Ele lia. Tudo para ele era motivo de se folhear, dos
clássicos até o que era reconhecidamente porcaria, para ele, era assunto para
estacionar os passos e botar os olhos para trabalhar. Lia tanto que deixou de
viver, ou, se vivia, só as olheiras é que sabiam, tanto de roxas que ficavam na
medida em que funcionavam. E assim foi, ficando escuro pelas beiradas,
emudecendo para as demandas diárias, só vivendo para não viver, senão para ler.
Outro dia, disse a mim todo contente: ‘Está tudo aqui! O segredo de todas as
coisas está escrito bem aqui!’, e chacoalhava um enciclopédia antiga, de
páginas já amareladas. O tempo passou e ele lá, acumulando não só leituras como
também livros, dos pesados aos mais leves, os livros é que se multiplicavam,
cada um deles abarrotando os poucos vãos livres da sua já lotada estante. Pois
ocorreu que, numa ocasião, foi trepar-se num banquinho para apanhar não sei
qual leitura que equilibrava-se lá no último andar da tal estante. No movimento
de apanhar o livro, desequilibrou-se, e, caindo ao chão, caíram por cima dele
todos os livros do mundo, dos russos aos espanhóis, dos nacionais aos de idioma
mais esquisitos, os livros sobre ele caíram sem parar. Já completamente morto,
fruto provavelmente do golpe fatal de uma lombada de Dostoiévski, um último
volume foi abrir-se em sua última página e exatamente por cima do monte onde
seu corpo jazia. Era Machado de Assis na voz de seu Brás Cubas, que assim
dizia: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da minha
miséria’. Foi seu epitáfio.
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