-lo pular para fora como uma jabuticaba de Itu? Porque a questão é justamente essa: temos todos olhos muito pequenininhos, minúsculos, e com eles nos portamos como ratinhos miúdos, iguais àqueles dos contos do Kafka, um bando de fuinhas que sai de casa cedinho para voltar de noite com o cubo de queijo prato caprichosamente fincado nos dentes. Se nossos olhos fossem maiores talvez fosse possível olhar mais longe, redimensionando em importância o nosso ínfimo repertório de idas e vindas dentro do labirinto que nos enfiaram a perambular. É preciso desenvolver a distância, dilatar as fronteiras do que se vê até os limites do horizonte, porque grande parte da burrice que nos acomete repousa na estreiteza do alcance da visão. Olhos maiores e menos cerrados poderiam nos alforriar de um sem número de misérias cotidianas. Mas não exageremos, afinal, sempre é possível render homenagens à anatomia de um belo de um mosquito, gastando tempo para conjecturar no seio de uma filosofia de asas curtas; mas o que é um pobre de um mosquito frente à potência magnânima de uma paisagem de horizontes infinitos? A paisagem dessa ordem é metafísica, transcendental, espiritual, impalpável e vaporosa, achatando-nos ao lugar mísero que merecemos estar: o de simples observadores da nossa impotência. Tudo isso empobrece o interesse pelo pequeno mosquito para investir reverência naquilo que é misterioso – e junto com tanta beleza estética, vem na carona do mistério o sabor maravilhoso pelo silêncio. Preste atenção às verdadeiras paisagens, todas elas são mudas, caladas, e se há algum som ele é tão ensurdecedor que tapa nossos tímpanos como se deles fossem exigidos um amortecimento completo. Ah, senhoras e senhores, como somos parecidos com os tais mosquitos, ávidos batedores de asas que não se detém em outro ofício a não ser o de zumbir por aí ao redor de tanta pequeneza desimportante! Outro dia estava eu a sair de um shopping center - tipo de arquitetura perfeitamente adequada ao divertimento de cupins apressados e barulhentos -, quando vejo uma velha gorda parada em cima de uma escada rolante enguiçada. A matrona indignava-se com a falha técnica da traquitana moderna, estando estacionada em cima do tal equipamento há não sei quanto tempo – já que peguei a cena no meio do que acreditava ser o ápice dramático – interpretando o que parecia ser um solo de ópera em homenagem à preguiça. E tudo por conta do quê? De um mísero equipamento sem utilidade? Ora essa... Adoraria saber o quanto custaria para aquela mulher calar a matraca e arrastar suas pelancas para fora daquela situação sem haver a necessidade de interromper a rotação da terra como estava até então a proceder. Não faz muito tempo que passei em frente a uma faculdade e testemunhei uma legião de estudantes revoltados a bradar gritos de ordem contra o novo reitor empossado por uma eleição suspeita. Um enorme bocejo brotou do meu semblante, aquela muvuca toda me soava tão pequenininha quando o balanço suave de um graveto cambaleante no alto de uma árvore: cai ou não cai? Qual é a diferença? Se cair ou não cair, as coisas continuarão as mesmas, o sol irá deitar no horizonte no mesmo bailado já conhecido, e a lua o substituirá no turno da noite como sempre o fez desde o tempo em que o homem arrastava sua companheira pelos longos cabelos até dentro da caverna. Sou um conformista? Talvez seja sim, mas o meu profundo tédio à mudança só é adequável a esse tipo de equação pragmática que acredita ferir o andamento das coisas ao resolver pendengas de pernas tão curtas. Anote aí: daqui há não sei quantos anos, quando eu e você já estivermos lanchando com os vermes, haverá uma nova greve e revolução estudantil exatamente igual a essa que eu presenciei, repetindo uma cena tão gasta quanto o desejo revolucionário de se encontrar um melhor governo para a miséria humana. Eu prefiro sair por aí entoando ao céu a dúvida gigantesca de Hamlet: ser ou não ser? Eis a questão! Olhares amplos, senhores! É preciso frequentar os mistérios e, por conta deles, conviver na dor de não receber resposta alguma, variando constantemente as perguntas para aumentar, quem sabe, o repertório de interrogações. Está aí uma atividade extremamente inquietante, solitária e saborosa. Não há preguiça que se preste a nos cimentar ao chão quando o ímpeto é o de olhar ao longe sem medo não enxergar os limites do invisível. Distância, meus senhores! Mais distância e menos proximidade! Quando vou ao teatro, nunca sento nas primeiras fileiras, procuro sempre o local mais afastado do palco de modo a reconhecer o quadro total que emoldura os atores, só assim consigo fazer parte da história contada. Quem escolhe receber o cuspe dos atores sofre de algum tipo de carência afetiva só explicável pela admiração às pequenas rugas estampadas no focinho dos artistas. O protagonista do teatro é o próprio teatro, e não a sequência diminuta de caretas humanas... para poder fruir dessa sensação, é urgente sentar ao longe, ampliar a visão. Reparem que o nome do teatro de Shakespeare é precisamente ‘The Globe’ - o globo -, e não ‘The Man’! O dramaturgo inglês sabia que há uma curiosa forma de retratar as dores humanas fugindo dessa psicologia barata e auto-referente que povoa nossos melodramas atuais – a de colocar-nos em cima de um terreno gigantesco e nos fazer sambar no meio de nossas próprias ambições equivocadas de tamanho. Ação! Ação poética que se faz inteira pelo olhar de longe! E menos dores íntimas nascidas do âmago de uma pequenez sentimentalóide! Ah senhores! Que maravilha é assistir a um filme de Kubrick e se deixar deleitar pela beleza de suas lentes grande-angulares; quanta potência narrativa, filosófica e artística é possível construir pelo intermédio da habilidade de um mestre das distâncias! Dilatemos nossas pupilas, senhores! Não para cegar, somente para fugir do pequenino e ganhar o horizonte misterioso!

Os loucos são filósofos da sanidade...


Para Erasmo de Roterdã, famoso pensador holandês, a loucura é um estado de profunda iluminação, conferindo aos seus portadores a qualidade de arautos de uma verdade essencial, solapada por debaixo das camadas burocráticas dessa nossa vida regida pelo chicote da racionalidade. E não é que ele tem razão? Quem duvidaria de que as fronteiras do justo e do ordenado abrigam justamente o contrário do que advogam, sedimentando um país da esquisitice institucionalizada por regras de comportamento que desterram para a margem do mundo os poucos inteligentes que se recusam a agrilhoar-se a tais domínios uniformizados? Eis a inversão: A sanidade seria tomada como loucura, e a loucura, por sua vez, é a carta de alforria dos que tem a cabeça saudável. Os exemplos são vários. Dom Quixote ganha posição de sábio quando embevecido pelos mais loucos delírios de alucinação, e ainda que os moinhos de vento não passem de moinhos de vento, admiramos o cavaleiro da triste figura exatamente pela ousadia de dar um peteleco zombeteiro na ordem palpável das coisas para dar vida a gigantes que não existem. E que profunda inveja temos desses seres especiais, translúcidos de alma, transparentes nas suas ações! O mesmo acontece com as personagens de Plínio Marcos, sempre acometidas em algum grau pelos mais variados tipos de loucura. Há tanta lucidez na voz desses espectros de seres rejeitados que a vontade é dar-lhes um microfone para que palestrem diretamente aos ministros da razão. Há uma passagem na peça ‘Navalha na Carne’ em que Neusa Sueli, a prostituta da história, despeja em cima do cafetão Vado as suas mais íntimas frustrações: ‘Que merda de vida é essa?’ O grito gutural dessas gargantas doentes é a prova de que a periferia do mundo tem muito a que ensinar aos entronados do equilíbrio erudito. E por falar em erudição, quer figura mais admirável na sua loucura do que Simão Bacamarte, o respeitado alienista de Machado de Assis que se acredita reformador das doenças psiquiátricas, dando voltas e mais voltas dentro da sua nobre retórica acadêmica para mais tarde chegar à conclusão de que não existe demência maior que a própria razão científica? Todos os loucos são saudáveis, cabendo ao higienizador das moléstias um lugarzinho reservado dentro do manicômio de Itaguaí. Toda vez em que ligo a televisão e vejo aquela turma de juízes do STF enfiados em trajes de Zorro a entoar os mais prolíficos termos jurídicos – Data Vênia para cá, Data Máxima Vênia para lá -, acreditando piamente numa seriedade espectral da situação, eu me pergunto se ao menos um deles tem consciência do ridículo papel que interpretam... são todos malucos que se passam por digníssimos representantes da moralidade e da ética. Aliás, o cotidiano está cheio desses dementes do rigor, a julgar pela tonelada de soldadinhos de chumbo que se veste com o mesmíssimo figurino, estampando uma bendita gravata enforcada até as paredes finas do gogó. Às vezes, eu estaciono voluntariamente numa esquina movimentada para ver a fila interminável desses executivos caminhando religiosamente no mesmo ritmo em direção ao self-service da esquina. É uma cena digna de internação no hospício mais próximo... todos crentes da sua medíocre importância no mundo, mas longe da consciência de que são apenas bonequinhos articulados por títeres invisíveis, ou mesmo amarrados a fios tão aparentes que somem diante do nariz desses distraídos. Ah, quanta admiração eu tenho pelos malucos, pelos sátiros, discípulos de Dionísio, bêbados e desorientados; afinal, emprestando Shakespeare, esses malucos sabem perfeitamente que a vida não passa de um conto contado por um idiota cheio de som e fúria, não significando nada! Então, que verdade essencial é essa que repousa na boca dos excluídos? O sentido de que se tudo não passa de um grande teatro erguido pelos alicerces da falsidade, melhor atravessar essa jornada dando risadas do que forçar uma expressão de seriedade. Um brinde aos loucos! Essa manhã eu tive o orgulho de me sentir parte integrante desse grupo de lucidez plena, arranhando esquizofrenicamente a garganta ao gritar: VAI CORINTHIANS! O bando de loucos forma atualmente a mais potente escola filosófica da sanidade, um campo de conhecimento sobre o homem que agrega no perímetro das quatro linhas do campo de futebol uma agremiação de homens sábios, todos malucos da ponta dos cabelos até a unha gasta do dedão do pé... e é a eles que eu presto a minha mais sincera reverência.

A tragicômica história de uma personagem suicida...


(...) 
Foi querer dar um ponto final à sua vida e acabou sangrando em reticências... 
Eternamente pingando aqui e ali, 
Sem nunca parar, 
Nem nunca acabar (...)
...

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Um velhinho no metrô...


Dentro do metrô e vejo as portas se abrirem para uma enxurrada de novos passageiros tomarem conta do pouco de ar respirável que nos restava. No meio daquela massa amorfa um senhor de seus 80 anos, um velho mirradinho, tão enrugado quanto uma uva passa de ceia de natal, aparece costurando a multidão para alcançar, bufando de raiva e cansaço pelo tamanho jogo de cintura que a situação o impunha, seu lugar numa cadeira reservada aos idosos... e lá fica, em silêncio, contente com o seu papel de coadjuvante naquele palco de rostos jovens e barulhentos. Que coisa incrível é a velhice, se é triste para quem habita esse estado de iminência do colapso, é também surpreendente para os que podem testemunhar de fora os seus contornos de silhuetas únicas. Todo homem velho é único, não havendo dois exemplares de mesma idade que possam rivalizar em semelhança. O tempo funciona como uma espécie de registro de individualidade, estampando na fisionomia de quem o desafia um prêmio de originalidade, um troféu pela perseverança em enfrentar a vida por tantas temporadas seguidas. Nada mais diferente que a juventude, esse barco de cores iguais que carrega um não sei quanto de marujos de mesmo uniforme, todos tagarelas e efusivos. Aquele homem, encostado no seu canto e todo encurvado, não fazia nada... apenas com uma das mãos arrancava alguma coisa da careca já escassa de cabelos - uma casca de ferida cicatrizada, talvez -, e levava o produto do seu achado até a frente do seu nariz, de modo a apertar as vistas por detrás dos óculos de lentes grossas para certificar-se do que havia apanhado. Combinado a esse simples movimento, o velhinho mirradinho feito à imagem e semelhança de uma uva passa de ceia de natal, fazia seu beiço recuar e avançar, como uma alavanca de ajuda providencial a sua dura respiração. E todo ensimesmado e retraído repetia essa ação, repetia e repetia... metodicamente a mesma e cuidadosa ação. E assim ficou até o momento em que tive de sair do trem para seguir meu caminho. Nunca mais o verei, isso sei bem, mas sua imagem ficou gravada em mim como um enorme e demorado aperto de mãos que não chegamos a trocar. Dentro daquele vagão atulhado de maritacas e gralhas barulhentas aquele velhinho reinava absoluto! Que personagem incrível! Silencioso e extraordinariamente potente no seu recolhimento, totalmente indiferente as imagens já gastas de um quadro humano que provavelmente não o interessava em nada. A velhice é sábia... e dramática. Aquele homem em cima de um palco ganharia o posto de protagonista de qualquer espetáculo... ele já seria o próprio espetáculo! Pena que na vida comum as figuras respeitadas se sustentam na base do charme, e a nós, triste plateia desse auditório de belas faces, nos resta torcer para quem sabe um dia nos depararmos com um velhinho mirradinho, tão enrugado como uma uva passa de ceia de natal!

Aqui não se filosofa, aqui só se faz farofa.




Não se reprima, caro leitor, aqui ninguém filosofa, aqui só se faz farofa. Na primeira oportunidade o sujeito dá um jeito de enfiar num tapaware um frango assado na padaria e pé na tábua dentro de uma kombi rumo ao Boqueirão da Praia Grande! Tapaware com frango e farofa, importante frisar. E se no trajeto da farofada litorânea houver um pagodinho para embalar as orelhas, ainda melhor! Porque pagode e farofa são duas metades feitas especialmente uma para a outra, ambas enlaçadas em matrimônio dentro de um Tapaware comprado numa promoção das Casas Bahia, ou mesmo feito à imagem e semelhança de um potão de sorvete napolitano da Kibon. Não é à toa que por essas bandas de cá quem manda é o frango. O frango reina por aqui porque invejamos sua qualidade ciscadora de sacolejar as penas quando lhe dá na telha, e se comemos o pobre do galináceo é menos por uma ideia de matar a fome do que pelo profundo respeito e admiração que nutrimos por sua conduta barulhenta e impertinente! Um verdadeiro ritual de antropofagia-penosa, ou melhor, frangofagia-ciscante! Ave Frango! Muito diferente do peru, sujeito de papo cadenciado que vez ou outra solta um glu-glu e só resolve dar o ar da graça uma vez por ano e olhe lá. O peru é chique demais para nós, quase um intelectual da Academia Brasileira das Penas que vive com seu pincenê a distribuir aforismos eruditos: glu-glu. Clama! Não se reprima, caro leitor, aqui ninguém filosofa, aqui só se faz farofa! E farofa combina também com pagode, haja vista que as duas coisas foram feitas para produzir barulho e esquentar a carne. O bacon tosta no meio da farinha de trigo num chiado de xingar os tímpanos, o lombo glúteo da pagodeira rebola ao som do pandeiro, fazendo suar a testa que já nasceu suada de tudo quanto é conjunto de pagode. Olha o Bóle-Bóle menina! Ah, caro leitor! Aqui tudo é uma homenagem à farofa e aos seus derivados. Veja o que acontece com o semblante dos japoneses ao testemunhar o bando de farofeiros corinthianos que aportaram por lá. Pelos domínios da terra do sol nascente não há olhinho puxado que compreenda como o homem pôde ter chegado a essa condição de ser-farofador que ao menor sinal sai por aí ciscando suas penas em favor de sabe-se lá o que.  A farofa também é prima-irmã do calor, esse parente próximo que impele qualquer diabo a sair por aí cantando o ala-la-ô, arrancando cada palmo de roupa com o fim de mostrar os músculos malhados na academia. Imagine uma farofa sendo preparada no ártico para um almoço com as focas albinas... aposto que não haveria clima algum para um urso polar começar a tremer o gogó na batida do chocalho tocado pela raposa trajada com seu casaco de pele. Não caro leitor, a farofa é patrimônio nosso, desse terreno de seres esfuziantes que antes de filosofar resolvem farofar. Observe a conduta dos que pegam diariamente o nosso abarrotado e irrespirável transporte coletivo. Antes de calar frente a tragédia de virar uma sardinha enlatada, condenada a cheirar o sovaco de bacalhau do vizinho-peixão, todos parecem sacar seus instrumentos de gingado para entoar a sinfonia da fofoca, dos gritinhos, das gargalhadas e de todas as churumelas verbais possíveis e imagináveis... fosse um monge budista (totalmente contrário à dieta do frango) a primeira reação seria recolher-se num mantra silencioso, buscando salvação numa fumacinha de incenso imaginária, restrita a sua charmosa cabeça de ser filosofal! Mas não, caro leitor, aqui não há filosofia que resista ao repique do tamborim. Aqui a coisa se dá na base da malandragem, de quem rebola mais e melhor, conferindo à periferia do charme o sentido de existência... e se a coisa vai mal, antes eu me safar dela com meu gingado de passista do que lhe ensinar a concorrer em simpatia com esse meu sorriso de bronzeado de laje. Imagine um Tsunami devastando a costa brasileira... Agora imagine tentar repetir a mesma cena dos orientais depois da tragédia: todos os tupiniquins enfileirados na porta do único supermercado remanescente, pacientes em esperar a sua vez de receber um único pacotinho de miojo para satisfazer a fome mais imediata. Todos em silêncio, respeitadores da dor e do luto da comunidade... Ah, caro leitor, bora pro Boqueirão! E não vá me esquecer do Tapaware com o frango... e a farofa! ZIRIGUIDUM!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A minúscula parte do pequeno que somos...



Senhoras e senhores, a trama da vida diária é realmente um negócio digno de nota, isso porque a pena com que ela escreve as linhas da novela do cotidiano dá-nos a curiosa chance de testemunhar um desfile de frivolidades e insignificâncias que acabam, por mais paradoxal que possa parecer, conferindo tamanho gigantesco a tudo o que é pequeno – e quando o pequeno diminui até chegar à dimensão do minúsculo, aí sim nos sentimos protagonistas de algo cujo teor dramático ultrapassa as fronteiras do inconfessável particular para galgar a urgência de tornar pública a nossa tragédia. Senhoras e senhores, se o torvelinho de futricas, fatos e boatos, fofocas e diz-que-me-diz, são a matéria fundamental dessa panacéia melodramática, não seria surpresa adequar em igual proporção de importância as personagens que nela flutuam, assim, também não é preciso correr muita sensibilidade por dentro das veias para que o mais distraído dos seres humanos perceba que a sua figura é tão pequenininha quanto a sua função de fuinha que esse teatro maior chamado Vida lhe instruiu praticar. Senhoras e senhores, conheci um fuinha dessa espécie! Um legítimo representante disso que podemos chamar de mediocridade, mas uma qualidade de mediocridade tão sincera e transparente que, embora tenha me causado certo constrangimento no princípio do nosso inesperado encontro, não pude deixar de render homenagens a esse magnífico fantoche que pulou na minha frente sem vergonha alguma de articular seu queixo de ventríloquo de circo. Eis aqui as circunstâncias que me levaram a essa incrível experiência. Acabava eu de pisar minhas magras pernas no saguão do teatro quando o dito cujo alcança-me com o seu olhar vítreo e pronuncia num brado retumbante o meu sagrado nome: ‘Fulano de Tal, é você?’ Sim, era eu... e ainda que eu não me chamasse Fulano de Tal passaria imediatamente a ser o tal Fulano de Tal pelo grau purpúreo de efusividade que a criatura evocava a minha presença. Sim! Aqui estou eu, o digníssimo Fulano de Tal, arrastando meu suntuoso manto do reconhecimento público! Ah, senhoras e senhores, senti-me o Grão-Duque de alguma aldeia medieval, o Czar da Praça Vermelha, o Abade nomeado pelo santo Papa... ou melhor, senti-me o próprio Pontífice da Santa Sé tamanha foi a lambida que recebi na sola do pé daquele pobre servo da insignificância. Senhoras e senhores, por que será que as pessoas se regozijam tanto em servir-nos em bandeja de prata essa sua idiota vacuidade, incrustando no metal pedrinhas de desejos de atenção reprimidos? O que lá tenho eu com isso? A vontade que tive foi de mandar aquele peão-de-xadrez mover suas perninhas curtas em outras casas e me deixasse em paz, mas eu tive o azar de incorrer no maior pecado que um pecador da minha espécie poderia cometer e disse: ‘Olá, como vai?’ Senhoras e senhores, deixem-me lhes dar uma dica preciosíssima: jamais, em hipótese alguma, lancem mão de um simples ‘Olá, como vai?’ numa ocasião semelhante a essa a que eu acabei de reportar, melhor dizendo – jamais abram vossas bocas para articular a língua num frugal ‘Olá’ sem o ‘como vai?’ como sufixo -, porque um simples ‘Olá’ funciona para esses pequerruchos mal amados como a mesma benção divina que fez abrir as águas do Mar Vermelho para Moisés seguir caminho em direção à Canaã, a terra prometida que verte leite e mel nos seus riachos abençoados! Ah, digníssimos de infortúnio, não sabem vocês o quanto tive de adormecer meus ouvidos para suportar o relato de tanto blá-blá-blá sobre a própria vida mesquinha daquele que se dirigia a mim! E por que justamente a mim? O jubiloso Fulano de Tal não teria outras ocupações mais nobres a cumprir - como, por exemplo, assoar o nariz -, do que parar a rotação do mundo para se sentir uma Via Láctea rodeada por aquele satélite de vento perfumado? E tudo isso com um único intuito: elevar-me ao patamar dos escolhidos! Vá escolher a mãe para aporrinhar! Ah, senhoras e senhores, se eu fosse menos educado... porque grande parte das tragédias da vida nos seriam poupadas se abandonássemos essa terrível condição de ‘seres educados’ a que fomos doutrinados a colocar em prática... Aguentei tudo em silêncio sepulcral, depois encaminhei-me para dentro das dependências do teatro, onde dali a instantes as cortinas subiriam para mais um espetáculo da temporada... e mal sabia eu que aquele deslumbrante personagem minúsculo estava a minha espera, pronto a entoar sua ladainha de fã dos abnegados. Senhoras e senhores, a trama diária é um enredo realmente deslumbrante... lembro-me agora de uma mulher gorda que avistei ao sair de um Shopping Center, ela devidamente estacionada no alto de uma escada-rolante enguiçada, soltando impropérios aos quatro ventos sobre a incompetência das engenhocas mecânicas da modernidade... era a perfeita Norma de Bellini, uma Casta Diva na magnificência de sua pose, convocando o mundo a olhar para o quanto seu gogó estava preparado para reivindicar sua existência... sua minúscula existência, diga-se de passagem.  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

História concisa do ator...


Era uma vez alguém que não sabia quem era... 
E não sendo ninguém, podia ser muitos... 
Todos de uma vez, ou um por um, cada um na sua vez.

Natal da Sapucaí



Querido menino Jesus, com o perdão da palavra – e o senhor quando crescer será o homem do perdão, portanto não me negará essa profunda graça tão requisitada desde os tempos em que a Eva (que mais tarde viraria banda) abocanhou a tal maçã proibida, e Adão, ao notar as partes pudendas, viu-se obrigado a inaugurar a Semana da Moda do Éden com uma folha fashion de bananeira-Herchcovitch – enfim, querido menino Jesus, peço perdão a ti e a todo o elenco do presépio para revelar publicamente a seguinte indignação dessa sua vossa ovelha latina desgarrada do rebanho: ah, senhor menino Jesus, o que é essa sua festa de aniversário senão a comemoração universal da cafonice? Parece, querido salvador das almas condenadas, que o mundo é um enorme tonel de carvalho antigo acumulador do elixir do mau gosto que tem no mês de dezembro a sua torneirinha aliviadora aberta! Santo Deus, menino Jesus – com o perdão da referência ao vosso Santo Pai de Barbas Brancas -, mas alguém precisa rever esse diretor de arte que insiste em confundir o carnaval, a festa da carne – esse sim um verdadeiro evento da pouca vergonha promovido pela serpente transfigurada em bode dionisíaco -, com a data natalina da vossa chegada ao planeta, o mesmo planeta em que eu fui condenado a pastar (lembre-se de que sou uma ovelha – ainda que desgarrada – e, portanto, nada mais justo que viver pastando no pequeno pasto em que me coube pastar). Ah, senhor menino Jesus de Belém que não é do Pará, rogo ao vosso pai que empurre o carrinho de bebê ao qual estará ocupado por vossa digníssima presença devidamente embrulhada numa fralda descartável para que observe o monumento ao lado do parque do Ibirapuera ao qual batizaram de árvore de natal! Que aberração pecaminosa, santo Deus! E a hecatombe em forma de cone gigante iluminado repete-se frequentemente! A cada ano, senhor dos milagres terrenos, insistem em armar aquele bolo verde feito de camadas de andaimes metálicos, variando a temática dos enfeites a cada nova temporada do mau gosto! Por exemplo, oh digníssimo da Santa Ceia ainda não servida, ano passado algum detrator da vossa festinha de aniversário resolveu lançar mão do tema ‘Docinhos do Buffet da Turma da Mônica’ e tratou de incrustar naquele bendito cone-de-Itu um não sei quantos pirulitos de isopor... Ah, meu Pai Amado, parece que o natal é uma nostálgica reminiscência da época do Casino do Chacrinha, áureos tempos em que abobrinhas voavam por cima das cabeças do auditório num êxtase libidinoso capaz de fazer rebolar o Cão na sua toca inundada de enxofre! E o que dizer então das musiquinhas, oh senhor dos sofredores incapacitados? Quanta gente que preserva o gogó inflamado para alforriá-lo justamente na sua data? A cada esquina brotam alto-falantes que tem por missão rasgar os tímpanos dos que ainda o conservam com o desejo formar um coro enorme para um novo gênero de canção batizada de ‘Jingle Bells do Axé’. E isso tudo, oh magnânimo transformador da água em vinho, potencializado pelo suor do caldeirão tropical! Sim, porque parece que há uma relação direta entre o mau gosto e o bafo abaixo dos trópicos, juntando o bodum do suor com as lantejoulas despregadas das fachadas comerciais! Santo Deus vigiai a 25 de Março e dai a tua santa benção ao exército de formigas pecadoras que de lá partem com sua carga carnavalesca para contaminar de serpentina as nossas cidades! Alá lá ô ô ô ô ô ô ô, mas que calô ô ô ô ô ô ô! E como se tudo isso não bastasse, oh menino da manjedoura da estrebaria da beira de estrada, formam-se legiões de fiéis admiradores do mau gosto, estacionando seus carros para babar pelo canto da boca o fel cafonal de suas mal geridas referências estéticas! Oh menino Jesus, com o perdão da palavra, que tal conversar com o Moisés e fazê-lo divulgar uma medida provisória em forma de 11º mandamento cujo teor seria esse: “Todo aquele que se inspirar na Carmem Miranda para comemorar o meu santo aniversário será deportado para o recanto do Raio-que-o-Parta na companhia do Michel Telo e da Joelma do Calypso”? Perdão, senhor Jesus, perdão se me excedi... amém!  

domingo, 2 de dezembro de 2012

Epílogo de um cão...


Querido dono, li o que escreveu a meu respeito e resolvi romper com o silêncio para um pronunciamento oficial. É certo que fizemos um pacto de que eu nunca abriria a minha boca em forma de focinho preto, salvo quando tivesse certeza daquilo que quisesse dizer – e como eu nunca tive certeza de nada nessa minha curta vida de cachorro, não houve porque quebrar o nosso combinado. Assim passei nossos anos de convivência: em silêncio, às vezes me dando o direito de produzir alguns poucos ruídos inocentes, como o de roncar, bocejar... outras vezes arfava feliz com a língua pendendo para fora e emitia alguns grunhidos de satisfação... tá bem, confesso, não há porque mentir, não nessa altura do campeonato – também posso ter sido um tanto quanto  impertinente por chorar e ganir, implorando por um passeiozinho pelo bairro. Há de convir que uma volta na esquina para cheirar o poste tem o mesmo valor que uma viagem à Disney para gente da sua espécie. Mas foi só! Nunca fiz uso do verbo para me dirigir a você ou a qualquer outro de sua raça, embora, é bom que se diga, pudesse muito bem a qualquer momento palestrar em sua língua sobre os mais variados temas e tópicos, desde o absurdo do asfaltamento das ruas do nosso bairro até a questionável, porém compreensível, proibição impingida a nós, cachorros, de darmos um ligeiro mergulho na piscina do quintal. Mas as coisas mudaram, afinal, o trato feito não considera, pelo menos não em contrato assinado em cartório – e isso eu fiz questão de verificar -, o estado em que agora me encontro. Uma vez despachada para o céu dos focinhos, e não havendo qualquer cláusula proibitória que impeça um cachorro morto de falar, ou, pelo menos, de escrever, venho através desse depoimento retribuir na mesma medida a linda homenagem feita a mim por suas palavras. Obrigado, querido dono! Ainda que houvesse a possibilidade nas nossas tenras infâncias caninas de discutir com a cegonha o destino de nossas moradas, ainda assim teria por certo escolhido a sua companhia como destino final. Os aprendizados foram muitos e as curiosidades também. Que tipo esquisito é esse ao qual pertence, meu dono! E falo isso sem nenhum tom de reprimenda – lamberia sua mão agora se pudesse, só para provar minha sinceridade. É bastante interessante lidar com essa espécie que anda em duas pernas, sempre apressada em ir a algum lugar que nunca se sabe ao certo... e quando volta sabe-se lá de onde, traz no rosto uma expressão indecifrável, do tipo: ‘adivinha o que me aconteceu?’. É claro que o meu faro de cachorro era extremamente competente para mapear todo e qualquer sentimento importado da rua, o que me levava a aproximar-me de você para conversarmos mais a fundo sobre as questões que o atormentavam. Que coisa mais incrível! Vocês, meu dono, nunca estão onde querem estar, ou nunca conseguem fincar os pés no aqui e agora – transitam entre o que foi, o que poderia ter sido e o que quiçá será, embrulhando tudo e qualquer coisa para fugir daquilo que são no instante em que são! Nós, cachorros, não temos esse problema, e digo ‘problema’ porque vejo, ou conseguia ver enquanto vivia, que isso os atormenta tremendamente. Lembra-se daquela vez em que você saiu de casa angustiado com a sua iminente apresentação de formatura, todo ansioso e temeroso de que algo desse errado, e antes de apanhar o carro veio até mim para apertar o meu focinho cúmplice das suas crises íntimas e me sussurrar ao ouvido: ‘deseje-me sorte... quando voltar a vê-la tudo já estará terminado’? Naquele momento eu balancei o rabo e lhe lambi a mão, mas aquilo, posso confessar agora depois de morta, foi somente um jeito de disfarçar a minha também aflição gerada por sua cara branca de pavor; sim, porque pela sua voz, meu querido dono, parecia que o mundo estava prestes a parar de girar, dependendo do seu tão aguardado desempenho. Quando voltou mais tarde, estampava um sorriso no rosto... e eu pensei: ‘ufa!’ Eu torci por você, meu dono, não sabe o quanto eu torci por você... se tivesse me levado junto, eu teria levantado da cadeira e aplaudido de pé a sua apresentação. Mas aos cachorros o que é dos cachorros! - como diria alguém lá do Egito antigo. O que eu quero dizer, querido dono, é que a sua espécie tem uma real aptidão para criar monstros que não existem, ou só existem por habitar a cabeça de quem pertence a sua mesma condição. Se a grama deixasse de crescer lá do lado de fora, o sol não apontasse no horizonte na manhã seguinte e se a água não mais escorresse pela mangueira... aí sim teríamos um problema sério... mas todo o resto são divagações sem propósito algum! Digo isso, meu querido dono, porque foi o que aprendi com você, a decifrar essa mente tão enovelada que vocês, humanos, adoram preservar. Ah, querido dono, parto dessa para uma melhor... as agruras da velhice já me travavam o corpo e me causavam muita dor. Mas saiba que um cachorro morto tem o seu descanso merecido, e só interrompo as minhas férias no além porque uma certeza me faz finalmente abrir o focinho para falar: Obrigado, querido dono... e não deixe de olhar para o horizonte, ele sempre se repete, e isso faz todo e qualquer problema parecer um grão de arroz frente ao tamanho do mundo. AU!

Naomi.    

De tanto imaginar...



De tanto imaginar que de fato existia,
Acabou tornando real o que falso por principio seria,
Mas então por que não acreditar no que agora via,
Se mais verdadeiro do que tudo o que tinha tocado parecia?