domingo, 30 de junho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim de ‘A’ que brigou com ‘C’ exigindo que ‘B’ ficasse no meio para intermediar a contenda que nunca acabou, acabando antes com quem dela tomava parte...

A brigou com C - briga cujas razões há muito o tempo deu de apagar por completo -, exigindo que B, naturalmente um intermediário em questões relacionadas a A e C, ocupasse a posição de juiz da disputa, mas, antes que a tal rixa fosse colocada à prova, a notícia de seu acontecimento levou todo o alfabeto a se separar em duas turmas, uma fiel a A, a outra fiel a C, movimentação que também chamou a atenção dos números, todos eles imbuídos em tomar partido por um ou outro lado, de forma que o anúncio da briga iminente virou notícia de tal magnitude que também as cores não conseguiram manter-se ausentes de uma posição política em relação aos adversários, levando as cores escuras e densas a apoiar as razões de A, enquanto as tonalidades claras e celestes compraram prontamente os motivos de C, sempre com B a tentar manter a tensão equilibrada para ambos os extremos, coisa já bastante instável, uma vez que as expectativas de triunfo cresciam nas duas direções a ponto de a qualquer momento haver uma ruptura na calmaria para, enfim, eclodir em ação. Dito e feito. A guerra começou, primeiramente envolvendo somente as letras, cores e números, mas, com o decorrer das agressões, tudo - desde o que tinha forma e contornos, bem como conceitos e significações múltiplas e abstratas -, tudo que tivesse algum sentido de existência nesse mundo foi obrigado a se armar segundo os princípios de A ou os de C, que já não mais podiam ser identificados no meio de tantas bombas e farpas trocadas por seus aliados. O tempo passou e sabe-se que a guerra ainda continua, com mortos e feridos a multiplicarem-se a cada dia, e, após anos de derramamento de sangue, fomos encontrar A e C ainda vivos, a conviverem harmoniosamente já havia décadas desde o início de toda a confusão, ambos já bastante idosos e companheiros do mesmo asilo, local de onde agora chega-nos a triste notícia: acabam de falecer, um ao lado do outro, de braços atados numa clara mensagem de amizade eterna. Lá fora, enquanto isso, a guerra soma novos personagens, todos lutando por suas vidas, ainda que os motivos do início de tudo, bem como os que deram sua origem, há muito foram apagados ou esquecidos simplesmente pela ação da passagem do tempo.

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do suicida que nunca se suicidava...

Ele parou em cima da ponte, olhando o tráfego que lá embaixo corria ligeiro. De repente resolveu estacionar a sua vida, que há muito já estacionara numa rotina tediosa de acordar e voltar a dormir, e novamente acordar e voltar a dormir, nada fazendo senão isso: acordar e dormir, sempre com a justa consciência de que nada demais aconteceria se ele parasse com esse movimento pendular e inútil: acordar e voltar a dormir. Não acordaria mais, decidiu, não acordaria mais e também não dormiria mais... já que era indiferente para a vida que ele continuasse vivo, seria ele agora a assisti-la passar, ao invés de persistir nessa função de náufrago arrebatado pela correnteza dos dias, afundando sob as ondas das horas, minutos e segundos. Parou em cima da ponte e só isso fazia: olhava para o tráfego que lá embaixo nunca deixava de correr ligeiro. A quem o perguntasse o que lá fazia, respondia simplesmente que sua hora havia chegado, que a vida não lhe tinha mais sentido algum. Por algum tempo uma multidão se adensou debaixo do viaduto somente à espera de um salto seu para a morte, coisa que não ocorreu. Até emissoras de televisão e agentes sociais o interpelaram para que desistisse dessa empreitada maluca de acabar com aquilo que Deus havia lhe presenteado, o que ele devolvia dizendo que presente como aquele ele recusava sem cerimônias ou regateios mentirosos, preferindo afirmar sem medo: a vida é um tremendo equívoco, basta olhar lá para baixo para entender que ninguém dela faz questão, indo e voltando de lugar algum para lugar nenhum unicamente para satisfazer as idiossincrasias do hábito. O tempo passou e desistiram dele, do suicida que nunca se suicidava – apelido que lhe deram -, e ele insistia em lá ficar, só assistindo a vida passar depois de ele ter tanto passado por ela, incólume. Quem passasse de carro ou a pé perto da ponte podia avistar ele, como uma estátua, olhando para o mesmo ponto, só desviando sua atenção quando o tiravam da sua concentração filosófica, mas que prontamente retomava depois do inquérito forçado. Num determinado dia, desapareceu. Sumiu. Pensaram que ele tinha se jogado, mas corpo nenhum foi encontrado. Pesquisaram para saber para onde teria ido, mas não houve quem desse uma resposta que sugerisse alguma pista. Ele havia sumido do mapa simplesmente. Ou a vida o tinha finalmente levado, ou ele levou-se dali escondido para nunca mais ser encontrado. Nem quando seu retrato foi colocado no jornal a título de recompensa por alguma informação de seu paradeiro o mistério pôde ser solucionado. A cidade voltou a sua rotina, e a vida continuou com o seu vai e vem.

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quinta-feira, 27 de junho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES #O fim daquele que não vivia, só lia...



Ele lia. Tudo para ele era motivo de se folhear, dos clássicos até o que era reconhecidamente porcaria, para ele, era assunto para estacionar os passos e botar os olhos para trabalhar. Lia tanto que deixou de viver, ou, se vivia, só as olheiras é que sabiam, tanto de roxas que ficavam na medida em que funcionavam. E assim foi, ficando escuro pelas beiradas, emudecendo para as demandas diárias, só vivendo para não viver, senão para ler. Outro dia, disse a mim todo contente: ‘Está tudo aqui! O segredo de todas as coisas está escrito bem aqui!’, e chacoalhava um enciclopédia antiga, de páginas já amareladas. O tempo passou e ele lá, acumulando não só leituras como também livros, dos pesados aos mais leves, os livros é que se multiplicavam, cada um deles abarrotando os poucos vãos livres da sua já lotada estante. Pois ocorreu que, numa ocasião, foi trepar-se num banquinho para apanhar não sei qual leitura que equilibrava-se lá no último andar da tal estante. No movimento de apanhar o livro, desequilibrou-se, e, caindo ao chão, caíram por cima dele todos os livros do mundo, dos russos aos espanhóis, dos nacionais aos de idioma mais esquisitos, os livros sobre ele caíram sem parar. Já completamente morto, fruto provavelmente do golpe fatal de uma lombada de Dostoiévski, um último volume foi abrir-se em sua última página e exatamente por cima do monte onde seu corpo jazia. Era Machado de Assis na voz de seu Brás Cubas, que assim dizia: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da minha miséria’.  Foi seu epitáfio.

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# Café com formiga...

No meu café havia uma formiga.
Tomei meu café.
Se engoli a tal da formiga que havia no meu café,
Cá estou eu:
Alimentado por um café tomado e por uma formiga digerida
Ou, se não a engoli junto com meu café
Continuo aqui
Alimentado por um café, e sem saber qual é o gosto de uma formiga.

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O mundo e eu...

Tem gente tão certa sobre o que acontece com o mundo, elaborando teorias a respeito de como torná-lo melhor...
E eu aqui, sem saber o que acontece comigo, sem uma pista ao menos de como proceder com o que vejo de mim...
Penso, às vezes, que é tarefa de uma vida olhar-se no espelho e ser capaz de dizer: esse sou eu
Ou então é coisa menor saber quem se é
Antes querendo dos outros o que não se conseguiu achar dentro de si...

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# Filosofias...

São muitas as filosofias
E a melhor delas assim dizia:
Chega de filosofias!

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De qual jeito movimento-me?

Se subíssemos pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! -, seríamos mais magros. Decidido a engordar – porque já sou demasiado magro de compleições, resolvi prontamente abandonar as subidas pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! – mas, convencido de que não tenho talento ou genética alguma para engordar – haja vista que já faz mais de um ano que abandonei as escadas – as de degraus – não as rolantes! – e nada de adicionar uma única grama a minha esquelética compostura, decidi voltar a subir pelas escadas – as de degraus, uma vez que as rolante fizeram-me estufar demasiadamente - senão nas ancas, nos poros entupidos da preguiça, e, sabendo que seríamos mais magros se subíssemos pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! – agora posso atestar por experiência própria, que seríamos também, menos eu que magro já sou, além de mais magros, menos preguiçosos. Hoje procuro um meio de transporte que, além de fazer engordar, possa prevenir-me da apatia do tédio.

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INDO...


Imagino que caminho
Mas não pelo meio
Pelas bordas é por onde ando
De caminho certeiro não sou feito
Pelo meio vão os que miram horizontes
Estufando o peito com sabedorias abstratas
Eu apenas enxergo o que meus olhos veem
Um par de sentinelas de alcance curto
E se me colocam em movimento, é pra coisa breve
Incapaz de durar por longa jornada
Vejo e pronto
Mais nada...

Caminho, imagino
E sem bandeiras para destino nenhum, ando
E vou indo
Passo adiante
Um por um
Se aparece uma pedra à minha frente
Eu chuto, e vou seguindo
É disso de que sou feito
Ou do que faço minha matéria
Matéria essa que é o meu vagar -
Um tronco de árvore seca
A lama úmida da chuva da véspera
Um cão vira-lata que me força uma parada
Se ele aparece, o cão
Paro meu mundo na hora
E afagando suas orelhas, interrompo meus passos
Sem custo por demora...
É disso que faço meu andar
Obstáculos estreitos que aparecem sem explicar...
É nesse caminho que meu passos andam
Imagino...

Não vou pelo meio, como os outros fazem
Indo juntos, confiantes
Marchando em uníssono
Por passos loquazes...
De bolso vazio, eu vou indo
Ou cheio só um pouco
O bolso
De burburinho...

Assim faço meu caminho
Caminho sem gente
Só eu junto
E todo sozinho...

Sou desses de esquinas dobradas
Avançando não sei como
Mas indo, imagino
Passo a passo
Como quem não quer nada...

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GUARDA-CHUVA...

Basta não ter um guarda-chuva para ter motivos para usá-lo
E quando se tem um
Quer motivo maior para deixá-lo em casa
Sob o risco de molhá-lo?

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O MENOS INTERESSANTE...

Me interesso pelo menos interessante
Me desinteresso quando todos se interessam
Interesse por interesse
Ora essa
O que me cansa, aos outros chama
Porque o que os interessa
A mim pouco importa
Não inflama...
O que a mim interessa não é coisa que pelo fim devido
Se meça 
Como a folha que da árvore cai sem motivo aparente
Sou também assim
Do aleatório ao irrisório
Fiel assistente...
Os outros não!
Querem porquês
Motivos
Assuntos de importância devida
Ô gente bendita!
Como se a própria vida fosse terreno de justiça
Justiça é não ter com que se haver
Vagando assim
Sem destino
Sem porquê
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terça-feira, 25 de junho de 2013

LIVROS


São tantos os livros a se empilhar nas minhas vontades
Que de tantos em tantos
Esvaem-se
Nas razões que um dia encontrei para devorá-los...
Um dia, certo está
Não lerei mais nada
Enquanto eles
Os livros
Continuarão amontoando-se
Nas prateleiras da minha estante amada...

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domingo, 23 de junho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim da junta de revolucionários por uma causa justa...

A junta de revolucionários juntou-se a fim de lutar por uma causa justa, e não havia quem duvidasse de que justa era de fato a causa pela qual se juntavam, haja vista que todos eram, sabedores disso ou não, reféns de um mundo pra lá de injusto e que merecia senão uma, duas ou mais revoluções para, enfim, ou talvez, enveredá-lo definitivamente nas alamedas luminosas da justiça. Foi assim que, por um acumulo de insatisfações, descobriu-se uma causa justa, o que acabou por dar origem, a partir da sua defesa, do que hoje se sabe ser, ou do que se sabe que foi, a junta de revolucionários jovens e politizados por uma causa justa. Mas, infelizmente e a despeito dos nobres esforços e suores muitos, compete-nos decretar agora que um triste fim teve a tal junta! E explicamos. Uma vez junta, e dizendo ao mundo: ‘venha você também se juntar a nós!’, a junta acabou por atrair das gentes que nunca tinham se juntado para coisa nenhuma esse desejo de se juntar finalmente para, juntos, extravasar um conhecido e incontido anseio revolucionário de modificar o mundo – ainda que grande parte dos que quisessem revolucioná-lo muitas vezes não tinham sequer a habilidade para mudar o sofá de lugar na sala de estar das suas casas -, tudo isso pelo que competia à defesa da tal da causa justa. Tal fato não ocorreu, evidência mais do que evidente, e isso porque ainda que a junta de revolucionários jovens e politizados por uma causa justa insistisse na defesa dessa tal justa causa, ou melhor, causa justa, a empolgação dos que se juntavam cresceu a tal proporção que não demorou muito para a multidão descobrir, ou inventar, uma infinidade de outras causas, justas ou não, que rapidamente viraram bandeira de festa no meio dessa experiência maravilhosa que foi conceder aos manifestantes a certeza de entenderem-se como aliados de coisa alguma, ou, talvez, de um monte de coisas, todas juntas e no mesmo grito, ou em gritos diferentes, mas sempre com essa certeza inquebrantável de que agora nós acordamos para revolucionar o mundo que antes dormia corrupto em berço esplendido. Mas ocorreu que, como dissemos, a coisa virou um ajuntamento de tal tamanho que a causa justa enjeitou-se por completo, abrindo margem para um tal montante de causas – vai saber se eram justas ou não - que o que era comprovado como justo naufragou na injustiça de tanta gente haver se juntado para compor o que justo outrora era nas mãos da pequena junta original. E - vejam só que curioso! – a junta de revolucionários de jovens idealistas e politizados por uma causa justa, justo ela que despertou o contingente de acomodados da apatia mórbida, morreu, toda ela afogada, sumindo por completo no meio dessa turba de malucos revolucionários, todos agora de paus e pedras nas mãos, imbuídos dessa importante tarefa cívica que é melhorar o que quer que seja, na marra e no sangue...

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O MUNDO NÃO É LUGAR ALGUM, SENÃO UM...

Não é preciso atravessar o mundo para saber do mundo
Um continente já serve
Aliás, o mundo tem fundo
E é raso
Da fundura de uma folha
Dessas que se escreve.

Não é preciso ir às ruas para ver o que se passa
Habite a sua própria casa
Que será como gritar
Ao lado da massa.

O mundo não é nada que se desconheça
Só não o vê quem de si foge
Aliás, hoje mesmo fui ao espelho
Me vi, e disse
Que mundo é esse ao avesso
Com o qual me pareço?

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O Fim de Zacharias-das-Ambrosias...

Zacharias-das-Ambrosias tinha duas paixões na sua vida: a ambrosia, essa frutinha azedinha de textura um tanto quanto áspera e que uma vez degustada vai surpreender o seu paladar, e as frases de efeito - sentenças coloridas e de impacto imediato cujo objetivo variava entre dar esperança aos ignorantes e fazer crer que o mundo, do jeito que está, um dia há de ser um lugar melhor, tanto para os ignorantes quanto para os inteligentes. Pois quando não estava chupando uma ambrosia, Zacharias-das-Ambrosias dedicava-se ao seu outro talento, o de produzir e divulgar frases de efeito - sentenças coloridas e de impacto imediato, tais como: ‘não desista nunca, amigo! Levanta daí, sacode a poeira e dê a volta por cima!’. E assim passou a sua curta existência: chupando ambrosia e, quando não tinha ambrosia para chupar, Zacharias-das-Ambrosias virava o profeta das frases de efeito, soltando para todos os cantos essas sentenças coloridas e de impacto imediato que tinham por fim exorcizar a angústia e despertar a alegria. Cabe dizer, no entanto, que Zacharias-das-Ambrosias, um dia, foi perdendo a cor, literalmente desbotando a olhos vistos - evidência primeira quem deu foram as suas bochechas, rosadas e luzidias ontem, hoje, como num passe de mágica, descoloridas por completo nas tristes cadências de um preto e branco opaco e sem graça. E assim, conforme o tempo passava e como efeito colateral da sua descolorização gradativa – porque depois das bochechas todo o resto do seu corpo resolveu seguir a melodia dos tons básicos, ele, o Zacharias-das-Ambrosias, foi substituindo as ambrosias – essa frutinha azedinha de textura um tanto quanto áspera e que uma vez degustada vai surpreender o seu paladar – pela uva-passa, essa coisinha insossa e murcha que quando mastigada gruda nos dentes e de gosto semelhante ao da borracha de pneu de bicicleta. E na medida em que Zacharias-das-Ambrosias ia ficando preto e branco, ele próprio – vejam que curioso! -, se transformava numa personagem de filme mudo, todo caricato nas formas, e sem poder abrir a boca para dizer sequer um bom dia, quiçá divulgar as suas tradicionais frases coloridas e de efeito imediato. E o pior, nos intervalos das gravações - porque a vida de Zacharias-das-Ambrosias de fato havia virado uma fita de vaudeville cômico com direito a tortas de chantilly voando e cenas de pancadaria aleatória, ele, o Zacharias-das-Ambrosias, já não podia chupar ambrosia alguma, antes tendo de se satisfazer com o gosto de borracha de pneu de bicicleta que a gente da produção do seu filme vinha lhe oferecer em seu camarim na forma de uvas-passas, frutinhas pra lá de insossas e pegajosas. Coisa curiosa foi acontecendo com Zacharias-das-Ambrosias! Ao mesmo tempo em que a vida ia ficando mais e mais engraçada, afinal, basta ver Charlie Chaplin em ação para se ter uma ideia do enredo ao qual ele, Zacharias-das-Ambrosias, foi se meter..., a sua própria existência, antes colorida, divertida e otimista, foi diminuindo ao ponto de virar refém dessa trama rocambolesca onde ele, apenas, era tão somente mais um bufão a serviço de uma comédia bem maior. E o sintoma é exatamente esse: Zacharias-das-Ambrosias, além de desbotar por inteiro, foi ficando menor, cada vez mais minúsculo, até, por fim, desaparecer por completo ao ponto de não sabermos se ele, de fato, estrelou o tal filme que vimos ou não. Procurando nos créditos da fita, são vários os atores conhecidos que tiveram seus nomes escritos na tela, mas o dele, o do Zacharias-das-Ambrosias, ficou de fora, fato explicado por possíveis duas razões: ou ele, Zacharias-das-Ambrosias, nunca existiu, sendo outro que não esse ao qual costumamos a chamar por Zacharias-das-Ambrosias, ou o seu papel, de tão minúsculo que foi, deu conta de apagá-lo antes mesmo do editor das letras finais tomar nota da sua ínfima performance. Seja por uma razão seja pela outra, o filme, assim como quem dele faz parte, uma hora sempre termina. THE END...

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Ó triste!

Paspalho
Confunde alho com bugalho
Quer ser revolucionário
Sem antes ter saído
Do fraldário
Troca o talco do seu loló
Por um palco
E um gogó
Coisa pra lá de triste
E eu aqui, de dedo em riste
Te digo:
Ó amigo?
Tenha-me dó!

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#

Ah, o coletivo...
Se fosse coisa boa
Não haveria quem dele fugisse
Para dizer, sozinho como estou
O mesmo que já tanto, por outros, se disse:
Ah, o coletivo...

POETA, OU O ANTI-QUALQUER COISA...

O poeta é esse que se interessa por nada que presta
E a única saída pra ele é essa:
Se interessar por nada que se preste a prestar
Se houvesse mais coisas que nada dissessem
Coisas sem ter a que responder
Se nós fôssemos uns que acordássemos para nada fazer
Pronto!
Seríamos mais poetas
Um contingente todo de poetas cantantes!
Porque o poeta não se interessa por gente, assunto ou itinerário eficiente
O poeta se interessa pela natureza
Que de interessante não tem nada
Ou só isso:
Existe e pronto, sem se justificar porque é assim
Matéria inexplicada...
O mundo dos poetas é raro
Porque raro são os poetas
Que ao contrário de acordar cedo para o mundo melhorar
Acordam e pronto
E isso já é poesia para mais um dia
Rimando viver só com viver
Sem por metafísica ou assunto cívico
Ter de responder...
Ou o poeta não serve pra nada
Ou a vida que nasceu poesia
Ela própria melodia
Perdeu a alegria
Morrendo quadrada...

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sábado, 22 de junho de 2013

####GUERRA#####

Reuni meu vocabulário e disse assim:
Palavras minhas, aliadas gustativas de minhas salivas,
Agora seu chefe que vos mastiga será engajado
Sílabas! Cubram minha retaguarda e já pro meu lado!
Pra deserção não há motivo
Tenho cá comigo todo e qualquer adjetivo:
Valente, insistente, da pátria temente
Desses eflúvios retóricos - eufemismos, contorcionismos, cataclismos anunciados - 
Faço-me eu, vosso tenente
Corajoso orador declarado!
Marchai, ó palavras
Na missiva divina por um discurso coerente!
Rebentai entre meus dentes vossos estalos bravos,
E língua, ó pedaço molenga de carne acomodada:
Enrijeças toda, como um beijo mal dado... e já pro meu lado, tapete de lambida envenenada!...
Reuni minhas rimas e disse assim:
Combinem vossos ritmos em versos
Mas nada de divertimentos perversos! Não!
Quero protestos!
Mudanças, rimas amigas
Mudanças e para melhor!
Nada mais de pajelanças líricas!
Essa coisa de gastar falação -
Extravagancia menor -
É pacto com o Demo
É passagem sem volta
Destino? Da-nação!...
Com a prosa tive um dedo de prosa:
Ô prosa das horas assombrosas?
Que coisa mais desastrosa gastar o tempo em linha reta, esperando o ponto final!
O que quereis, afinal?
Viver assim, nessa perspectiva alienada, toda marginal?
Acordai! Acordai
!!!
Disse eu assim, todo temerário
Num encontro justo
Com meu vagabundo
Vocabulário...

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MANIFESTAR...


Se houvesse razão no manifestar
Não manifestaríamos somente nós
A vida seria uma enorme conglomeração
De seres manifestantes, em ação
As árvores manifestariam por folhas mais dignas
As toupeiras por túneis mais aprazíveis às suas silhuetas
O próprio dia, inconformado com a sua curta melodia
Diria:
'Quero mais luz!'
E da noite, tempo obscuro - curto ou longo
Roubaria.
Se Deus quisesse que manifestássemos
Daria-nos a vida num palanque, aos olhos de uma plateia delirante
E de lá poríamo-nos já de pé
E ocorre que até ficar de pé é matéria que demora
Longa jornada até compreender
Como de pé podemos nos suster...
Pois não é isso exatamente que nos acontece?
A vida não é feita de matéria reivindicatória
É coisa de debater no agora
É só uma diária aventura
Para lá de irrisória!
E isso a enobrece, a nós e a ela.
Deixá-la importante demais é o nosso erro
Dar zelo é perder
Melhor seria
Apenas
Viver...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O Fim de Ernesto, o maestro...



Ernesto, o maestro, teve uma vida inteira dedicada à música. Foram muitas as sinfonias, para não dizer todas as sinfonias que se há para conhecer, que tiveram saída sob a batuta de Ernesto, o maestro. As integrais de Beethoven, Mozart, Haydn, todos os compositores, enfim, desde aqueles do barroco-antigo, passando pelos clássicos, românticos e modernos-contemporâneos, todos, sem exceção, fizeram de Ernesto, o maestro, o que ele é, ou foi até ontem - quando morreu -, o mais importante maestro da nossa geração. Curiosidades à parte, o fato é que, se falamos que Ernesto, o maestro, fora um dos indiscutíveis talentos da regência orquestral erudita - o primeiro a aparecer depois de um terrível vácuo após a morte do inesquecível, talvez o maior de todos, maestro alemão, Urich Kapsberg – o maestro que se notabilizou por soltar grunhidos esquisitos enquanto regia, especialmente nas partes mais emotivas da melodia -, é porque, enfim, reservamos sua lembrança não só como motivo de homenagem póstuma, já que ontem deverá ficar na história como um triste dia para os apreciadores de música sinfônica, uma vez que ele, Ernesto, o maestro, deixou de existir para entrar nos anais da memória dessa arte tão apreciada que é, justamente, a música sinfônica-orquestral-erudita, mas também, curiosidades à parte, falamos de Ernesto, o maestro, para esclarecer que ele, o próprio Ernesto, o maestro, nunca na vida pôde se apresentar publicamente, quiçá ser visto andando pelas ruas, ou mesmo sendo entrevistado por algum programa de televisão, não havendo quem, nem mesmo alguém que, em sã consciência, possa ter jurado em afirmar: ‘sim, eu vi ele regendo, ele, o grande e inesquecível Ernesto, o maestro’; nem mesmo as orquestras sinfônicas, nenhuma delas, tem nos seus registros a passagem desse famoso maestro invisível, mas que todos, a despeito de conhecê-lo ou não, indiscutivelmente amam, a ponto de jurarem em dizer: ‘sim, definitivamente ele, Ernesto, o maestro, é um dos grandes, quiçá o maior deles que apareceu, é claro, depois de um terrível vácuo após a morte do inesquecível, talvez o maior de todos, maestro alemão, Urich Kapsberg – o maestro que se notabilizou por soltar arrotos altíssimos enquanto regia, especialmente nas partes mais efusivas da melodia; de forma que ele, Ernesto, o maestro, angariou toda a sua fama e respeitabilidade frente ao meio social e musical em geral unicamente através do boca à boca que se fazia sobre a sua pessoa, reforçando sua magistralidade nunca antes comprovada na medida em que os frequentadores das salas de concerto e das mídias tecnológicas faziam questão de reforçar nas mais diveras ocasiões que ele, Ernesto, o maestro, continuava no topo da excelência da sua arte, a regência da música sinfônica-orquestral-erudita. Pois ontem, depois de tantos anos dedicando-se à regência da música sinfônica-orquestral-erudita, um concerto comemorativo foi marcado em homenagem justamente a ele, Ernesto, o maestro, ocasião especial em que justamente ele, Ernesto, o maestro, iria pessoalmente reger a famosa orquestra da Bratislava. A expectativa foi grande entre todos os amantes da música e curiosos por ver ao vivo esse grande mito de nome Erneto, o maestro, e, como haveria de se prever, a totalidade dos ingressos se esgotou em pouco tempo. A sala estava cheia. As madames desfilavam seus vestidos, exalando fragrâncias de perfumes variados, enquanto os maridos alinhavam-se em ternos finíssimos. Os músicos afinavam seus instrumentos à espera do spalla da orquestra, o violinista Smirilovich Smiriálov Dantchenko. Eis que o spalla entra na sala de concertos, e o público silencia. A nota ‘lá’ é dada pelo oboé.  Segue-se a afinação dos metais, madeiras e cordas.  Smirilovich Smiriálov Dantchenko se senta. Silêncio mortal. Agora a próxima entrada era a dele, a de Ernesto, o maestro, para a execução da grandiosa Sinfonia Inacabada, de Schubert. A porta, finalmente, se abre, mas quem entra não é Erneto, o maestro, senão uma mulher elegantíssima, vestida num luto abrasador, com um véu a lhe cobrir o rosto fino mas evidentemente inchado, prova inconteste de que passara horas vertendo lágrimas pesadas. Ela, supostamente a viuva dele, do Ernesto, o maestro, afirma então que ele, Erneto, o maestro, havia tido uma síncope convulsiva no seu camarim instantes antes de se aprontar para o concerto. Morrera dali há pouco, segundos atrás. Pausa dramática. E então, num êxtase emotivo, coisa só despertada pelas grandes personalidades, a plateia e o público, em meio a soluços e pequenas orações mudas, romperam num estrondoso aplauso, não sem antes compartilhar da lindíssima ‘marcha fúnebre’ de Choppin, intrpretada brilhantemente pela famosa orquestra da Bratislava, cujo spalla era ele, o brilhantíssimo violinista Smirilovich Smiriálov Dantchenko, mas que, infelizmente, não pôde contar com a mão habilidosa desse que, ao segurar a batuta, diziam, era o mais fenomenal maestro da nossa geração, depois, é claro, do terrível vácuo após a morte do inesquecível, talvez o maior de todos, maestro alemão, Urich Kapsberg – o maestro que se notabilizou por espirrar enquanto regia, especialmente nas partes em que a percussão decretava o final retumbante da melodia...


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VALSA DA FREGUESIA...

Eu vejo o que quero ver
Ou desejo
E tu aí, desejando fazer-me crer?
Ora essa!
No baile dos equívocos
Porque qualquer olhar há de sempre tropeçar
Minha valsa é curta
De anos de labuta:
1, 2 3
1, 2, 3
E tu aí, em atividade na coletividade
Insistindo em dos outros ser
Uma vez mais:
1, 2, 3
1, 2, 3
freguês!

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A LUTA NOSSA...

Mais uma luta nossa de cada dia
Mas o sol não ajuda, todavia
Nasce no oriente, cresce
E já no poente, arrefece...
Como a luta nossa
De cada dia
Que a despeito de inventarmos várias, todavia
Não ajuda
Também nasce da nossa mente
Cresce até dela sermos crentes
E morre
Quanto morremos nós
As gentes...

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O GIGANTE...

A multidão que agora anda
Desanda
Tropeça eu, tu, ele, vós
Que de voz não mais minha
Nem tua ou nossa
Reproduz a mesma ladainha
De bardo atroz
Retumbante...
Não há tempo verbal para esse gigante
Massa torta que anda hesitante
Sem saber de mim, de tu ou dele
Quem será esse
Que faço parte de mim
Sem mais dizer quero não
Ou quero sim?
Eu não sou
Mas se me vou
Quem sobra?
Quem será esse que fica?
Alguém?
Dos outros quem?
Ninguém!

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INFINITO...

O que é o infinito
Senão o que é dito
Repetido
Até que o isto e o mais aquilo
Se tornem idos
Aos braços eternos comprimidos
Tidos como inauditos
Virando, por fim 
Mito?
Mas, no fundo
É isto:
Misto disso e mais aquilo
Repetido

...

...

NA FESTA DOS DESAVISADOS...

Na festa dos desavisados
Houve quem entrou por aqui
Por ali
Entraram também na festa
Pelos lados
Todos a formar o pelotão
Dos desavisados

Na festa dos desavisados
Todos eram
Ou queriam ser
Convidados
"Venham ver
Que festa boa de se fazer" -
Diziam os que para lá tinham se juntado

Uma vez na festa dos desavisados
Festejaram muito os que para lá foram
Arrastados
Porque na festa dos desavisados
Até quem não queria ir
(Ou se queria não sabia)
Foi
Todo animado

Mas, na festa onde todos tinham ido para dançar
Muito de útil queria se fazer
Fora o esqueleto chacoalhar
Como, por exemplo
Entender porque eu
Que dançar gosto
Na vida
Dançar não posso -
"Deve ser por conta do outro
Que dançar não me deixa
(Ora essa! Vou abrir uma queixa!)
Se tropico no meu próprio pé
Isso não te interessa, é coisa minha
O que quero é o direito de dançar
Eu comigo
Todo santo dia" -
Diziam encafifados
Todos eles
Os desavisados

Eita festa de arromba essa
Rebolavam e cantavam
Em movimento uno
Os da festa
Os enfileirados
Porque na festa dos desavisados
Ou se dança junto
Ou se é
Escorraçado

E na hora de ir embora, ficaram
Desembestados
Sem saber se o que acabaram de cantar era tango
Ou fado

E assim a famosa festa se deu
Coisa que de fato aconteceu
Mas que,
Ora essa
Ninguém daqui
Nem dali
Entendeu

Só se sabe que serviu para muitos deles
Os desavisados
Levantarem a voz (ainda que a voz não levantassem)
Dizendo:
"Ei, você daí!
Quero dançar
Que tal tu fazer
A banda pra mim
Agora tocar?"

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sexta-feira, 21 de junho de 2013

Da arte de governar e ser governado pelo cinismo. É isso o que eu sou, é isso o que você é: cínico. Todos o somos, sem exceção. Ponto final...


Somos cínicos. Somos tão cínicos que é difícil avançar na questão, afinal, como desenvolver um raciocínio quando não há outro argumento senão o que prova exatamente isso, que não somos outra coisa senão isso: cínicos. Da cabeça até o dedão do pé, somos cínicos. Essa coisa de que ‘não há quem nos resguarde e por isso as coisas chegaram ao ponto em que estão’ é de um cinismo atroz. É típico do cínico despejar as causas da sua miséria no lombo de alguém, nas costas de alguma entidade, governo, família, Deus, ou na responsabilidade de qualquer outra abstração que se encontre para tal. O cínico nunca se acha cínico, repare, e quase sempre se coloca como credor - um que vive para cobrar do que vem de fora alguma conta não paga que possa justificar a sua parcial ou total incompetência. É coisa habitual de todo cínico separar o que é bom do que é mau, e, claro, todo cínico se acha no lugar do bem, qualificando tudo o que foge do seu umbigo envenenado pelo cinismo como ruim, maléfico, perturbador da sua segurança, índice inequívoco da sua inabilidade em seguir adiante como gostaria de seguir. Uma das faces essenciais do cínico é a amargura. Todo amargurado é um cínico e todo cínico raramente tem humor – o humor muitas vezes tem a propriedade de amainar o cinismo, mas não todo tipo de humor! - há qualidades de humor que, ao invés de cicatrizar as feridas do cinismo, afundam o sujeito ainda mais na sua congênita doença cínica. Aliás, o cínico é sempre um idealista, não desses sonhadores que sabem que sonham – esses são os artistas, que também tem a sua grande parcela de cinismo – mas o cínico habitual, esse que caminha pelas ruas sem suspeitar de que é cínico, crê fielmente num mundo melhor, ou que o mundo irá melhorar, bastando que haja alguma ideia potente o suficiente para reunir toda uma filosofia que reforce a mensagem de que o homem, a sociedade, a cidade, o governo, o país, tudo isso e incluindo ele próprio – o cínico - tem jeito de se emendar. Assim, o cínico, com isso na cabeça, passa a se filiar a não sei quantos partidos políticos, agremiações, grupinhos de amigos e aliados, passeatas e protestos coletivos, para, juntos – todo cínico de carteirinha caminha em bando -, construir os alicerces dessa matéria grotesca que se chama: a redenção dos justos pela derrota dos covardes e corruptos. A covardia, bom que se diga, é um atributo essencial de todo o cínico. E é cínico quem cospe pelas ventas chamando os outros de covardes, afinal, uma vez que o cínico não consegue assumir a sua própria covardia – o cínico nunca assume nada que diga respeito aos seus mais claros defeitos, repare – ele, o cínico, automaticamente se diz corajoso, intrépido, valente e preparado para distribuir aos seus pares as suas ladainhas otimistas – normalmente todo otimista é um cínico abissal, repare – caminhando, dessa forma, na direção da sua autoconfiança pueril. Todos somos cínicos, todos. E quando digo ‘todos’, faço uso proposital dessa abstração na qual, junto com o meu cinismo descarado, me incluo sem vergonha alguma. O povo é cínico – os proletários, os burgueses, os aristocratas, os políticos... aliás, separar as pessoas nessas classes é um sintoma de um cinismo ridículo, e você aí do outro lado poderia muito bem argumentar que é de um cinismo perverso qualificar o mundo de doente quando eu, esse que vos escreve, teve a preciosa chance em vida de se preparar para poder articular um texto como esse, altamente cínico no seu conteúdo, e ao mesmo tempo erudito nas suas fundações, de modo que, uma vez que eu tenho como habilidade enxergar as coisas assim, é porque eu – o cínico autor – pude estudar, me qualificar ética e moralmente (as academias são os terrenos dos cínicos por excelência!) e nunca passei fome ou qualquer outra danação da carne ou do espírito em vida. Tem razão, caro leitor, mas esse seu potencial argumento não escapa de uma coisa para lá de evidente: é cínico! Conheço não sei quantos doutores, Phd’s em mecatrônica, gente inteligentíssima e bem nutrida que é mais tapada que um Jeca-Tatu dos recônditos do Piauí (perdoe-me o Piauí, mas quem nunca fez uma metáfora com o ermo dessa Terra-de-Ninguém é cínico também). Por outro lado, conheço outras pessoas que não tiveram o privilégio que eu sei que tive e que são muitíssimo mais inteligentes e sagazes do que eu, esse cínico intelectual trancafiado na sua torre de marfim – imagem de mim que você já deve ter emoldurado na sua consciência, e que é perfeitamente adequada a esse pobre cínico que vos escreve. Ah, como nós somos cínicos! Cínicos atrozes! Há dias atrás, tive orgulho do meu povo que saia às ruas entoando o hino nacional a ponto de me envergonhar, justamente porque eu me ausentara de tão importante evento cívico! Veja como eu sou cínico? Hoje eu dou graças a Deus - todo temente a Deus é um tipo especial de cínico: o cínico medroso - por ter me mantido distante dessa turba de gritadores nacionalistas que ao menor sinal de fumaça já se esquecem do quão são cínicos para reivindicar mudanças, mudanças que descambam na mais idiota violência gratuita, e pouco adianta reivindicar que essa violência é circunscrita a poucos baderneiros que tem como desejo depreciar uma luta justa, porque, a rigor, violentos somos todos nós, que mal conseguimos gerir as nossas próprias hipocrisias íntimas para deixá-las assim, em banho-maria, enquanto achamo-nos suficientemente honrados para dizer: o mundo está errado e eu quero que ele esteja à altura da minha dignidade! Bando de cínicos: eu, que sei que sou cínico (e isso não me salva de muita coisa a não ser da ignorância de não saber que sou cínico) e todos os outros, baderneiros ou não, que não reconhecem que essa panacéia toda não nasceu para dar certo, senão para patinar no equívoco de ter um dia sido descoberta por uns bigodudos portugueses (quem come bacalhau é da qualidade dos cínicos-salgados). Nascemos numa nação de festejadores, festeiros viramos, e hoje continuamos a festejar – e encontrar motivos para festa nessa vida me parece a coisa mais cínica do mundo. De festa em festa nos fantasiamos de bons moços, fantasia que passamos a acreditar como inerente a nossa própria pele. Nada mais falso. Mais justo seria qualificarmo-nos como corredores oficiais, mas não de meia maratona, senão corredores circulares, que correm atrás do próprio rabo, esse rabo todo depenado que insistimos em vender com o selo de pedigree. Ah, como somos retumbantemente cínicos! Coisa que não há remédio algum! E, veja bem, antes que alguém busque alguma solução para essa minha precária descrição do que nós somos, já digo de antemão que eu não sou fascista, revolucionário-reacionário, ou representante de qualquer outro uniforme autoritário cunhado por essa humanidade-de-cínicos-deslavados. Eu não creio em violência alguma ou em qualquer método de repressão. Aposto sempre na paz e na liberdade, e credito a violência a quem é crente de que algo possa ser feito para que sejamos outra coisa que não essa: cínicos. Ponto final.

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quinta-feira, 20 de junho de 2013

QUEM SE SALVA?

Entre mortos e feridos, salvaram-se os que lutam sem lutar
Lutando por revoluções outras
Com armas muitas
Mirando em alvos instáveis
Munidos de munições mudas
E por isso mesmo barulhentas
De tão surdas...
Salvaram-se os guerrilheiros covardes
E de coragem infinita
A cada dia morrendo em verdades perecíveis
Lutando por lados de fronteiras invisíveis...
Salvaram-se esses!
Os ausentes das batalhas campais
Mas que no campo sempre batalham
Na busca por entenderem-se como tais
A eles e ao mundo
Inimigo e amigo
Tudo junto.
Salvaram-se os que por serem salvos não se achavam no direito
Simplesmente os que levavam a mão ao peito
Não para cantar hino algum
Senão para ouvir o que não se ouve no grito alheio
Salvaram-se os que por heróis não se viam
Vendo aos seus não como aliados
Mas como condenados
A vagar sem nunca chegar
A despeito do quanto se ande
Em qualquer paragem
Miragem
Ou lugar...
Esses

Esses
Entre mortos e feridos
Ganharam o direito
De continuar
Vivos...

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quarta-feira, 19 de junho de 2013

CHE...

Minha cara barbuda
Antes desnuda
Depois da revogação dos centavos...
(Aliás, ô seleção que não joga 1/20 avos!)
Diz pro dono do bigode:
Companheiro de luta, te sacode!
Tu és o Che
A reencarnação do Guevara
Eu? Não que eu saiba!
Tu não sabes de nada, quem sabe sou eu, a barba!
E antes que fujas arrebalde
Cantas o hino, JÁ!
(Pátria amada idolatrada salve salve)
Bom, muito bom!
E se não lavas esse rosto
Venço eu, a barba, não tu
Jeca-Tatu!
E ruma tu pra Cuba
Lá tem luta
E vai antes que acabe
Senão pra tua salada
Não dou mais pingo
De vinagre!

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No zoológico da vida...

No zoológico da vida há sempre uma paca de espírito curto a ruminar capim de beira de estrada como se fosse alfafa das margens do Nilo...

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No curral da vida...

No curral da vida haverá sempre um jegue que ao mudar de baia palitará os dentes, crente que mudou de continente...

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