terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Toronto Raptors X Sacramento Kings


O que houve de errado? Fui ao estádio acreditando ocupar o lugar de um simples torcedor e acabei virando uma chacrete do Cassino do saudoso Velho Guerreiro.

Alôôôôô, atençãããão!

Enquanto voava uma abobrinha sobre a minha cabeça, plumas da dançarina da esquerda faziam cócegas involuntárias bem debaixo do meu nariz. Sem perder o rebolado e rogando para que o espirro iminente estivesse afinado com o ritmo da lambada que ecoava pelo lugar, olhei para cima e percebi que uma câmera projetava minha imagem no telão, fechada no meu esbelto rosto para todo o estádio ver. Cuspir a pipoca para ensaiar um sorriso espontâneo revelou ser um grave erro, tendo em vista que um piruá jazia como figurante não convidado entre o meu canino e o meu molar direito.

(Buzina): FOM FOM! Nota Zero... Nota Ze-ro!

Tereziiiiiiiinhaa? Uhuuuuuuuuuuu?

Não obstante a minha invejável forma física ter me concedido a posição de titular, posto antes ocupado por Rita Cadilac, saio dessa experiência com a sensação de que comprei gato por lebre. Fui assistir a um jogo e acabei parte integrante de um programa de auditório. Aquilo podia ser tudo, menos uma partida de basquete.

(MÚSICA! Entram as Cheerleaders! Uhuuuuu! Tchof Tchof Tchof)

Sentado lá na minha poltrona iluminada eu ponderava quieto que tipo de crime aquele grupo de pobres meninas havia cometido para receber tão grave castigo. Bastava um acorde, um si bemol perdido no meio da pauta, um único tremelicar de cordas para as cabeleiras começarem a chacoalhar feitas bonecas de pano do carnaval de Olinda (e todas juntas!). Saltitando como gazelas amestradas tomavam o centro da quadra a cada instante de pausa do jogo para demonstrarem, em escala progressiva, quantas posições diferentes conseguiam fazer de forma coreografada e ao som de um pancadão de deixar qualquer Bonde do Tigrão com inveja.

FOOOOOOOOOOM! Elke? Cadê você Elke minha Maravilha! Uhuuuu?

E eis que entra o mascote do time da casa, um tiranossauro-rex vermelho, dirigindo um carro no meio da quadra! Cena que fez os corações dos presentes pularem de satisfação! Antes o dinossaurozinho (gutchi-gutchi do papai) havia presenteado a todos com a destreza de passos equilibrados em cima de uma enorme perna-de-pau, para depois cravar bolas de basquete na cesta ao cambalhotear no ar saltando de um trampolim acrobático!

Palmas para o Dinossauro... Eu disse PAL-MAS para o DINO-SSAURO! Terezinhaaaa?

O Show tinha o seu próprio animador que empunhando um microfone tomava o palco nos intervalos da partida para disputar a atenção de todos, que já não sabiam mais para onde olhar: para o Dino? Para as dançarinas esvoaçantes? Para o jogo? Jogo? Que jogo? Acreditem ou não, nem os próprios jogadores, pobres coitados relegados a posição de assistentes de palco, estavam interessados no que faziam.

Alô DJ? Eu disse ALÔ DISQUE JÓQUEI.... Uhuuu?

E não é que a “rave-esportiva” tinha também um DJ? Esse sujeito, nos vinte minutos finais, foi alvo do meu mais sádico desejo de lançar um míssil tele-guiado bem no meio do seu focinho, tamanha era a minha dor de cabeça depois de mais de duas horas de músicas ininterruptas! O enviado do demônio tinha um repertório para tudo: quando o time da casa estava no ataque era um tipo de música, quando o time adversário tinha a posse de bola, outro... Quando alguém errava a pontaria entrava um acorde, quando um dos jogadores fazia uma jogada bonita entrava um repique de estourar os tímpanos. Mesmo a trajetória que a bola fazia saindo das mãos do atleta até a cesta era preenchida com algum reco-reco sonoro! O coitado do torcedor não tinha direito a nenhum momento de silêncio, de atenção ao que os jogadores faziam na quadra, ou tentavam fazer. Como se não bastasse tanta aporrinhação, o circo nos brindava com um narrador... Isso mesmo, um mestre de cerimônias que descrevia tim tim por tim tim o que cada um fazia na quadra de basquete. Um Galvão Bueno para cada torcedor. Quieto na minha cadeira imaginava que tal interferência devia ser atribuída a algum tipo de dislexia que impedia a plateia de reconhecer sozinha quando um jogador pontuava e quando ocorria uma infração.

HAAAAAAAAAAAJA coração!

Lembro-me até hoje da emoção que tive ao assistir um jogo da Copa América de basquete feminino no ginásio do Ibirapuera, no ano de 1989. O ginásio inteiro suspirava junto com a nossa espetacular seleção num silêncio avassalador. Brasil e Cuba disputavam ponto a ponto o título da competição. Os únicos sons do ambiente, lembro-me como se fosse ontem, eram aqueles produzidos pelo riscar dos tênis das jogadoras na quadra – notas de um balé inconfundível! -, o ruído da bola batendo ao chão e aquele produzido pelo contato da bola com o aro ou as redes da cesta. Sem qualquer tipo de música para ocupar nossas cabeças, o jogo era inteiro repleto de suspense, de tensão, de entrega do torcedor ao verdadeiro espetáculo, um simples jogo que, sem enfeites, arrebatava o coração de todos. Quando Paula, Hortência, Janete e companhia faziam uma cesta a torcida vinha abaixo, quando Leonor Borrel, a craque cubana, emendava numa boa jogada a torcida suspirava em lamento. Era como se o mundo parasse para acompanhar o percurso da bola até a cesta, como se os segundos parassem no tempo.

O que faz um jogo interessar é o drama que a disputa sugere, um time quer vencer o outro e é esse embate de desejos iguais que gera expectativa e faz com que o espectador seja fisgado pela contenda. Em um esforço de tornar a atração mais atraente, o jogo que tive a oportunidade de presenciar perdia qualidade, deixando a todos com uma sensação de que poderiam muito bem estar em qualquer outro lugar conversando sobre qualquer outra coisa – tenho certeza absoluta de que o grupo de rapazes que estava ao meu lado não olhou para a quadra de basquete mais do que dez vezes, mais preocupados que estavam em bebericar de suas cervejas.

Os gringos podem ser experientes quando o assunto envolve a produção de um show, de um espetáculo suntuoso, mas lhes falta o mais importante e o mais difícil de conquistar quando se deseja alcançar interesse em uma disputa: o talento pela simplicidade. Com uma bola de meia e três paus o nosso futebol se resolve dentro de uma precariedade que deixa espaço somente para o essencial, para aquilo que a disputa tem de mais importante. Não é preciso fogos de artifício, efeitos sonoros nem dançarinas esbeltas, o futebol é fascinante porque o virtuosismo não é sinônimo de talento. Os mais geniais craques da bola são aqueles que driblam com uma naturalidade difícil de ser explicada para outros que nunca tiveram contato com o esporte. Em três ou quatro toques tudo se resolve.

Aquele que enfeita demais, parafraseando meu velho amigo do bardo inglês, não recebe outra coisa senão: “muito barulho por nada”.

ZIRIGUIDUM! QUEM QUER CHUCHUUUUUU?

Escrito por Francisco Egydio de Carvalho. 11.01.11, às 18hs.

sábado, 1 de janeiro de 2011

No princípio era o silêncio...


Olho para fora, através da janela, e agora consigo reconhecer precisamente o que me atrai aqui, no Canadá. Não é a neve nem a beleza do cenário, tampouco a invejável organização de um país que respeita seus habitantes. Não. Fico com algo mais simples, fico com o silêncio. Pensemos sobre o assunto.


As melhores paisagens são mudas, o único som possível é aquele audível pela respiração de quem contempla com profundo respeito um silêncio já raro entre os que não abrem mão do verbo para descrever o que não necessita ser explicado.

As melhores sinfonias sabem que a melodia dos instrumentos só é potente na medida em que reconhece no silêncio da pausa o instante passageiro que confere a música toda a sua força poética. As melhores sinfonias trabalham para o silêncio e no silêncio.

As melhores peças de teatro são aquelas que conseguem a difícil façanha de conservar o mistério efêmero que separa o início do espetáculo da algazarra que preenche o momento de ocupação do público na sala. É no movimento do abrir da cortina, breves segundos de silêncio, que reside a qualidade artística que as palavras que virão a seguir deverão necessariamente dar conta de manter. O bom dramaturgo sabe que suas palavras só são eficazes na medida em que fazem revelar espaços entre as frases, pausas não traduzíveis, silêncios repletos de verdades incontestáveis. Nada combina mais com péssimo teatro do que a tagarelice.

O bom ator é expressivo no silêncio, não se esforça para convencer ninguém com a sua voz porque tem a convicção de que a palavra só lhe serve até certo ponto. A humanidade da personagem que interpreta não vem impressa em formato de receita tal qual ocorre nas bulas de remédios da farmácia; para alcançá-la é preciso silenciar, e este exercício é o que separa o grande artista daquele outro, o medíocre. Enquanto um se permite experimentar a dúvida não expressa em verbalizações, ou seja, o silêncio, o outro não perde tempo em mostrar serviço, tagarelando.

É na pausa do avião na cabeceira da pista, segundos antes de decolar, que a viagem ganha todo o seu sentido, o resto só terá interesse se conseguir sustentar essa expectativa inicial de mistério não revelado. O viajante que retorna ao seu destino com um repertório de histórias não foi tão longe quanto aquele que regressa sem saber ao certo o que revelar. Nada mais triste do que viajar para tirar fotos; álbuns são documentos, não experiências vividas.

Concordo com Nelson Rodrigues: a missa só interessa quando padre e fiéis decidem não comparecer ao evento. A igreja vazia, com seus ecos silenciosos, é muito mais sagrada do que quando repleta de ladainhas e vozes em coro. O espiritual só ganha sentido quando não há interlocutores, quando a solidão se faz sentir. Pobres daqueles que acham que formar rebanhos é a saída para encontrar a salvação. “O homem mais forte é aquele que está mais só”, como já dizia Ibsen.

Todos deveriam ter direito ao silencio e o dever de praticá-lo.

Olho novamente para a rua deserta lá fora. O frio convida ao silêncio. Quão mais sábios seríamos nós, brasileiros, se tivéssemos a oportunidade de experimentar mais o prazer de um inverno como esse. Sentirei imensas saudades quando regressar ao meu país.

Escrito por Francisco Carvalho. 1.1.2011. Canadá.