domingo, 21 de outubro de 2007

Isso + Aquilo = não sei o quê!

Uma vez alguém, não lembro quem, me disse: "Você trabalha com teatro, com arte. Cultura é muito importante para todos nós mas não vejo teatro como cultura, teatro é mais uma diversão, a gente vai para se divertir, não para pensar".

Essa frase tem uma afirmação muito perigosa que não é tão exclusiva dessa tal pessoa a quem não recordo o nome. Lê-se nas entrelinhas que o teatro, sendo uma arte que prima pelo divertimento - o que eu concordo plenamente (se algum dia uma peça de teatro lhe oferecer uma sessão de sofrimento ou queimação de neurônios tal e qual acontece na sua vida cotidiana, fuja!) - não combina com reflexão. Ainda pode-se afirmar, pela frase de autoria desconhecida, que Cultura para ser definida como Cultura deve necessariamente rimar com tédio, suor na testa (neurônios queimando!!!), sofrimento (aí sim!). Isso porque, nesse caso, a arte é vista como mais uma ferramenta utilitária a disposição daquele que, não sem antes fazer por merecer, conquista seu direito de utilizá-la para tornar-se um homem melhor.

Sem dúvida que o acesso a Cultura torna o homem melhor ou, pelo menos, mais sensível em relação a sua inevitável condição de agente social, mas, é justamente na contra mão da "utilidade" que a arte encontra seu caminho para tocar seus espectadores.

Arte é contra qualquer tipo de "utilidade" porque por "util" entende-se aquilo que deve servir a um determinado fim. Arte não busca "fins" mas sim "meios" de estimular cada espectador a descobrir soluções individuais, mesmo que para tal a compreensão de um tema único seja necessário. A riqueza da arte, e, por conseguinte, a do teatro, está em não querer exigir nada de quem a aprecia e através desse descompromisso colher as reações mais sinceras que surgem de forma natural. É por isso que o teatro, e as demais manifestações artísticas, deve manter-se sempre na via do divertimento. As reações mais sinceras, autênticas e, por isso mesmo, mais aptas a provocar reflexão são aquelas que são resultado de um estímulo não impositivo. Quem se diverte (não apenas o "divertir" que é revelado pelo riso, mas toda e qualquer reação que faz com que o espectador mergulhe na obra fruída) relaxa e se abre para pensar sem ter que dar satisfações a nenhum modelo de pensamento - sem ter que responder a nenhum "fim" específico.

É por isso que arte é essencial e não apenas brincadeira de passatempo. Quem acha que o teatro é irrelevante incorre no mesmo equívoco daqueles que pensam que o homem só encontra meios de evoluir através de mecanismos pragmáticos, normalmente traduzidos pelos avanços da ciência e tecnologia.

Francisco Carvalho. 2006

A PAISAGEM DA ALMA



A paisagem da alma.
Análise da tela "Drinkstone Park", de Thomas Gainsborough


Misturando-se aos tons escuros da grama verde, um homem estendido ao chão, vencido pelo sono profundo, apequena-se diante das proporções majestosas de uma paisagem campestre. O contraste entre as sombras produzidas pelas portentosas árvores e o céu vespertino, embora tomado parcialmente por nuvens carregadas, compõem um jogo de opostos entre luz e penumbra, traduzindo o diálogo da natureza como o grande protagonista do discurso pictórico. Sob olhares menos atentos, a figura humana, provavelmente um camponês que estendera involuntariamente o seu breve cochilo, poderia passar desapercebida. A sua importância, porém, é fundamental tanto para valorizar de forma mais explícita as dimensões do ambiente ao seu redor, como também para descortinar o sentido metafórico presente na composição.


Tomemos como parâmetro o ponto de vista do observador da obra. O quadro compreende basicamente duas partes, tendo a linha do horizonte como marco divisório. O quadrante superior, embora invadido pela copa de algumas árvores à direita e à esquerda, é ocupado na sua maioria pelo céu nebuloso. Já o quadrante inferior apresenta como destaque um sinuoso tronco seco ainda postado verticalmente. Apenas alguns ramos com folhas verdes indicam o que um dia fora, talvez, a maior das árvores da paisagem. Entre o homem que dorme e o tronco seco, um caminho de terra conduz a três destinos diversos: um à esquerda, o outro para o lado oposto, ambos distantes e encobertos pelas folhagens de outras árvores e, finalmente, o terceiro destino, que parece vir de encontro ao observador da obra. Na porção central, nem tão próximo ao limite inferior da tela, nem tão colado a linha do horizonte, um lago raso de proporções médias serve de bebedouro para cinco vacas e três bezerros. Ao lado do tronco seco, colado às suas raízes, um pequeno riacho faz circular uma quantidade tímida de água sobre algumas pedras. Ainda, ao lado do homem que dorme, um cão observa curioso os animais no lago a saciar a sede.


A paisagem retratada por Thomas Gainsborough é um convite ao exercício dos sentidos. O cheiro é de terra e grama molhadas, a textura das cores e as nuvens no céu indicam que a estação das chuvas já se instalara. Quase é possível sentir por entre as mãos a consistência do barro ou imaginar o desconforto, ignorado pelo homem, de deitar-se sob uma relva ainda úmida. O quadro é regido por uma sinfonia quase silenciosa, quebrada pelo ruído distante dos trovões, anunciando a tempestade. Os passos dos animais no lago raso e a pequena correnteza do riacho embalam o sono do homem tal qual a melodia serena do final de um terceiro movimento Andantino maestoso. No momento seguinte, o ribombar dos raios e trovões, através da energia dos tímpanos de uma percussão, darão início ao Allegro prestíssimo, fazendo o homem despertar à força e livrando-o dos devaneios melódicos aos quais estava até então entregue. O observador parece testemunhar exatamente este momento de expectativa da transição, e, em uma atitude solidária, anseia por prevenir o homem do risco que corre de ser desperto por uma torrente de água. Esse é o gosto que vem à boca: água fresca.


A composição trabalha com três dimensões diferentes de tempo. Primeiro o tempo da própria natureza que combina a representação do passado distante, através do tronco seco, ao vigor das cores verdes das demais árvores (tempo atual). A própria iminência da chuva configura-se como um signo de renovação, de reciclagem da vida e, portanto, de prosseguimento ao tempo presente. O homem que dorme está imerso em um passado próximo, suficiente para transformar o seu breve cochilo em um sono profundo. Já o cão identifica uma noção temporal semelhante a da apresentada pelo observador da obra. Deitado e ao lado de seu dono, ele olha interessado para os animais no lago, evidenciando um tempo de ação corrente. O observador, ao desvendar os detalhes da obra, compactua com a mesma curiosidade momentânea do cão.


Thomas Gainsborough faz uso de sua técnica para reproduzir um cenário de poesia idílica. Nesse sentido, foge da arte como um instrumento de afirmação política ou de status social. A bem da verdade, Gainsborough era um exímio retratista, fato que o atava a uma elite intelectual ávida por ver-se reproduzida em cenas cotidianas. A sua opção pela paisagem campestre e pelo desprendimento às tradições da pintura, indicam, ainda que prematuramente, a célula original do que mais tarde iria se configurar como o movimento de revolução na estética das artes (principalmente na poesia e na música): o romantismo. Gainsborough não direciona seus esforços para reproduzir o homem como o senhor da razão, ao contrário, ele o joga em cenários naturais repletos de aromas e sensações físicas. O homem, agora, está imerso na poesia da natureza, entregue às forças primitivas. Nesse contexto, ao desprezar a razão como tema, o artista foca sua temática na relação do espírito humano com as experiências físicas que o meio natural lhe oferece. Ao abandonar os gabinetes embolorados e transferir o cenário para o ar livre, o artista estimula o resgate do homem com a sua própria essência criativa, devolvendo-o a um estado original de busca pelos sentidos da vida.


O homem que dorme profundamente está mergulhado em seu universo subjetivo, admitindo sua vulnerabilidade frente a algo maior do que a sua capacidade de raciocinar: o próprio universo. O tronco seco e quase morto é a representação metafórica da razão, agora envolta por forças antes desprezadas. Ao lado do homem inconsciente é possível identificar um cajado. Esse elemento, respeitando essa mesma linha de análise, também é um signo representativo do ser humano que abandona o controle (o cajado é um instrumento de guia) e entrega-se ao desconhecido. A natureza, importante que se diga, não é retratada como ameaçadora, mas toda a sua imponência e força, bem como sua beleza, parecem reivindicar ao homem a sua postura de protagonista. A tempestade que se arma no céu é, talvez, a reprodução metafórica do próprio inconsciente do ser humano que revisita lugares nebulosos e sombrios em busca de um novo despertar.


"Drinkstone Park", obra do artista inglês Thomas Gainsborough, foi composta em 1747. Dois anos mais tarde nascia na Alemanha o poeta e dramaturgo Johann Wolfgang von Goethe, ícone do movimento romântico nas artes. O homem que dorme em meio à natureza é a representação pictórica do personagem clássico da dramaturgia de Goethe: Fausto. Fausto abandona a cátedra da universidade em busca do verdadeiro sentido da vida. O pacto com Mephistópheles, o demônio, nada mais é do que o mergulho particular nas forças do inconsciente sombrio e a permissão para jogar-se nas experiências físicas da natureza. Esse processo evidencia que o conhecimento e a sabedoria estão além dos métodos racionais de compreender o universo. O próprio universo, quando vivenciado sem a pretensão de querer classificá-lo ou qualificá-lo, representa toda a fonte do saber. O homem de Thomas Gainsborough rende-se à poesia natural que o envolve. Essa renúncia o inclui como parte constituinte das forças naturais, o que o torna, também, um agente criador e criativo. Muito mais do que uma paisagem, "Drinkstone Park" pode ser lida como um verdadeiro tratado sobre a condição humana.

Francisco Egydio de Carvalho. 2005