quarta-feira, 31 de julho de 2013

Pouco...

O pouco já me é suficiente
E quando o pouco não me entende
Sobra o que me falta


E tão somente...

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terça-feira, 30 de julho de 2013

Que o teatro...

Que o teatro nunca perca a sua inerente propensão ao inacessível. Que o teatro - diferente das mídias que pavoneiam seus contornos através da sedução da imagem – permaneça intratável ao alcance das massas. Que o teatro nunca raspe o perigo da popularidade!, funcionando como instrumento de propaganda daqueles que buscam artifícios ‘culturais’ com o único intuito de entreter grandes contingentes de rebanhos incautos. Que o teatro continue a abrigar o reduto marginal das possibilidades de comunicação – acessível somente àqueles corajosos que ousarem decifrar os seus mistérios. Que seja difícil entrar no teatro! – que o palco nunca abandone a sua habilidade em intricar todos os discursos transmitidos pelos suportes transparentes dos deglutidores de informação. Que a burrice dos meios televisivos com os seus bonecos vaidosos se enterrem nas próprias fronteiras do mau gosto e da secura de criatividade – que nenhum desses barganhadores de purpurina interfiram no terreno perigoso do teatro. Que o teatro seja e continue a ser obscuro, reduto de figuras gigantescas que não pensam duas vezes em deformar as suas aparências para sumir por detrás de túnicas gregas, vestimentas elizabetanas, máscaras de tintas fortes. Que o teatro possa sempre ser descartável e longe das discussões oficiais, porque só assim poderá pensar na manutenção das suas impossibilidades de adequação à feira consumista que nos aprisiona. Que o teatro não se misture à ideia de que tem como obrigação educar os que ocupam as suas fileiras, porque só no exílio das funções úteis é que o teatro pode se alimentar do seu maior dever: o de afiar o seu olhar para o mundo, sem poupar nada nem ninguém. Que o teatro viva, vivo por aqueles que fazem do teatro essa arte sempre artesanal, distante dos sorrisos facilitadores da vida.

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sábado, 27 de julho de 2013

Versos...

Os versos são profetas
Mal começam e dizem: 
Cuidado com o que vem de cima
Hora ou outra
Tudo desmorona
Morrendo em rima...

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Velho...

Me vejo velho
Vivo daqui a tantos anos
Já caduco pelos dias já idos
Interpretando personagens de barbas brancas
Arrastando o que agora levo ágil... 
Me vejo querendo já ser o que serei
Coisa que na alma já bem sei que sou
Curioso ser ainda jovem
Ou aparentar jovem ser
Imagino que dentro de mim o tempo flui dez vezes mais
Demorando a trazer junto o que vejo por mim
Mas e quando velho sentir-me inteiro?
O que me dirá esse que agora escreve
Brincando perverso com a certeza do fim?
O que direi não sei
Só exijo desse que espero paciência
De olhar para trás sem sofrer
E, quem sabe, dizer
Sou o que ontem já previa
Só mais um que cumpre tranquilo
O caminho de mão única
Da vida...

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Pergunto ao cão...

Vou lá fora e pergunto ao cão se ele está com frio
No silêncio de quem nada diz, responde: vá se deitar, está tudo bem.
Não me convenço, e no embalo da resposta muda invento um canto mais quente
E digo:
Se pudesse, levaria você para dormir lá dentro comigo
O cão pensa, imaginando como seria
Eu volto pra cama
Contente. 

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Frio...

Eu acordo nessa manhã suiça de fog europeu, vou até um café na esquina de casa e peço um capuccino com um pão na chapa. Ao sorver tão frugal desjejum, vislumbrando os cachecóis alheios de quem atravessa a rua adiante, penso cá comigo: o Brasil tem jeito... Mas logo caio na real - daqui a pouco volta o verão, com a beleza das baratas saltando para fora das bocas de lobo e a pernilongada chupando o sangue das peles suadas. Ah meu pai amado! Quem haverá de entender que essa Nação-de-Tangas só não vai pra frente por culpa do maldito termômetro? Pra virar primeiro mundo, só acabando com a água de coco, na onda gostosa de uma nova era glacial! Que venham os pinguins imperadores!

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Poema difícil...

Quis escrever um poema difícil só pra ver quem me leria até o fim
Mas desisti tão logo vi, pobre de mim 
Que nem no arroz e feijão há quem queira dispor mastigação.
O jeito - se é que versos pra isso existe,
É apostar no plástico, coisa que já vem pronta
E se pimenta não ponho
(Tenho vergonha)
Entrego sem picles
Essa sua rima
Em forma de sanduíche...

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Costumou-se a chamar a todos de mestre.
Mestre pra cá, mestre pra lá
O que dirá o dia em que de fato um mestre vier por seu título reivindicar?
Provável que se diga: 'vai-te, vagabundo impostor!'
Tão acostumados que estamos
A misturar tudo 
No liquidificador...

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Isso...

Se não é isso, é aquilo... 
Entre aquilo e isso
Pra quê o buliço?
Ora um, ora outro
Querendo demais algum
Que desperdício (!!!)
Sobra pouco

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sexta-feira, 26 de julho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O Fim do Fazedor de bonecos invejáveis...


Era uma vez um fazedor de bonecos inconformado com o mundo. De tão decepcionado com o comportamento dos seus semelhantes – que segundo ele era precisamente o que tornava o mundo um lugar insuportável de se viver -, ele, o fazedor de bonecos, teve uma ideia que prometia ser revolucionária: iria dar às suas novas criaturas um caráter nobre, talhando cada boneco que ficava pronto com uma qualidade de comportamento invejável aos princípios que deveriam ser por regra a matéria de convivência dos humanos, mas que há muito já não eram praticados. E foi o que fez, povoando o mundo com figuras de madeira e tecido educadíssimas, e preparadas para o convívio mútuo. Com o tempo a sociedade melhorou consideravelmente, todos imbuídos em seguir os exemplos das marionetes confeccionadas sob medida pelo fazedor de bonecos, eleito prefeito da cidade por ampla maioria de votos; porém, conforme os anos iam passando - e tal era a mistura entre humanos e bonecos -, já não era mais possível discernir quem era feito de madeira e pano, daqueles constituídos de carne e osso, e, ainda pior!, notou-se uma gradual degeneração das qualidades éticas e morais desses habitantes híbridos, o que levou o fazedor de bonecos a nutrir uma raiva descomunal por suas criaturas e por todos aqueles que, humanos ou não, haviam novamente se pervertido em nome de não-sei-o-quê. O mundo voltou à decadência que já conhecia, e ele, o fazedor de bonecos, decidiu então se dirigir ao povo e convocar uma assembléia em praça pública. Sob os olhos silenciosos da população, ele, o fazedor de bonecos, desenvolveu um discurso tão incisivo, insistindo na recuperação dos comportamentos de outrora, na urgência em se manter um padrão de civilidade e conduta social, enfim, foram tantas as palavras de ordem que ele, o fazedor de bonecos, começou a enrijecer e tropeçar nas palavras, fazendo dos gestos - antes longos e precisos -, agora engrenagens duras e enferrujadas. Ao término do discurso era ele próprio, o fazedor de bonecos, um novo e desengonçado boneco, inteiro articulado em esperanças que não existiam mais, embirrado num ideal de vida que fugia à realidade da própria vida. Foi escoltado pela multidão até o próprio galpão onde trabalhava e lá foi desmontado, servindo de lenha para alimentar as fogueiras nos parques, sendo finalmente útil... aos que não tinham teto... e passavam frio.



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segunda-feira, 22 de julho de 2013

DES-CRER...

Quando não se há mais nada para crer
Eis o mundo, insistindo em ter algo com que se haver
Já eu, que há muito em nada creio
Ou que há tempos entendi que pouco vale sofrer
Sofro também,
Mas sofro não por crenças
Senão por descrenças
Porque descrer, ainda que ao inverso
É um jeito nobre de crer
Crendo que os que creem não veem
A beleza de existir
Sem ter porquê...

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domingo, 21 de julho de 2013

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Quando sobraram argumentos para dizer, não disse
Mas quando quis, não pude
Pouco havia o que fazer
Melhor é filosofar, haver com você
Assim só se diz sem dizer
Sem precisar se aprumar
Ou ter algum porquê

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O dilema do grito...

Um dia um gritou
Outro gostou do grito e gritou também
Quando se viu era um bando a gritar
E o grito que um dia foi grito de alguém
Agora é grito de todos
Gritando para o nosso bem
Mas que grito é esse?
Afinal, se é grito de todos não é grito de ninguém
Buscou-se, então, quem gritou pela primeira vez
Para ver que grito é esse que tantos outros pelo grito disseram amém
Mas, tarde demais
Já não havia quem pelo grito dissesse:
Fui eu que gritei
E todos calaram-se, marchando mudos para casa
Diz a história que um dia um gritou
Cabe saber onde está aquele outro, o sábio
Que ao grito dos outros não se ajuntou
E resignado no seu canto pouco disse
Ou não disse nada
E se calou.

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A vida tem dessas coisas
Vive sem cansar de ser
Ou cansando ainda, acha que isso é que é o viver
Um nascer para sempre
Sem nunca morrer
Mas eis que um dia a vida cansa
A vida também é isso
Pajelança
E tudo o que é demais, já diz a vida
Não dura tanto
Ou se dura, não perdura
Jamais
A vida tem dessas coisas
É uma coisa que como coisa
Lá pelas tantas
Deixa de coisa ser
Quer treco mais maluco
Que esse
Viver?

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Se eu não nascesse onde nasci
Teria ido nascer
Não aqui, ali
Impressão tenho
Que feliz só posso
Onde não vivi...

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sexta-feira, 19 de julho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim de Albênio-Abadia, o pároco de Louvado-Seja...

Centenas de fiéis morreram depois da benção concedida por Albênio-Abadia, o pároco da pequena cidade de Louvado-Seja. Apuradas as circunstâncias, descobriu-se que a água benta borrifada à multidão continha um germe letal, bastando sua absorção pelo organismo para haver o colapso total das funções orgânicas em pouco mais de vinte e quatro horas após o contato. Recolhido à cadeia, Albênio-Abadia, pároco da pequena cidade de Louvado-Seja, declarou-se inocente, afirmando que se os fiéis haviam falecido fora em cumprimento ao desígnio divino, e não por culpa de suas mãos envenenadas. Envenenados são todos vocês que não tem Cristo no coração, bradava Albênio-Abadia durante o inquérito policial, antes ter a sorte de partir desse mundo de pecadores após uma benção – o paraíso certamente os receberá de portas abertas - do que ter uma vida longa e pecaminosa nos braços dessa sociedade enlameada pelos chifres do Demo. Houve um alvoroço geral na cidade de Louvado-Seja, afinal, ninguém ousava contrariar os preceitos sagrados da bíblia contidos na voz acalorada de Albênio-Abadia, tampouco discordavam que a vida em Louvado-Seja era governada pelo Cão, a começar pelo calor retumbante ostentado pelos rigores do sol que nunca sumia, coisa só prevista na literatura divina do velho testamento quando descrevia a morada eterna do inferno. Mas as leis existiam para serem cumpridas, alegavam os defensores da jurisdição terrena, e se o pároco de Louvado-Seja fora responsável pelo desaparecimento sumário de uma centena de almas antes de carne e osso, tinha ele, o pároco Albênio-Abadia, a responsabilidade legar de responder pelo seu ato, ainda que acidental. Nada de acidente, surpreendeu a todos com a sua inesperada declaração, eu mesmo cuidei para que a água benta fosse contaminada, de modo que sabia muito bem que os meus fiéis teriam um destino justo depois de empreendida a viagem definitiva rumo aos céus. Mas matar é crime, insistia o delegado. Crime maior é viver assim, delegado, acordar e voltar a dormir na desmoralização completa da dignidade espiritual, replicava Albênio-Abadia, satisfeito com o seu dever cumprido em nome da salvação das almas dos que se foram. Não houve mais justificativas plausíveis ou mesmo a necessidade de se recorrer ao júri público, Albênio-Abadia fora preso em flagrante mediante a confissão de crime genocida, perpetrado contra a própria paróquia onde era pároco, na pequena cidade de Louvado-Seja. Já vazia, afinal não havia mais padre nem fiéis, um bêbado ousou entrar na igrejinha onde antes Albênio-Abadia ministrava o evangelho, e lá, depois de se ajoelhar todo trôpego diante do altar, viu a imagem do Cristo crucificado de um jeito diferente. Esfregou os olhos para ter certeza daquilo que os olhos miravam, afugentando a embriaguez que lhe consumia. Mas aquilo não era delírio não! Quem estava pregado na cruz não era Cristo senão o próprio Albênio-Abadia, exatamente na mesma posição fatídica do filho de Deus. Na manhã seguinte, hora do café da manhã para os detentos, Albênio-Abadia não comeu, aliás, Albênio-Abadia não estava lá, havia sumido, deixando apenas os lençóis brancos para trás com a marca impressa do seu rosto ensanguentado. Há quem diga que Albênio-Abadia fora visto subindo aos céus embarcado num balão de hélio gigante enquanto acenava para os de baixo dizendo que um destino especial aguardava os puros de alma, mais isso ninguém pôde comprovar. O Vaticano hoje analisa o processo de beatificação de Albênio-Abadia, antes considerado criminoso, hoje potencial mártir dos merecedores da vida eterna. Louvado-Seja, amém....


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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim daquele que subiu na árvore e não queria mais descer...

Ariovaldo-das-Pelotas tinha justamente esse nome porque não havia quem o rejeitasse como seu aliado no jogo de futebol, não tanto pelo seu talento de ponta-esquerda –  talento pra lá de pífio, aliás -, senão pelo fato dele, Ariovaldo-das-Pelotas, ser o dono de uma coleção incrível de bolas de futebol, batizadas pela turma do campinho carinhosamente de ‘pelotas’. Um dia, motivo de um chute desviado, a bola foi cair pendurada no topo de um abacateiro enorme, e o próprio Ariovaldo-das-Pelotas prontificou-se a subir na árvore para apanhá-la. Subiu e não desceu mais, lá ficando o dia inteiro a contemplar o horizonte onde nada acontecia. No início seus colegas acharam que a insistência de Ariovaldo-das-Pelotas em não descer daquele enorme abacateiro era fruto de alguma piada, ou mesmo vingança – porque a bola ficou o tempo inteiro agarrada ao seu dono e impedindo o prosseguimento da partida -, mas, o tempo passou e ele, Ariovaldo-das-Pelotas, simplesmente não respondia aos debaixo que chegavam a implorar em berros: ‘Desce, Ariovaldoooo!’, mas ele, Ariovaldo-das-Pelotas, não dava bola alguma aos clamores do solo, sempre em silêncio, a contemplar o nada que acontecia no movimento previsível do sol que ia e vinha, o mesmo acontecendo com a lua que o substituía. Já bem velho, porque ele, Ariovaldo-das-Pelotas envelheceu trepado naquele mesmo abacateiro, teve que dividir a sua atenção entre o horizonte – amigo fiel que jamais o abandonava (a exemplo da fatídica bola que ainda guardava debaixo dos braços) – e uma caravana incessante de curiosos que atravessavam o país para vê-lo de perto, o homem que um dia subiu na árvore e não queria mais descer. O assédio parecia não incomodá-lo, desviando de tempos em tempos seu olhar do horizonte para os turistas, que lá embaixo se aglomeravam implorando agitados por um autógrafo ou mesmo uma foto, insistências essas que ele, Ariovaldo-das-Pelotas não cedia, apenas devolvendo sorrisos tranquilos aos fãs barulhentos . Até que, para a surpresa de todos, Ariovaldo-das-Pelotas, já bem velho e  com uma corcunda proeminente, emitiu as suas primeiras palavras depois de longo tempo em silêncio contemplativo, e ordenou que lhe trouxessem uma caneta e um calhamaço enorme de folhas pautadas para escrita, e assim, obedecido o seu pedido, começou um intenso trabalho que consistia em redigir misteriosamente algum tratado, atividade a qual dedicava-se completamente calado, sem deixar-se levar pelos apelos que tentavam coagi-lo a explicar o que tanto deitava no papel. Depois de meses de atividade intensa e já bem fraco por tanta concentração nas folhas, Ariovaldo-das-Pelotas começou a descer vagarosamente da árvore que até então havia lhe servido de lar. Quando finalmente pôs os pés no chão, morreu. Imediatamente os curiosos que lá estavam, sempre a acompanhar a curiosa epopéia literária daquele homem mudo e pendurado no abacateiro, correram para ler o que o tal sujeito esquisito tinha tanto escrito. Perceberam, então, com um desânimo bastante evidente, que a caneta usada para o feito falhara logo nas primeiras páginas, todas elas – as poucas que ainda tinham vestígios de rabiscos -, ainda assim apresentavam-se completamente incompreensíveis à leitura. Mas - curiosa descoberta! -, a capa ainda preservava o seu título, desenhado em letras claríssimas e sem vestígios de erros gramaticais, dizendo: ‘Dos perigos de nunca enlouquecer em vida’... Foi ovacionado como filósofo e até hoje é estudado nas cátedras das mais diversas academias do mundo...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do ator que não fingia o que não era, sendo o que mentia ser, ou, melhor dizendo, tomando a mentira por verdade...

O ator que acreditava ser verdade o que fazia teve uma vida longa e trágica, ou cômica, vai saber. Isso porque o ator não fingia, só vivendo, ou crendo viver na plena verdade das suas forças emotivas, as personagens que interpretava.  Quando o repertório de suas atuações não fugia do universo infanto-juvenil ainda conseguia ter uma rotina saudável, embora não fossem raras as ocasiões em que ele, o ator que não fingia o que não era, sendo o que mentia ser, ou melhor, tomando a mentira por verdade, acabava flagrado uivando no meio da rua depois de ‘bufar e bufar até derrubar toda a sua casinha de sapé’, ameaça direcionada ao porquinho Alfredo lá do conto de fadas... O problema mesmo veio com os roteiros sérios e densos, em especial as tragédias – e foi logo na primeira que acabou por furar os olhos de fato, o que o transformou dali por diante num ator cego a interpretar papéis cegos. Depois de anos de profissão, e porque não dizer de sofrimento absoluto, resolveu se aposentar. Já velho e no último ato da sua conturbada vida, perguntado por um jornalista qual o personagem que mais gostara de interpretar, ele, o ator que não fingia o que não era, sendo o que mentia ser, ou, melhor dizendo, tomando a mentira por verdade, tomou um susto e disse: ‘nunca houve outro personagem senão eu...’ E a luz se apagou, colocando fim ao espetáculo. Uma enxurrada de aplausos veio na sequência, louvando aquela soberba performance, mas, não importando o quanto o público insistisse, ele, o ator que não fingia o que não era, sendo o que mentia ser, ou, melhor dizendo,  tomando a mentira por verdade, não levantava por nada do palco onde jazia inerte. Estava morto de fato. O teatro decretou uma semana de luto em sua homenagem, mas, depois disso, as portas reabriram e os espetáculos tiveram continuidade...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do Arqueólogo-de-Fósseis-Humanos...

Foi como uma iluminação. Ao desentocar o último ossinho daquele que mais tarde seria consagrado como o mais antigo esqueleto humano encontrado na face da terra – e exposto como relíquia valiosíssima no museu mais importante da história natural – ele, o Arqueólogo-de-Fósseis-Humanos, justamente o descobridor não só desse, mas de tantos outros tesouros enterrados, percebeu que a maneira mais certa para se entrar na história não era vivendo a própria história senão enterrando-se num local apropriado para que, com sorte, séculos adiante, milênios talvez, algum arqueólogo como ele viesse a encontrá-lo nos seus restos ancestrais. De um dia para o outro sumiu, ninguém mais o viu. Como o tempo é vagaroso no seu escoar, parece que será uma longa espera até saber se ele, o Arqueólogo-de-Fósseis-Humanos, terá finalmente o seu triunfo reconhecido, ou se o seu sumiço não lhe trará nada senão o que todo desaparecimento tem como princípio trazer: a fama do anonimato eterno...

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quarta-feira, 10 de julho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do condenado que quase morreu enforcado...

Pediram ao condenado que dissesse alguma coisa antes de ser enforcado. Sou culpado, ele disse, e culpado por todos os crimes que me acusam, e ainda mais culpado por um número de não sei quantos outros crimes, todos hediondos e escabrosos... foi o que ele disse, o condenado prestes a ser enforcado, e foi tão convincente no seu relato altruísta que acabou por paralisar todos aqueles que estavam na praça pública pedindo o seu pescoço, pausa que foi prontamente substituída por uma salva de palmas estrondosa, fazendo com que ele, o condenado prestes a ser enforcado, não só fosse absolvido como também eleito nas eleições seguintes, e por ampla maioria,  para o cargo de prefeito da cidade dos Mata-Burros, tendo como sua primeira medida depois de tomada a posse a perseguição e morte de todos os cidadãos mata-burrenses que se declarassem honestos e inocentes pelos delitos aos quais eram acusados, ainda que crime nenhum houvessem cometido, de modo que só sobraram em Mata-Burros os que se sabiam culpados pelos mais diversos crimes, existentes e não existentes, culminando essa curiosa história do condenado prestes a ser enforcado e levado à prefeitura pelos braços do povo na morte por velhice desse que ousou admitir que nunca fora nada inocente na vida, e, com seu exemplo, dissera claramente que, uma vez vivos, todos somos condenados e criminosos consagrados. Na ocasião da sua morte, ele, o condenado que um dia esteve prestes a ser enforcado, finalmente conseguiu provar a sua inocência, sentença que promotor nenhum conseguiu reverter, já que um defunto, por pior assassino que tenha sido em vida, quando entrega nas mãos dos vermes o seu destino eterno é com se virasse santo entronado ao lado do Todo Poderoso. Hoje a sua tumba, a do condenado que outrora estivera prestes a ser enforcado, é visitada por legiões de fiéis que buscam a benção nesse que foi um exemplo inconteste de ser humano de coração puro.

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O Fim do Carlos-da-Claque...

Carlos-da-Claque fazia o povo rir, ou, antes, fazia do que não tinha graça nenhuma motivo das mais desbaratadas risadas, ele próprio forçando-se rir do que naturalmente não deveria. Um dia, indo para o trabalho, viu um acidente de carro terrível, levando a óbito o motorista que por descuido tomara a contramão da via. Ele, Carlos-da-Claque, morreu de rir do acontecido, o que o fez ser detido pela polícia por incitação à violência, já que todos os transeuntes, consternados pela fatalidade, queriam linchar aquele que zombava da dor alheia. Na delegacia, Carlos-da-Claque não conseguia se conter, rindo de tudo o que seria motivo de lágrimas, fato que levou o delegado a lhe negar qualquer fiança, trancafiando ele, Carlos-da-Claque até que resolvesse pedir desculpas pela sua atitude desrespeitosa para com a instituição pública que tinha como obrigação zelar pela ordem e bom comportamento. Carlos-da-Claque, tão logo pisou nos domínios mofados da cela de prisão, ao contrário de se lamentar, aumentou a gargalhada que já trazia desde a rua. O tempo passou e ele lá, rindo sem parar, até o dia em que parou de rir para morrer. Quando o retiraram da cadeia, já há algum tempo defunto silencioso, Carlos-da-Claque estampava um belo de um sorriso no rosto, talvez alertando aos que aqui ficavam de que a morte não é lá essa coisa terrível pela qual tomamos em vida. No seu enterro, não houve um que derramasse lágrima, talvez uma homenagem ao passado do morto, ou não, dependendo do ponto de vista...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do casarão antigo que agonizava, ou, antes, o fim de quem por ele chorava em agonia...


Um casarão antigo jazia abandonado na esquina da Alameda Santos com outra rua cujo nome já não importa, importando somente saber que o tal casarão antigo morria,  e ia morrendo exatamente como um pedaço de corpo gangrenando no meio de tanto progresso e cores vivas dos edifícios vizinhos. O Executivo-das-Pernas-Ágeis, um que sempre passava por aquela esquina há anos corridos, um dia ouviu claramente um pedido de socorro, e era o tal casarão antigo quem falava, pedindo ajuda, sofrendo por morrer de forma tão cruel, e justo ele que testemunhara o crescimento da metrópole que agora o descartava sem qualquer sentimento de piedade ou de justiça. O Executivo-das-Pernas-Ágeis argumentou que estava com pressa e, driblando-se das lágrimas daquele que outrora deveria ter sido um monumento imponente das gerações já idas, seguiu o ritmo ágil das suas passadas. Uma vez longe do alcance das vistas do casarão antigo, o Executivo-das-Pernas-Ágeis desejou secretamente que ele, o casarão antigo, tivesse, como ele, pernas para poder fugir, e fugindo como ele sempre fugia com suas ágeis pernas de executivo dos negócios urgentes, conseguisse escapar das garras do vilão que por ventura viesse a lhe incomodar. Mas não houve tempo de completar tal conjectura fantasiosa – afinal, casarões antigos, até onde se sabe, não tem pernas, muito menos pernas ágeis -, porque um carro que ousou desrespeitar o sinal vermelho trombou em cheio com o Executivo-de-Pernas-Ágeis, levando-o rapidamente para onde ninguém até hoje ousou voltar para dizer se é um bom lugar ou não. Morreu. E muitos outros morreram, os de pernas ágeis, enquanto ele, o casarão antigo, continua ainda hoje a agonizar, pedindo socorro para quem quer que seja, desde que tenha pernas para poder fugir.

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim de Eliseu-da-Espátula...

Eliseu-da-Espátula era poeta e pedreiro, mas como poeta ninguém o ouvia, preferindo todos requisitá-lo para outros serviços mais prosaicos que os da rima. Sempre quis ele, Eliseu-da-Espátula, que lhe chamassem de Eliseu-da-Pena, mas nessa vida é mais fácil ser pedreiro que ser poeta, afinal, uma parede bem erigida é sempre uma parede bem erigida, já não podendo se dizer o mesmo de uma estrofe bonita, ou mesmo do verso que para nada serve a não ser nascer verso e morrer verso. Um dia, Eliseu-da-Espátula – prefixo que lhe conferiu fama em função da sua habilidade com o cimento de obra -, cansou de declamar suas poesias, tanto que as soltava no ar para que ninguém as ouvisse, e, imbuído de um impulso esquisito, aproveitou a vitrine que ele próprio estava construindo para a inauguração próxima do mais novo complexo de compras da cidade, e lá enfurnou-se para nunca mais sair. Mesmo depois do prédio ser inaugurado era possível ver ele, Eliseu-da-Espátula, dentro daquele box impenetrável de vidro, abrindo e fechando a boca num esquisito movimento de quem declama algum tipo de soneto consagrado. E se transformou numa atração. Embora ninguém o ouvisse – a vitrine era completamente hermética e refratária ao som que vinha de fora ou ao que acontecia dentro dos seus domínios cubiculares -, Eliseu-da-Espátula insistia na sua bizarra performance muda, todo emocionado por ser visto, mas nunca ouvido. Muitos ao shopping iam só para vê-lo lá, todo maluco, a recitar não sei o quê, muitas vezes com lágrimas a brotar dos olhos, e uma vez espectadores de tão inusitada atração, aproveitavam para no shopping entrar e fazer algumas compras. Pois chegou o dia em que Eliseu-das-Espátulas perdeu as forças e fora visto morto, desmaiado para sempre dentro do seu caixão acústico de vidro. Junto com ele encontrou-se um pequeno gravador, e mais não sei quantas fitas cassetes pelos cantos. Eliseu-das-Espátulas cuidara de gravar tudo o que dizia, sabendo que algum dia alguém, querendo, o ouviria. E, de fato, alguém ouviu, e bastou esse alguém ouvir o que Eliseu-das-Espátulas dizia para consagrá-lo como um dos indiscutíveis melhores poetas que a nossa geração já viu passar. De uma forma ou de outra, Eliseu-das-Espátulas sabia que só sendo defunto para ser considerado nessa vida. Sua obra inteira, transcrita das fitas de áudio, somou cinco volumes de lombadas grossas cuja capa trazia o nome dele, do autor, sob as letras que formavam seu antigo desejo: Poemas Completos de Eliseu-da-Pena.

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim daquele que a cada dia via a sua casa desmontar, enquanto ele próprio desmontava...

No início uma porca saltou do mecanismo que fazia jorrar a água da pia da cozinha. Engavetou o pequeno apetrecho de metal e continuou a lavar a louça, sem prejuízo algum para o fluxo que limpava o molho de macarrão do prato sujo. Quando foi sair para o trabalho, a maçaneta da porta saiu-lhe à mão, e, como tal fato já havia acontecido outras vezes, não deu grande importância ao incidente, acionando a porta através de um encaixe precário da peça de metal em forma de alavanca. Saiu. Ao retornar para casa, a mesma alavanca lhe cumprimentou dando-lhe boas vindas ao se estatelar toda barulhenta ao chão de taco de madeira envernizada. Irritou-se, mas foi só isso. Foi escovar os dentes e percebeu que o espelho havia rachado em duas partes - como aquilo foi acontecer era matéria misteriosa, mas não tão urgente a ponto de se fazer investigações sumárias, tampouco enveredando para consertos imediatos. O espelho ficou rachado mesmo, a maçaneta despregada da porta, e a porca desatarraxada. Para economizarmos linhas e salivas, basta dizer que a casa inteira andava desmontando enquanto a vida continuava a ser vivida, ou quase, porque ele, sem saber, desmontava aos poucos também. Primeiro a hérnia da coluna, depois o nível de açúcar no sangue subiu, sem contar as noites de insônia.  Um dia, eis que aparece um anúncio no jornal colocando à venda o malfadado lar. O que teria acontecido ao proprietário para tomar tão radical decisão? A essa pergunta ficaremos órfãos de resposta, uma vez que ele também estava ali com seu nome estampado no jornal, só que páginas adiante, na sessão de obituários...

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sexta-feira, 5 de julho de 2013

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A cada palavra cuspida
Um movimento a mais para lugar nenhum
Por isso que prefiro a palavra escrita
Ainda que seja triste
Por nunca ser ouvida -
Fôlego para cruzar continentes também não tem -,
Ao menos fica
Vagando nas ondas do mar
A quem a queira, um dia
E Quem sabe
Resgatar...

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O artista deveria ser um continente distante
De latitudes desconhecidas
Não se deveria querer dele, do artista
Mais do que o reflexo de sombras vagas
Não deveria caber a ele, ao artista
O papel de reformador
Ou o de guia para imagens claras
O artista é escuro, e deveria permanecer assim:
Distante
E nessa fissura
Abrir-se
Mas só por um tempo
Por um breve e imperceptível
Instante...
E depois voltar a sumir.
Não é matéria do artista o dever de existir
Ele existe e pronto
Assim, nesse simplório e suficiente
Devir...
O artista deveria continuar assim, ou voltar a ser
Desimportante

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quinta-feira, 4 de julho de 2013

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A dor não é encontrar o que pensar
A dor vem de saber que penso
Porque seria mais justo se coubesse a nós essa questão:
A de querer pensar
Ou não...

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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Nada...

Nada a fazer
Por que não fazemos somente isso:
Nada?
De que valem as idas e vindas
Os suores por árduos trabalhos
Os discursos de páginas longas
As vozes sempre prontas a gastarem-se em verbos já ditos, e revirados de tanto repetidos?
O que importa sentir-se útil para algo
Se para conosco prazer maior não há quando sabemo-nos imprestáveis?
Que imbecilidade é acumular reputações, proezas ou grandezas
Que estupidez é ostentar e usufruir de riquezas
Quando maior deleite que o vazio, o anonimato, a certeza de que não se vale absolutamente nada, nos preenche de sentido para a vida!
Por isso que não prestamos
Porque desejamos para algo prestar
E já eu aqui me culpo
Por a essas letras esforço enorme desperdiçar...
Ainda que um verso, uma imagem ou um acorde, nada queira senão isso:
Existir
Sempre estaremos nós aqui
A desejar que a arte - terreno para lá de descartável
Conforte-nos com um dever
Ainda que por dever não tenha
Senão isso:
Convencer-nos de que nada devemos.

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Se a cada dia nosso
Uma linha escrita dedicássemos à posteridade
O que sobraria ao término de livro tão extenso
Senão um volume imenso
De
Palavras, palavras, palavras...?

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Às vezes a melhor leitura é aquela que não se lê
É passar os olhos
E nada reter...
Aconteceu agora comigo:
Li, e li muito
Para ao término dizer:
Nada li
Foram desenhos de letras
Que vi...
Quem poderá censurar-me dizendo:
Tivesse lido de verdade
Agora seria outro, melhor que esse que não lendo, se diz:
Duvido! Afinal,
O que importa ler
Quando imagens inteiras brotam dos blocos de parágrafos
Frases viram trilhas de contornos gráficos
E as letras oásis de curvas sinuosas?
A mim basta a periferia do discurso
Quem nele quiser se aprofundar
Que vá
Porque de mim só digo isso:
Sobrevoar já é viajar...

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Um casarão antigo...

Passei por um casarão antigo, todo em ruínas.
Ilhado no meio das cores vítreas do progresso, lá estava ele
O casarão antigo...
Se ele tivesse pernas, o casarão antigo, 
A ele teria dito:
Fuja! Fuja enquanto é tempo!
Mas tão logo isso disse -
Ou teria dito, se ele, o casarão antigo, pernas tivesse -,
Pensei comigo:
Que bobagem!
Eu que pernas tenho, fugir não posso
Ou não consigo!...
Invejei ele, o casarão antigo
Que resistia mudo aos novos ventos, todo inerte...
E lá jazia ele, o casarão antigo, já longe dos meus passos
Silencioso como um navio encalhado
Há séculos abandonado, por inteiro enferrujado
Ainda assim, ele, o casarão antigo e em ruínas
Mais digno me parecia
Que toda uma frota de fugitivos ágeis...

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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Zona livre...

Uns vão
Outros ficam
Quem disse que a vida não é senão isso:
Um desvão
Onde se trambica?

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Eu com meu rinoceronte...

Que vontade que me deu de remar para longe, 
Numa canoa de largura pouca
Subo nela, enfim
Sozinho só de outros de mim
Junto que ia com um rinoceronte-náufrago
Resgatado depois de uma maré cheia
Que os pássaros ao céu anunciaram numa véspera de ventania...
Puxei-o para dentro da canoa
E lá eu ia
Remando com meu rinoceronte amigo
Para onde destino não tenho
Só remando
Para longe
E sem outros de mim
Só assim, enfim
Eu e ele
O rinoceronte-náufrago
Para onde, um lugar
Talvez...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim daquele que a cada dia via a sua casa desmontar, enquanto ele próprio desmontava...


No início uma porca saltou do mecanismo que fazia jorrar a água da pia da cozinha. Engavetou o pequeno apetrecho de metal e continuou a lavar a louça sem prejuízo algum para o fluxo que limpava o molho de macarrão do prato sujo. Quando foi sair para o trabalho a maçaneta da porta saiu-lhe à mão, e, como tal fato já havia acontecido outras vezes, não deu grande importância ao incidente, acionando a porta através de um encaixe precário da peça de metal em forma de alavanca. Saiu. Ao retornar para casa, a mesma alavanca lhe cumprimentou, dando-lhe boas vindas ao se estatelar toda barulhenta ao chão de taco de madeira envernizada. Irritou-se, mas foi só isso. Foi escovar os dentes e percebeu que o espelho havia rachado em duas partes, como aquilo foi acontecer era matéria misteriosa, mas não tão urgente a ponto de se fazer investigações sumárias, tampouco enveredando para consertos imediatos. O espelho ficou rachado mesmo, a maçaneta despregada da porta, e a porca desatarraxada. Para economizarmos linhas e salivas, basta dizer que a casa inteira andava desmontando enquanto a vida continuava a ser vivida, ou quase, porque ele, sem saber, desmontava aos poucos também. Primeiro a érnia da coluna, depois o nível de açúcar no sangue subiu, sem contar as noites de insônia.  Um dia, eis que aparece um anúncio no jornal colocando à venda o malfadado lar. O que teria acontecido ao proprietário para tomar tão radical decisão? A essa pergunta ficaremos órfãos de resposta, uma vez que ele também estava ali com seu nome estampado no jornal, só que páginas adiante, na sessão de obituários...

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