sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

(RE)CONEXÃO

O homem mais forte é aquele que está mais só.

Começo pelo fim, pela última frase proferida pelo Dr Sotckman, personagem criado por Henrik Ibsen (1828 – 1906) em sua obra prima da dramaturgia universal, O Inimigo do Povo. O desligar dos refletores combinado com o movimento final da cortina decretam o encerramento do espetáculo. A frase decisiva, no entanto, permanece a ecoar pelo espaço, agora preenchido pelas luzes frias da platéia. Enquanto o público caminha calmamente em direção a porta de saída, recobrando a cada passo a inelutável consciência da realidade, o palco mergulha na penumbra, torna-se vazio e quieto anuncia o término da ilusão. Nos camarins os atores desvestem-se e tornam a vestir, agora aprumados para enfrentar o mesmo cenário em que o espectador atua como protagonista. O teatro permanece no silêncio absoluto e é justamente nesse vácuo de estímulos que é preciso fazer retornar o homem, não o ator travestido de personagem, mas o espectador, aquele que de forma intuitiva procurou as luzes da realidade enquanto dava as costas para o palco já sem vida. Posicioná-lo sob o tablado, sozinho, sem disfarces ou máscaras e confrontá-lo com uma imensidão de fileiras de cadeiras vazias, eis o desafio.

O que é mais angustiante, ver-se sozinho defronte um espaço absolutamente desabitado ou notar-se como o centro das atenções de uma platéia repleta de semelhantes? A solidão parece mais convidativa em um primeiro momento já que a dúvida de o que fazer? causada pelo embaraço de ser apontado estaria eliminada. Atuar como protagonista nunca é fácil, melhor seria optar por compor como mais um rosto na platéia – aquele que sequer necessita ser notado – e se o destaque fosse algo inevitável que coubesse ao menos um papel menor, um coadjuvante, talvez um figurante. O ideal seria permanecer só, livre dos olhares alheios. Voltamos então a primeira opção.

Ficar a sós é perceber a si próprio como possibilidade, como potência. Antes, no entanto, faz-se necessário se conhecer e, para tal, não há outra alternativa a não ser colocar-se em experiência, em ação. O espectador abandonado sobre o tablado experimenta, longe dos olhares curiosos, a angústia que figura como matéria prima do trabalho do ator: a dúvida, o vazio. O ensaio funciona para o ator como um laboratório de experimentos em que o saber racional deve ser necessariamente convertido em saber sensível, em pulsação em forma de matéria. Aquilo que se sabe não é suficiente para tornar vivo algo que se queira expressar e, portanto, é imprescindível que o conhecimento acumulado seja desprezado em favor da dúvida, da insegurança de tentar traduzi-lo através de um mecanismo físico-corporal. O corpo deve ser colocado a prova para que o conhecimento se transforme em sensação e a partir daí conferir legitimidade aquilo que antes se apresentava como hipótese. Esse processo, experimental por excelência, contesta permanentemente os resultados alcançados e os força a serem colocados a prova tantas vezes quanto o ator decidir apresentá-los ao espectador. O ator não pensa em cena, o ator age. O que o espectador observa não é senão o ator em ação. O pensamento, as abstrações, as conjecturas, as elucubrações são todas ferramentas importantes, mas não para o ator que posta-se defronte ao público. O pensar do ator se faz em movimento, em gesto e por isso mesmo seu ato não resume-se as fronteiras do intelecto, mais do que isso, o ator pensa com (e para) o corpo. A palavra, veículo da idéia, não reina soberana através da articulação verbal mas, ao contrário, prescinde de todo o organismo corporal – mãos, braços, tronco, ventre, etc – para que o que é dito se torne plausível e verdadeiro aos olhos de quem vê. Um simples tonos muscular desatento ao conteúdo de uma frase seria suficiente para destruir toda a tese de uma idéia e levar o espectador a duvidar da personagem. Nesse caso o ator falha por desconsiderar o corpo como canal e veículo de construção de significados. Não é portanto falso afirmar que o dedo do ator estava em concordância com o rosto ou que, infelizmente, os joelhos não souberam transmitir corretamente a mensagem tão bem articulada pelo direcionamento do olhar. O organismo é quem pensa e quando é possível identificá-lo como agente expressivo naturalmente desviamos o olhar daquele ator verborrágico que ainda defende seu lugar ao púlpito da oratória. Uma vez que a palavra complementa o corporal ela própria se torna corpo, transformando a idéia em matéria visível aos olhos. Por conseguinte, o corpo vivo aproveita a idéia proferida pelo intelecto como combustível para fazer da imaterialidade algo possível de ser compreendido pelos sentidos. A razão do artista, dessa forma, não está condicionada a um forçoso exercício conceitual que esgota-se em seu próprio ofício de pensar. O ator, assim como todo e qualquer verdadeiro artista, transmite e constrói seus pensamentos pelo sensível – através do corpo – que torna-se visível no espaço, a disposição de todo aquele que esteja disponível para absorvê-lo. O conceito, a idéia, a atividade intelectual pura e simples não pode ser descartada porém esse departamento só poderá ser trabalhado enquanto tal pelo espectador na platéia. Enquanto o ator pensa agindo o espectador processa tais movimentos para construir o seu pensamento racional, aquele que não pressupõe o levantar da cadeira para ser viabilizado. Façamos, pois, uma pequena consideração. Na medida em que somos inevitavelmente indivíduos diferentes – a própria palavra indivíduo já denota a especificidade do sentido de único – diferença essa que pode ser confirmada simplesmente através da análise da superfície corporal que atua como impressão distinta de pessoa para pessoa, seria de se esperar que o processamento racional também resultasse em um produto autêntico e distinto. Uma vez que o intelecto é parte integrante do corpo, não há porque duvidar de tal assertiva. Assim como o desempenho de dois atores levará ao espectador duas versões diferentes de Hamlet, visto que o trabalho corporal de cada um delimitará a maneira como a interpretação e o entendimento serão conduzidos, os diferentes espectadores também farão uso de suas especificidades como filtro de suas respectivas ponderações racionais. Essa teoria é pressuposto básico quando tratamos do campo da arte. Compete-nos, no entanto, evitar adentrar no estudo semiótico das significações, o que nos levaria a outros horizontes para somente identificar que a arte, enquanto expressão e também terreno de construção de conhecimentos, trabalha com o instrumental sensível (o que inclui o raciocinar como parte integrante do sentir) para produzir diversas leituras únicas de um mesmo tema abordado. Porém, o que funciona dentro do âmbito artístico parece não fazer efeito em grande parte do contexto da vida cotidiana.

No distante século XVII, período em que os atores ainda eram parcamente iluminados pelas chamas de velas, um distinto espectador de nome René Descartes (1596-1650) levantou-se de sua poltrona interrompendo o espetáculo e bradou em alto e bom som: liberdade ao intelecto. Dito e feito. O argumento era simples e, de certa forma, coadunava-se com o princípio por ele encampado: a idéia deve prevalecer como método para que o corpo responda de forma eficaz e única ao seu estímulo. O restante do público passou, então, a receber cartilhas explicativas que traçavam o percurso dos atores que, agora, já não mostravam-se tão surpreendentes em suas performances. O mistério fora solucionado e bastava um treinamento racional para antecipar as surpresas do acaso e, sobretudo, eliminá-las em função da precisão do raciocínio. As diferenças de interpretações não importavam mais já que o urgente estava em uma compreensão unívoca do que ocorria em cima do palco, recurso esse que possibilitava uma unidade sólida de sentidos. As especificidades abriam caminho para a totalidade que, quando originada a partir de um argumento preciso, não deixava margens para contestações. Deste momento em diante o corpo desligou-se do intelecto que sem cerimônias passou a figurar como único protagonista. A platéia transformou-se em claque, as sensações tornaram-se previsíveis e o ator desvestiu sua máscara para palestrar aos novos pupilos de rosto nu, sem disfarces. Ele próprio, o artista, elevou o verbo como instrumento pregador de teorias e disciplinas. Todos entendiam tudo graças a fórmulas e procedimentos anteriormente elaborados. Estava oficialmente inaugurada a ciência moderna, espetáculo que ainda hoje em cartaz arrebata multidões para as salas de apresentação.

Tal mudança de eixos é justificada a partir do desejo incontrolável de se alcançar a verdade dos fatos. Chegar até a verdade pressupõe a instauração de consensos que, por sua vez, possibilitaria a união de forças em uma direção já programada. O terreno fértil das abstrações ganhou força sob os auspícios do progresso culminando com o império glorioso da tecnologia. Não vamos pois, com o perdão da semântica, negar os inegáveis benefícios da ciência. Imaginemos que para empurrar um caminhão pesado sejam necessárias várias mãos. O importante é levá-lo até o topo da colina e, para isso, nenhum sacrifício deve ser poupado sob pena de a recusa implicar a privação dos benefícios provenientes do usufruto da carga do veículo. Acontece que, por alguma ironia do destino, as mãos que empurram o caminhão não conhecem ou não fazem a menor idéia do que consiste o conteúdo dessa carga que tanto peso produz. O motorista, porém, de posse de uma retórica afiada consegue incutir na consciência daqueles ignorantes que o peso que ajudam a empurrar será de grande valia para suas vidas. Está formado o consenso: é necessário empregar uma certa quantidade de força física em uma mesma direção para que o objetivo seja alcançado. Simples e dirteto, sem margens para contestações. A idéia e o raciocínio sobrepõem o esforço brutal que o organismo é obrigado a fazer com vistas a uma recompensa futura. Ocorre que, de fato, o produto dessa carga, depois de distribuído aos operários braçais, transmite um certo alívio no que se refere ao custo benefício de tê-la empurrado por horas a fio mas, por outro lado, ninguém cogita o porquê de o caminhão não ter feito uso de seus motores para que o trajeto até a colina poupasse o suor dos homens. Talvez o real sentido de todo esse esforço não estivesse na distribuição da carga para aqueles que a ajudaram a empurrar mas sim na sagacidade do motorista que precisava economizar combustível – e que dispunha de uma carga dispensável unicamente como subterfúgio para alcançar o seu intento. A esperteza do condutor está em submeter o músculo dos trabalhadores a uma recompensa forjada pela idéia de seu valor. Enquanto o corpo padece, mesmo com todos os sinais visíveis de que o peso supera a possibilidade de transpô-lo, o sentido último da recompensa faz anestesiar as respostas corporais. A viagem segue tranqüila e todos, aparentemente, satisfazem-se com o que receberam.

A dominação sobre o homem se dá pela consciência. O corpo não é capaz de mentir porque ele próprio reconhece antes mesmo de a razão querer compreender que aquilo que o faz mal deve ser evitado. Não é preciso submetê-lo a cartilhas explicativas para que o corpo entenda que a aproximação da mão ao fogo pressupõe um prejuízo certo. O domínio racional, por outro lado, uma vez separado das conexões nervosas que o compõem como saber sensível sabota a si próprio na crença de que o seu exercício intelectivo pode superar as aflições da carne ou, ainda pior, justificá-las. Aquilo que é estritamente conceitual, ou seja, formulado a partir de mecanismos argumentativos encerrados no campo da abstração, consegue mais facilmente obter consensos porque no instante em que a razão abandona sua necessidade de se espelhar no espaço como matéria sensível ela própria passa a se auto intitular como verdade única. Uma verdade, diga-se de passagem, relativa e tendenciosa, normalmente justificável apenas como desejo pessoal de quem a formulou. E quando a referência passa a ser aquilo que é dito e não vivido qualquer um com alguma habilidade discursiva está apto a reunir ao seu redor legiões e mais legiões de trabalhadores braçais que, por alguma defasagem de conhecimento sensível, cedem as tentações do discurso. O que é tido como absoluto, incontestável, irrevogável só adquire esse status de inviolabilidade dentro da esfera das idéias já que a consistência da matéria é por natureza transitória. E a vida, enquanto resultado de um ciclo contínuo de movimentos, se dá a partir e através da matéria. O corpo – representante supremo da vida em forma de matéria, por obediência as conjecturas conclusivas da razão instrumental, atrofia seu registro sensível em função de estímulos mecânicos que processam tecnicamente as mensagens do intelecto. O organismo deixa de pensar para simplesmente responder. Corpo e mente separados tendem a afastar o sujeito de sua própria essência, aquela que não pode ser compreendida senão pela multiplicidade de fatores que a fazem funcionar. A especialização técnica decreta a morte do sapateiro que antes detinha a sabedoria e a sensibilidade para produzir sapatos, respeitando todas as etapas de seu ofício – desde o recorte do couro até a amarração dos cadarços – como estágios complementares de uma criação única. A produção em série, mascarada em forma de progresso, eleva ao palco o ator falastrão que julga-se no poder de arrebatar multidões pelo intermédio de números pré fabricados. E o seu sucesso é a prova de que o espectador também perdeu a referência de como reconhecer e reagir como organismo vivo. É preciso tomar o caminho de volta e, para tanto, a arte e a educação aparecem como trilhas indispensáveis em direção ao destino de (re)conexão entre corpo-mente.

Arte e educação, ambos departamentos supremos da expressão humana, levada a cabo através da construção de conhecimentos, tem como importante qualidade a inclusão do indivíduo como elemento primordial dentro do seu processo de funcionamento. O trabalhador braçal, aquele que responde anestesiado ao apelo sedutor da abstração, é pinçado para fora de seu torpor inconsciente e, através da recusa ao consenso, principia uma jornada solitária em busca dos sentidos e significados individuais que o fazem reconhecer humano. Esse percurso, no entanto, só encontra terreno fértil caso o pensar seja viabilizado a partir de uma perspectiva sensível em que aquele que se dispõe a jornada possa trilhar ele próprio o seu caminho, experenciando em cada paragem a aplicação prática daquilo que lhe é oferecido como disciplina em sua própria trajetória de vida. Dessa maneira, a arte e a educação transformam-se em ferramentas emancipadoras para que o indivíduo prevaleça sobre qualquer tipo de consenso abstrato, normalmente sob a forma de teorias ou leis universais. O indivíduo emancipado não acumula conclusões e muito menos intenta divulgá-las como fórmulas da verdade, ao contrário, verifica a procedência do que é dito para que uma idéia só faça sentido quando engendrada dentro de um universo particular. Tem-se, portanto, um indivíduo na verdadeira acepção da palavra que, ao inverso do que se possa imaginar, não recolhe-se em suas convicções mas abre-se para o mundo através do que ele pode lhe oferecer enquanto possibilidades. Retornamos a Ibsen:

O homem mais forte é aquele que está mais só.

Porém, ao mesmo tempo em que uma vacina tem a propriedade de proteger o organismo das mazelas da doença, uma dose desmedida de seu conteúdo pode produzir o efeito contrário e causar os prejuízos a que se propunha evitar. A palavra grega “Pharmacon”, seguindo o mesmo raciocínio, reúne na mesma raiz semântica dois significados possíveis e distintos: antídoto e veneno. Arte e a educação apresentam-se como ferramentas capazes de impedir o embrutecimento do homem através do resgate entre o vínculo lógico-abstrato dos conceitos gerais e o universo material-sensível particular. O perigo não está na “dose” de arte administrada ou na quantidade de exposição a que o indivíduo se submete aos métodos de ensino. A bem da verdade, por influência de um mercado capitalista que enxerga o dinheiro como fim último de qualquer esforço plausível, artistas e educadores podem facilmente mascarar a urgência de satisfazer vaidades pessoais através de uma pretensa forma de expressão orgânica e viva. Ao seguir por essa via de conduta, arte e educação reforçam a clausura do corpo em um invólucro sensório, mas não sensível, que não faz outra coisa a não ser reverenciar conceitos abstratos da moda contemporânea, tais como, dinheiro, fama, sucesso, destaque, beleza física, etc. Professores transformam as cátedras em consultório de terapia na tentativa, sempre frustrada, de reverterem a falta de auto estima roubada pelo mercado. Os alunos, por sua vez, mergulham na anestesia de um ambiente destituído de interesse para somente cumprir etapas até recolherem suas recompensas em forma de diplomas. O ator desfila em cima do palco o seu virtuosismo técnico que, ao fim, serve tão somente para fazer ressoar os aplausos dos espectadores, já há muito distantes de qualquer aproximação sensível com o que é visto. Enquanto os aparatos de malabarismo são guardados no camarim, o público retorna para casa satisfeito por ter consumido cultura. A medida em que a arte e a educação adquirem o status de moeda de troca todo o esforço por incluir o indivíduo dentro de um ambiente de (re)conexão com o seu universo de conhecimento sensível é desperdiçado.

A arte, por princípio, não segue os preceitos da utilidade. A expressão artística não deve ser justificada por outra coisa senão por ela própria. O ator que arrebata a platéia com sua emoção só alcança esse estado de comunhão porque o que importa para ele é o momento da criação, o instante da entrega que eleva sua arte como expressão suprema. Questionamentos tais como, para quê? Como? Por intermédio de que? desmancham-se em razão da presentificação de um corpo repleto de sentidos que faz-se compreender por si só, em movimento. O saber sensível, instrumento básico do ator vivo, não precisa de ponderações externas que o regule em suas ações porque o motivo de sua aplicação é particular e torna-se presente a cada instante, sem tabulações programáticas. A regra, o modelo, a técnica conceitual não servem como verdades em um terreno em que as decisões são tomadas em movimento e a partir da ocorrência dos acontecimentos. O esforço é contrário ao de estabelecer princípios gerais norteadores da conduta humana, prefere, por sua vez, destacar a singularidade do efêmero e, a partir dele, quem sabe, chegar a identificar algo de semelhante que componha a essência do humano. O ator orgânico é aquele que convida o espectador a jogar o seu jogo mostrando-o como elemento semelhante a partir do que ele lhe oferece como íntimo e particular. O processo de produção de conhecimentos se dá em ação, em experiência e o que é absorvido passa a figurar para cada espectador como possibilidade de relação com o seu universo individual. O ator, em contrapartida, recebe do espectador a sua resposta instantânea que, ainda em ação, é aproveitada como matéria prima para a continuidade de sua performance. O que é construído entre artista e público torna-se sagrado porque figura-se como único, impossível de ser reproduzido nos mesmos moldes. O tempo, ao invés de cristalizar verdades e servir como parâmetro para repetições de caminhos já percorridos, reinventa-se para acolher novos personagens dispostos a jogar com sua própria precariedade. O verdadeiro mestre é aquele que, tal como o ator, não teme adentrar o terreno do desconhecido e abre espaço para que o estudante também experimente vestir o papel de professor. O exercício da instrução, da doutrinação é o que leva a morte do espírito de ambos, aluno e professor, transformando-os em operários do saber técnico, abstrato.

Ator e professor são agentes de discursos que fazem uso da palavra, do verbo, enquanto instrumento de comunicação. A linguagem é por natureza um conjunto de vocábulos que tem na abstração seu ponto de sustentação para tornar mais próximo o homem do mundo que o cerca. A idéia, o conceito, só faz sentido quando verificada e colocada a prova e, para tanto, não há outra alternativa a não ser transportar a erudição elucubrativa (o primeiro passo pode ser perder o receio de inventar palavras extravagantes que não figuram nos dicionários oficiais da língua portuguesa) para o mundo dos sentidos. Antes do cerrar das cortinas, observemos o espectador corajoso que subiu ao palco. Tudo em silêncio, nenhum refletor em funcionamento. Os atores já desceram ao camarim e o restante do público já se foi. O olhar percorre as fileiras desocupadas e depois aponta para o cenário que a instantes atrás acolhia um universo inteiro. Cada respiração expande e dilata o corpo e o faz perceber vivo, cada movimento ganha proporções enormes. O que fazer agora? Ele não sabe, mas não há problemas em não saber, muito pelo contrário, basta prosseguir.



Francisco Carvalho. Dezembro / 2007.

domingo, 11 de novembro de 2007

QUANDO UM DIPLOMA VIRA UM ATESTADO DE DEMÊNCIA VOLUNTÁRIA!


E lá foram-se 4 anos!

"Caros alunos do 4°RTV-A e 4°RTV-C,


O Setor de Operações da TV Gazeta está oferecendo vagas para alunos de Rádio e Televisão da Cásper Líbero que estiverem se formando em 2007. Não se trata de estágio! São vagas com carteira assinada e benefícios para atividades nas áreas:

· Operador de VT, Editor de VT (linear e não linear), Operador de Câmera (de estúdio e de externa), Auxiliar de Câmera de (de estúdio e de externa), Iluminador


Será feita uma apresentação dessa proposta nos dias:

P/ 4°RTVA: 13/11- (terça-feira- período da manhã)- às 09h30

e

P/4°RTVC: - 14/11- (Quarta-feira-período da noite) - às 20h30


A apresentação será na própria sala de aula (sala 4 do 3°Andar) com a presença do Gerente deOperações da TV Gazeta, Fábio Rolfo, o professor Marco Vale e um representante do R.H. da Fundação.

Não percam! Trata-se de uma excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que vocês se prepararam por quase 4 anos.
Atenciosamente,


Prof. Marco Vale
Coordenador de Ensino do Curso de Rádio e Televisão"

URGENTE! FUTURO PROFISSIONAL EM JOGO!


Para a Coordenadoria de RTv e ao nosso Orientador do Curso,

Gostaria de saber se mesmo eu, que faltei nas aulas de como segurar cabo - ofício de cabo-man, poderia me candidatar a vaga de auxiliar de câmera anunciada pelo nosso orientador do curso. Sei que terei de demonstrar talento, perícia e, principalmente preparo intelectual (criativo e artístico) para desempenhar a função mas, acredito, mesmo que deficiente na técnica, tenho todo respaldo acumulado pela bagagem cultural oferecida pela nossa faculdade. Acho que dou conta. Caso não possa me candidatar a esse emprego em específico, gostaria de saber se tenho direito a concorrer aquela vaga de camera-man. Não me lembro de ter frequentado a disciplina: "Ei, como faz pra ligar a câmera aí"? mas também acho que posso oferecer um trabalho qualificado - de um quase recém-formado em um curso superior, basta que alguém me ensine onde é que fica o "REC" do aparelho. Quanto ao resto, se me contratarem para ser o câmera-man do programa "Mulheres", acho que não terei problemas com a minha tremedeira congênita, fiquei sabendo que lá eles usam tripé para segurar a câmera, é verdade? Isso me tranquiliza mas, ao mesmo tempo, fico com medo de que o câmera-man que faça uso do tripé necessite de um curso de extensão (ou mesmo de mestrado) para exercer o ofício. Nesse caso eu não estou qualificado, infelizmente. Enfim, me respondam por favor. Eu garanto que sou o profissional ideal para a filosofia da empresa: tenho vontade, dedicação e, um dia, quero chegar ao topo: ainda vou curar os erros de concordância da Palmirinha.

Grato.

Francisco Carvalho, o quase-recém formado em busca de uma "excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que EU ME PREPAREI por quase 4 anos".

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Tropa de Elite

mais um ótimo artigo de Bernardo Carvalho.

Fracasso do pensamento

Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia, é lógico que o bom senso não tem vez.

UM MUNDO sem reflexão, onde a violência da realidade obriga o sujeito a deixar de pensar para agir, cedendo ao senso comum, ao simplismo e ao pragmatismo cínico, recorrendo ao preconceito e a ações impensadas que antes ele condenava, quando essa mesma realidade ainda não o atingia diretamente e ele podia repetir belas teorias da boca para fora, não é um mundo menos hipócrita (como alguns gostariam), é um mundo pior. Um mundo sem arte (no qual a arte, aceitando a pecha de ilusão e perfumaria, cede ao consenso da realidade e passa a funcionar como jornalismo e sociologia) também.É nesse mundo desiludido que a representação de jovens tolos e inconseqüentes, repetindo Foucault da boca para fora, para acabar quebrando a cara na prática contraditória do trato direto com a realidade nua e crua, passa a ter um efeito catártico junto a platéias em busca de um bode expiatório.É desse mundo (o do fracasso do pensamento) que trata "Tropa de Elite": onde só é permitido escapar à violência (e deixar de ser violento) fora da realidade -tudo o que o capitão Nascimento quer, ou diz querer, é sair desse mundo (onde quem pára para pensar morre), para poder cuidar em paz do filho e da família.Gostei do filme, embora tivesse preferido o longa-metragem anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus 174". Não acho o filme fascista. Mas é inegável que, como qualquer representação da realidade, ele tem um discurso (que não é exatamente o mesmo do capitão Nascimento), a despeito de dizer que se limita a mostrar a realidade. E não é um discurso novo. É o discurso de um realismo funcional que volta e meia reaparece para dizer que a realidade é o que é. E que só os fatos (ali representados) contam.Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia (e em que a arte se esconde como discurso para se apresentar como espelho de uma realidade unívoca), é lógico que o bom senso não tem vez. A demagogia e a ira, sim. É preto no branco. Produção de subjetividade é coisa de elite irresponsável. Aqui, nós tratamos de fatos objetivos.Com o desbaratamento das idéias, este passa a ser um mundo de polarizações em torno de questões simplistas e indiscutíveis. Não se produz pensamento; tomam-se partidos. Vozes da ponderação e do conhecimento de causa -como a de Alba Zaluar, que exercita o bom senso semanalmente e sem maiores alardes nas páginas deste jornal- vão se tornando inaudíveis em meio ao bruaá dos lugares-comuns estridentes. O bom senso não aparece, porque não tem graça nem dá manchete. As idéias foram reduzidas a representações sociais. Basta que cada um fale e seja reconhecido como representante do seu grupo social (e que muitas vezes se aproveite disso para respaldar a banalidade ou a demagogia do que diz). O que conta não é o teor das idéias (em geral, as mais simplistas), mas que sirvam para identificar o lugar social de quem as manifesta no campo de batalha. Essa aparente desordem apenas encobre uma ordem geral, o consenso em torno da realidade como um campo de forças autônomo, um teatro de ação e reação, imune à reflexão e à inteligência.Foi em meio a esse contexto que bati com os olhos na recém-publicada edição espanhola dos artigos e palestras do dramaturgo francês Enzo Cormann: "Para que Serve o Teatro?" (Universidade de Valência). Na conferência de 2001 que dá título à coletânea, o autor diz que o teatro (e de resto toda arte que se preze), por ser reflexão, "consiste em reinjetar subjetividade num corpo social entrevado pelo uniforme demasiado estreito do pragmatismo econômico" -ou (por que não?) do realismo oportunista que reivindica para si uma pretensa objetividade, condenando ao mesmo tempo toda produção subjetiva à impotência e ao ridículo, como se dela não fizesse parte.Em nome de uma representação unívoca da realidade, o discurso embutido em "Tropa de Elite" (que não se assume como discurso) limita a própria possibilidade de produção de subjetividade a quem está fora desse mundo, ao diletantismo ridicularizado de estudantes inconseqüentes. Ao associar a produção de subjetividade aos ricos, aos tolos e aos irresponsáveis, como se tampouco estivesse produzindo subjetividade, o filme acaba, provavelmente sem perceber, dando um tiro no próprio pé, pois contribui para estreitar o entendimento do que num passado não muito remoto, e graças ao esforço e à resistência de grandes cineastas, garantiu ao cinema um lugar entre as artes, justamente como produção de subjetividade.

Folha - ilustrada - 6/11

domingo, 21 de outubro de 2007

Isso + Aquilo = não sei o quê!

Uma vez alguém, não lembro quem, me disse: "Você trabalha com teatro, com arte. Cultura é muito importante para todos nós mas não vejo teatro como cultura, teatro é mais uma diversão, a gente vai para se divertir, não para pensar".

Essa frase tem uma afirmação muito perigosa que não é tão exclusiva dessa tal pessoa a quem não recordo o nome. Lê-se nas entrelinhas que o teatro, sendo uma arte que prima pelo divertimento - o que eu concordo plenamente (se algum dia uma peça de teatro lhe oferecer uma sessão de sofrimento ou queimação de neurônios tal e qual acontece na sua vida cotidiana, fuja!) - não combina com reflexão. Ainda pode-se afirmar, pela frase de autoria desconhecida, que Cultura para ser definida como Cultura deve necessariamente rimar com tédio, suor na testa (neurônios queimando!!!), sofrimento (aí sim!). Isso porque, nesse caso, a arte é vista como mais uma ferramenta utilitária a disposição daquele que, não sem antes fazer por merecer, conquista seu direito de utilizá-la para tornar-se um homem melhor.

Sem dúvida que o acesso a Cultura torna o homem melhor ou, pelo menos, mais sensível em relação a sua inevitável condição de agente social, mas, é justamente na contra mão da "utilidade" que a arte encontra seu caminho para tocar seus espectadores.

Arte é contra qualquer tipo de "utilidade" porque por "util" entende-se aquilo que deve servir a um determinado fim. Arte não busca "fins" mas sim "meios" de estimular cada espectador a descobrir soluções individuais, mesmo que para tal a compreensão de um tema único seja necessário. A riqueza da arte, e, por conseguinte, a do teatro, está em não querer exigir nada de quem a aprecia e através desse descompromisso colher as reações mais sinceras que surgem de forma natural. É por isso que o teatro, e as demais manifestações artísticas, deve manter-se sempre na via do divertimento. As reações mais sinceras, autênticas e, por isso mesmo, mais aptas a provocar reflexão são aquelas que são resultado de um estímulo não impositivo. Quem se diverte (não apenas o "divertir" que é revelado pelo riso, mas toda e qualquer reação que faz com que o espectador mergulhe na obra fruída) relaxa e se abre para pensar sem ter que dar satisfações a nenhum modelo de pensamento - sem ter que responder a nenhum "fim" específico.

É por isso que arte é essencial e não apenas brincadeira de passatempo. Quem acha que o teatro é irrelevante incorre no mesmo equívoco daqueles que pensam que o homem só encontra meios de evoluir através de mecanismos pragmáticos, normalmente traduzidos pelos avanços da ciência e tecnologia.

Francisco Carvalho. 2006

A PAISAGEM DA ALMA



A paisagem da alma.
Análise da tela "Drinkstone Park", de Thomas Gainsborough


Misturando-se aos tons escuros da grama verde, um homem estendido ao chão, vencido pelo sono profundo, apequena-se diante das proporções majestosas de uma paisagem campestre. O contraste entre as sombras produzidas pelas portentosas árvores e o céu vespertino, embora tomado parcialmente por nuvens carregadas, compõem um jogo de opostos entre luz e penumbra, traduzindo o diálogo da natureza como o grande protagonista do discurso pictórico. Sob olhares menos atentos, a figura humana, provavelmente um camponês que estendera involuntariamente o seu breve cochilo, poderia passar desapercebida. A sua importância, porém, é fundamental tanto para valorizar de forma mais explícita as dimensões do ambiente ao seu redor, como também para descortinar o sentido metafórico presente na composição.


Tomemos como parâmetro o ponto de vista do observador da obra. O quadro compreende basicamente duas partes, tendo a linha do horizonte como marco divisório. O quadrante superior, embora invadido pela copa de algumas árvores à direita e à esquerda, é ocupado na sua maioria pelo céu nebuloso. Já o quadrante inferior apresenta como destaque um sinuoso tronco seco ainda postado verticalmente. Apenas alguns ramos com folhas verdes indicam o que um dia fora, talvez, a maior das árvores da paisagem. Entre o homem que dorme e o tronco seco, um caminho de terra conduz a três destinos diversos: um à esquerda, o outro para o lado oposto, ambos distantes e encobertos pelas folhagens de outras árvores e, finalmente, o terceiro destino, que parece vir de encontro ao observador da obra. Na porção central, nem tão próximo ao limite inferior da tela, nem tão colado a linha do horizonte, um lago raso de proporções médias serve de bebedouro para cinco vacas e três bezerros. Ao lado do tronco seco, colado às suas raízes, um pequeno riacho faz circular uma quantidade tímida de água sobre algumas pedras. Ainda, ao lado do homem que dorme, um cão observa curioso os animais no lago a saciar a sede.


A paisagem retratada por Thomas Gainsborough é um convite ao exercício dos sentidos. O cheiro é de terra e grama molhadas, a textura das cores e as nuvens no céu indicam que a estação das chuvas já se instalara. Quase é possível sentir por entre as mãos a consistência do barro ou imaginar o desconforto, ignorado pelo homem, de deitar-se sob uma relva ainda úmida. O quadro é regido por uma sinfonia quase silenciosa, quebrada pelo ruído distante dos trovões, anunciando a tempestade. Os passos dos animais no lago raso e a pequena correnteza do riacho embalam o sono do homem tal qual a melodia serena do final de um terceiro movimento Andantino maestoso. No momento seguinte, o ribombar dos raios e trovões, através da energia dos tímpanos de uma percussão, darão início ao Allegro prestíssimo, fazendo o homem despertar à força e livrando-o dos devaneios melódicos aos quais estava até então entregue. O observador parece testemunhar exatamente este momento de expectativa da transição, e, em uma atitude solidária, anseia por prevenir o homem do risco que corre de ser desperto por uma torrente de água. Esse é o gosto que vem à boca: água fresca.


A composição trabalha com três dimensões diferentes de tempo. Primeiro o tempo da própria natureza que combina a representação do passado distante, através do tronco seco, ao vigor das cores verdes das demais árvores (tempo atual). A própria iminência da chuva configura-se como um signo de renovação, de reciclagem da vida e, portanto, de prosseguimento ao tempo presente. O homem que dorme está imerso em um passado próximo, suficiente para transformar o seu breve cochilo em um sono profundo. Já o cão identifica uma noção temporal semelhante a da apresentada pelo observador da obra. Deitado e ao lado de seu dono, ele olha interessado para os animais no lago, evidenciando um tempo de ação corrente. O observador, ao desvendar os detalhes da obra, compactua com a mesma curiosidade momentânea do cão.


Thomas Gainsborough faz uso de sua técnica para reproduzir um cenário de poesia idílica. Nesse sentido, foge da arte como um instrumento de afirmação política ou de status social. A bem da verdade, Gainsborough era um exímio retratista, fato que o atava a uma elite intelectual ávida por ver-se reproduzida em cenas cotidianas. A sua opção pela paisagem campestre e pelo desprendimento às tradições da pintura, indicam, ainda que prematuramente, a célula original do que mais tarde iria se configurar como o movimento de revolução na estética das artes (principalmente na poesia e na música): o romantismo. Gainsborough não direciona seus esforços para reproduzir o homem como o senhor da razão, ao contrário, ele o joga em cenários naturais repletos de aromas e sensações físicas. O homem, agora, está imerso na poesia da natureza, entregue às forças primitivas. Nesse contexto, ao desprezar a razão como tema, o artista foca sua temática na relação do espírito humano com as experiências físicas que o meio natural lhe oferece. Ao abandonar os gabinetes embolorados e transferir o cenário para o ar livre, o artista estimula o resgate do homem com a sua própria essência criativa, devolvendo-o a um estado original de busca pelos sentidos da vida.


O homem que dorme profundamente está mergulhado em seu universo subjetivo, admitindo sua vulnerabilidade frente a algo maior do que a sua capacidade de raciocinar: o próprio universo. O tronco seco e quase morto é a representação metafórica da razão, agora envolta por forças antes desprezadas. Ao lado do homem inconsciente é possível identificar um cajado. Esse elemento, respeitando essa mesma linha de análise, também é um signo representativo do ser humano que abandona o controle (o cajado é um instrumento de guia) e entrega-se ao desconhecido. A natureza, importante que se diga, não é retratada como ameaçadora, mas toda a sua imponência e força, bem como sua beleza, parecem reivindicar ao homem a sua postura de protagonista. A tempestade que se arma no céu é, talvez, a reprodução metafórica do próprio inconsciente do ser humano que revisita lugares nebulosos e sombrios em busca de um novo despertar.


"Drinkstone Park", obra do artista inglês Thomas Gainsborough, foi composta em 1747. Dois anos mais tarde nascia na Alemanha o poeta e dramaturgo Johann Wolfgang von Goethe, ícone do movimento romântico nas artes. O homem que dorme em meio à natureza é a representação pictórica do personagem clássico da dramaturgia de Goethe: Fausto. Fausto abandona a cátedra da universidade em busca do verdadeiro sentido da vida. O pacto com Mephistópheles, o demônio, nada mais é do que o mergulho particular nas forças do inconsciente sombrio e a permissão para jogar-se nas experiências físicas da natureza. Esse processo evidencia que o conhecimento e a sabedoria estão além dos métodos racionais de compreender o universo. O próprio universo, quando vivenciado sem a pretensão de querer classificá-lo ou qualificá-lo, representa toda a fonte do saber. O homem de Thomas Gainsborough rende-se à poesia natural que o envolve. Essa renúncia o inclui como parte constituinte das forças naturais, o que o torna, também, um agente criador e criativo. Muito mais do que uma paisagem, "Drinkstone Park" pode ser lida como um verdadeiro tratado sobre a condição humana.

Francisco Egydio de Carvalho. 2005

sábado, 22 de setembro de 2007

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica de minha autoria.

Caro colega ouvinte. Peço a sua licença para lhe contar como me tornei um imbecil. Se prestar um pouco de atenção verá que a minha história não difere muito da sua, o que me leva a concluir que tanto eu como você formamos, juntos, dois dos legítimos representantes da raça dos imbecis. Não sou seu colega e muito menos imbecil, você responderá. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto. Eu era, assim como você, um daqueles que levantava a voz contra o poder. Refutar uma voz de comando não era difícil, confortável até certo ponto, e fazia render saborosos tapinhas nas costas. A proporção era simples: a medida em que a coragem crescia o fã-clube aumentava. Não, definitivamente não foi essa atitude que nos privou de adentrar para o rol dos imbecis. Assumir a figura do explorado, do pobre funcionário resignado pelo berro da injustiça, é o extremo oposto e o passo decisivo para alcançar o estado da imbecilidade plena. Não é preciso dizer que ambos, eu e você, demos as mãos também nesse quesito. É verdade que há aqueles que mal percebem tudo isso e que fazem questão, seja por qual razão for, de postarem-se bem debaixo dos impropérios dos arrogantes. Estes também são imbecis mas pelo menos não sabem que o são – sei que você há de concordar que a ignorância a respeito da própria imbecilidade é uma benção. Não é o nosso caso. Se você continua comigo até esse instante é porque ambos, eu e você, compartilhamos do grupo que carrega a consciência como um fardo. Sempre fui correto, exemplar até. Aluno de excelentes notas, desde cedo aprendi a cumprir da melhor forma possível o que me era solicitado. Os bons empregos no tão sonhado mercado de trabalho foram conseqüência, encher os bolsos de dinheiro uma questão de tempo. É verdade também que aquela centelha de bravura, típica dos espíritos juvenis e inconseqüentes, as vezes insistia em arder silenciosa no meu peito como uma advertência surda de que “aquilo não estava certo”. Rapidamente notei que bater de frente com os burocratas imbecis era o mesmo que assinar o meu diploma de perdedor. Como, nessa altura do campeonato, já não podia me dar ao luxo de encarar a vida como um artista que depois do fechar das cortinas não sabe se no dia seguinte haverá espetáculo, resolvi fazer uso da minha formação imbecil para tornar-me o quanto antes um verdadeiro imbecil de carteirinha. E eis que aqui estou, respirando o mesmo ar que você, enxergando as mesmas coisas que você, ouvindo as mesmas coisas que você. Como é gratificante repousar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila de que os cadarços percorreram corretamente os furinhos do sapato. Que sapato é esse? Não me pergunte, eu apenas passo os cadarços pelos furinhos, essa é a minha função. Depois de um tempo com o carimbo oficial de imbecil estampado na testa notei que não havia vergonha ou mal algum em ser imbecil. Afinal, em alguma medida todos o são. Talvez você me compreenda melhor porque a sua imbecilidade é semelhante a minha mas, acredite, há tanta imbecilidade no mundo que ser imbecil já não é privilégio para poucos. Tornou-se comum, nada surpreendente. E aí é que está o perigo. Eu e você não somos desequilibrados. Desequilibrados sempre existiram e estão por toda a parte. Nossos subúrbios tranqüilos pululam de pastores, reitores e catedráticos dispostos a disseminar suas sandices para cinqüenta, duzentas, mil pessoas – depois esse mesmo Estado que se serviria deles sem pestanejar como forma de se auto suster os esmaga como mosquitos empapados de sangue. Esses homens doentes não são nada, e se deixam seus nomes marcados na história não é por mérito próprio. Nós somos os responsáveis, os amarradores de cadarços, pessoas comuns, pessoas ingênuas de caráter e imbecis por falta de opção. Homens imbecis como eu e como você, eis o verdadeiro perigo, funcionários silenciosos da indústria da mediocridade. Sem o nosso exército dos imbecis, esses loucos dissonantes não seriam mais do que fantoches desarticulados. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você. E, se não está convencido, inútil prosseguir. Você não entenderia nada e se aborreceria, sem lucro nem para você nem para mim. Como a maioria, eu nunca pedi para me tornar um imbecil. Se pudesse, teria optado por algo sublime, algo que engrandecesse meu espírito, talvez a música. Sim! A música!*

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica escrita por mim e inspirada na obra "A Revolução dos Bichos", de G. Orwell. Há no texto algumas pequenas transcrições de trechos da obra "As Benevolentes", de J. Littell.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Quando o "Isso" não vem depois do "Aquilo".

Transcrevo abaixo um trecho maravilhoso de um dramaturgo contemporâneo francês, Michel Vinaver, que acaba de ter duas de suas peças editadas no Brasil pela EDUSP. Penso que o conteúdo é bem apropriado para nós, humanóides modernos que ansiamos desesperadamente por buscar as razões (começos / meios / fins) de qualquer coisa que passe pelo campo esclarecedor (será?) do intelecto. Aí vai:

"Não se preocupe nada por baixo das superfícies; são elas o segredo. Não há não-dito: tudo é dito. Sobretudo nos intervalos, no espaço entre objetos da fala - palavras, frases, réplicas -, que não são vazios, mas o branco nas telas de Cézanne. E nada de ponto de vista globalizador, redução do texto a uma moral ou mensagem. Todos os pontos de vista são válidos, sem hierarquização, sem julgamento. Não há denúncia do sistema, há desmonte. Há ironia; como decalagem entre aquilo que se espera e aquilo que realmente vem, num encadeamento inesperado das réplicas, ou das situações, no plano molecular da conversação banal do dia-a-dia. Não se cave uma profundidade, nem mesmo psicológica. Pois não há um antes e um depois. Vale o presente imediato e urgente. São peças-paisagem, sem o encadeamento causa-efeito das peças-máquina, sem progressão cronológica visando ao desenlace. Sem desenlace no sentido convencional, a peça tem que parar, eis tudo; o último instante não vai se suceder de um outro. Trata-se de uma estrutura musical de temas e suas variações, num ir e vir rítmicos. Para a captação do instante em sua fulgurância desnorteante numa realidade mutante. Uma sucessão de instantes em conexão, mas não subordinados, que desautoriza os termos "cena" ou "ato"; temos peças em pedaços, em fragmentos. É a realidade fragmentada da vida em estado bruto, como se dá no cotidiano".*


*Prefácio de "Dissidente / O Programa de Televisão" - duas peças de M. Vinaver. EDUSP, 2007. Tradução de Catarina Sant'Anna.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

DOIS TEXTOS INDISPENSÁVEIS SOBRE O PAPEL DA ARTE.

Inutensílio


Paulo Leminski



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A ditadura da utilidade
A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. Tudo tem que ter um para quê, desde que os mercadores, com a Revolução Mercantil, Francesa e Industrial, substituíram no poder aquela nobreza cultivadora de inúteis heráldicas, pompas não rentábeis e ostentosas cerimônias intransitivas. Parecia coisa de índio. Ou de negro. O pragmatismo de empresários, vendedores e compradores, mete preço em cima de tudo. Porque tudo tem que dar lucro. Há trezentos anos, pelo menos, a ditadura da utilidade é unha e carne com o lucrocentrismo de toda essa nossa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a Bomba de Nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza.



Além da utilidade
O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas.

Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As únicas coisas grandes e boas, que pode nos dar esta passagem pela crosta deste terceiro planeta depois do Sol (alguém conhece coisa além- Cartas à redação). Fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso a estes bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro.

Coisas inúteis (ou "in-úteis") são a própria finalidade da vida.

Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que é feita de júbilo, liberdade e fulgor animal.

Cem mil anos-luz além da utilidade, que a mística imigrante do trabalho cultiva em nós, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos a todas as forças que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto tribo.

A poesia é u principio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos USA à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis.

A função da poesia é a função do prazer na vida humana.

Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico.

O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.

Existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultra-violeta ou infra-vermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida.



O indispensável in-útil
As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.

A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio.

As várias prosas do cotidiano e do(s) sistema(s) tentam domar a megera.

Mas ela sempre volta a incomodar.

Com o radical incômodo de urna coisa in-útil num mundo onde tudo tem que dar um lucro e ter um por quê.

Pra que por quê?


In ANSEIOS CRIPTICOS, Ed. Criar, Curitiba, PR, 1986, p. 58-60.

Arte in-útil, arte livre?


Paulo Leminski



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A curiosa idéia de que a arte não está a serviço de nada a não ser de si mesma é relativamente recente. Data do romantismo europeu do século XIX, apogeu da 1ª Revolução Industrial e da hegemonia burguesa, momento em que o artista se toma um desempregado crônico.

Arte e artesanato. A indústria veio para substituí-lo.

Sem função social mas ainda cheia de sua própria importância, a arte entre horrorizada e fascinada, volta?se contra o mundo utilitário que a cerca, negando-o, criticando-o, como um não-objeto feito de antimatéria.

O mundo burguês é anti-artístico. A arte não precisa mais dele. Já pode nascer a "arte pela arte".



Delícia e lição
Uma arte, uma literatura in-útil: nenhuma idéia poderia ser mais estranha à Idade Média católica, herdeira das concepções greco-latinas sobre o duplo papel da arte: "delectare", "agradar", e "docere", "instruir".

Para um europeu, letrado da Idade Média (quase sempre um clérigo), parecia a coisa mais lógica do mundo que a atividade artística e literária estivesse, como as demais atividades, subordinada a um fim educativo, edificante, a serviço da salvação da alma dos fiéis.

A obra literária tem deveres morais. Não há lugar para uma obra blasfema, sacrílega, iconoclasta, dissolvente, corruptora.

A obra de arte é a expressão de uma norma. Não um gesto criminoso.

Como os homens que a fazem, deve lutar contra o pecado.

A desmesurada liberdade da literatura ocidental moderna pareceria aos medievais o triunfo de Satanás na terra. O pecado da literatura moderna, aliás, é o mesmo de Lúcifer, a soberba, o orgulho de se declarar autônoma, além do bem e do mal.

O Renascimento italiano, cético, crítico, mundano, faz nascer uma nova concepção de arte e literatura, não mais subordinada a deveres morais ou pedagógicos. Uma arte voltada apenas para o "delectare": nasce o conceito de "Beleza", o específico artístico, independente de metas didáticas ou balizas éticas.

A reação católica da Contra-Reforma, em luta contra o protestantismo, restaurou a antiga doutrina da arte a serviço de objetivos ideológicos ou doutrinários. A "beleza" só tem razão de existir porque deve fazer a Verdade se gravar mais fundo no coração dos homens. E essa Verdade vem de fora: préexiste à obra de arte. A literatura volta a ser apenas o veículo de uma visão dada da vida e do mundo.

Não que o protestantismo fosse mais liberal em matéria de arte e literatura. Ao contrário. Lutero e Calvino eram duas mentes medievais típicas. Certas correntes protestantes chegaram mesmo a desvalorizar por completo qualquer atividade artística como sendo coisa de Satanás.

A visão utilitária da arte e da literatura prevalecerá até o século XVIII, incluindo os Enciclopedistas. A vasta obra literária de Voltaire está a serviço das "Luzes", do trabalho de esclarecer as mentes, ridicularizar o preconceito, desmistificar a superstição. Voltaire não é um poeta, tal como entendemos a palavra hoje, uma consciência problemática expressando em palavras seus conflitos. É um educador, um pedagogo, que usa os recursos da literatura para ilustrar certos princípios "morais".

Com a Revolução Francesa e o fim do Antigo Regime, dissolve-se o difícil equilíbrio entre o autor e seu público, entre o autor e seus mecenas ou protetores.

De agora em diante, entregue aos acasos do mercado, o escritor está no mato sem cachorro.



A via francesa
A doutrina da "arte pela arte" foi formulada, pela primeira vez, com todas as letras, na França do século XIX, pelos poetas parnasianos e simbolistas (Gautier, Leconte de Lisle, Baudelaire, Mallarmé). Era também o credo que inspirava o desesperado artesanato estilístico de Flaubert.

Sua formulação foi sentida pelos artistas como uma verdadeira inovação, a libertação da arte de quaisquer compromissos com o não-artístico, a moral, a política, a exaltação patriótica, a tradição nacional, o Bem, a Verdade.

Na literatura romântica, ainda havia uma tensão moral interna que, na França, teve sua grande expressão na caudalosa produção poética de Victor Hugo, hoje pouco prezada (mal conseguimos compreender o verdadeiro endeusamento de que Victor Hugo foi objeto em vida).

Significativamente, a evolução da poesia moderna, em fins do século XIX e inícios do XX, deriva diretamente desses cultores da "arte pela arte": a poesia moderna não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé.

Isso se deve principalmente ao fato de que esses poetas, libertados dos lastros morais ou patrióticos, puderam fazer a poesia avançar tecnicamente, em termos de linguagem, até os extremos limites, de que o "Lance de Dados" de Mallarmé é o paradigma último.

Descendendo deles, a poesia mais significativa do século XX nasce da "arte pela arte". Da arte como inutensílio. Não como veículo de princípios "superiores" ou "maiores".

Por essa razão, boa parte da melhor poesia deste século é poesia sobre poesia, poesia crítica, poesia tendo o próprio poetar como objeto de inspiração. Metalinguagem, como se diz no jargão técnico. Mesmo quando tem uma "motivação moral" por trás (o que é inevitável, já que o homem é um ser político, logo moral).

A doutrina da arte pela arte é uma decorrência natural da sobrevivência da arte numa sociedade regida pelo mercado.

No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. Um afresco renascentista na parede de uma Igreja é um complexo composto ideológico, pulsando de tensões morais e intenções de envolvimento coletivo. Um quadro de Manabu Mabe na sala de um banqueiro é apenas um complemento do tapete e do padrão dos sofás. A burguesia saudou a liberdade formal da arte moderna, comprando-a. Transformando-a em mero artesanato: Qualquer artista bem informado de hoje sabe que a arte já acabou. O que continua existindo é artesanato (ou industrianato).

Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa transformação em mercadoria eticamente neutra, buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas, técnicas e sintáticas.

Ornamento e mercadoria, a linguagem da pintura moderna perdeu todo o impacto subversor das vanguardas do início do século (expressionismo, fauvismo, futurismo, cubismo, surrealismo, abstracionismo geométrico, tachismo). Ao ouvir falarem arte moderna, o burguês puxa o talão de cheques.

Mas uma arte resistiu com particular vigor a essa comercialização.

E essa foi a literatura, a arte que tem a palavra como matéria-prima. Em especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência plena, máxima, substantiva.

Nem era de admirar. Signicamente, as artes são feitas com ícones (cores, sons, melodias, ritmos, movimentos corporais). A literatura, a poesia, é a única arte feita com símbolos (palavras que o poeta, alquimista, tenta transformar em ícones).

Ora, um ícone, uma cor pode ser a-moral e "a-política".

Uma palavra não pode.

Pra começo de conversa, uma cor é um valor universal, independente de raça, época ou lugar. Uma palavra, toda palavra pertence a um idioma particular, historicamente determinado no espaço e no tempo, o mais pesado lastro coletivo que o homem pode carregar. Falar basco na Espanha ou gaélico na Irlanda é um gesto, em si, político (as nações deveriam coincidir com o espaço de uma língua ou dialeto).

Cada palavra tem sua história, sua biografia, sua etimologia.

Seu uso deflagra uma constelação de sub-significados e sentidos que, em cada idioma particular, tem certo desenho próprio e intransferível.

A palavra é, essencialmente, política. Portanto, ética.

Daí, talvez, a dificuldade de transformar a literatura, a poesia, em mercadoria.

Na ficção, o ramo comercialmente mais próspero da literatura, não é a palavra a verdadeira mercadoria. E o enredo, a trama, o entrecho, vale dizer, desenhos, isto é, ícones. Aquelas coisas que Brecht queria, em vão, vender, entrando na fila dos roteiristas de Hollywood...

O puro valor da palavra está na poesia. Por isso, é sempre considerada mercadoria difícil. "Poesia não vende" é um dos mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado.

Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da renitência das casas editoras em publicar poesia. Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última trincheira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria, tentações a que tantas artes sucumbiram prazeirosamente.

E não deixa de intrigar o fato de a doutrina da "arte pela arte" ter sido formulada, exatamente, por poetas. Não por pintores, nem por romancistas.

Transformada em mercadoria, a obra de arte é transformada em nada.

Os teóricos da "arte pela arte" apenas recolheram essa maldição. E lhe deram sinal positivo.

Desde então, a arte está em conflito direto com o mundo. A melhor arte do século XX é um gesto contra o mundo que a rodeia. Uma negatividade.



A via russa
"Acontece comumente que os autores de romances, mesmo tratando, aparentemente, de combater os vícios, apresentam-nos com tais cores que por esse mesmo fato fazem com que os jovens se sintam atraídos por vícios dos quais conviria não falar. Qualquer que seja o mérito literário dessas obras, elas só podem ser publicadas se tiverem em vista um fim verdadeiramente moral".

"Mutatis mutandis", a frase poderia ser assinada por qualquer autoridade cultural soviética (ou socialista) de hoje. Basta substituir "moral" por "coletivo", "socialista" ou "revolucionário".

Mas a frase é do conde Razumovski, ministro da Instrução Pública da Rússia, em 1814, justificando a proibição de um romance que satirizava a sociedade aristocrática da época.

Tanto da parte do governo quanto da parte dos escritores, a extraordinária literatura russa do século XIX (Gogol, Tolstói, Dostoiévsky, Turguiênev, Tchékov) é uma literatura, sobretudo, moral. E a consciência social do povo russo, uma literatura de acusação e denúncia, de resistência e responsabilidade coletiva.

Caráter moral: nisso, os poderes e a oposição estavam de acordo. Só os sinais estavam trocados. Ao forçoso e forçado moralismo da censura czarista, os escritores russos reagiram com um moralismo oposto.

O grande momento reflexivo dessa afirmação russa do caráter moral da literatura é "O que é Arte", de Tolstói (de 1898).

Nesse ensaio implacável, o autor de "Guerra e Paz" denuncia a "degenerescência" da arte moderna, em particular, a doutrina da "arte pela arte", à luz de critérios éticos e "humanos". Para Tolstói, toda a arte e a literatura de sua época lhe parecem manifestações patológicas de sensibilidades decadentes e "desumanas". Repugna-lhe seu "ocultismo", sua tendência à criança de seitas e "panelinhas" fechadas. No rigor das suas exigências, expressa cabal repúdio a Balzac, Flaubert, Zola e os Goncourt, enquanto exalta a ficção de Dickens, Victor Hugo e Dumas pai... Sobre os poetas, Baudelaire, Mallarmé, seus juízos são mais severos ainda.

Esse caráter ético da literatura russa vem do século XIX e continua, quase intacto, na literatura soviética: a Revolução apenas herda do czarismo o utilitarismo artístico e literário. Nesse aspecto, a literatura do povo russo apresenta uma rara unidade de sentido.

De Razumovski a Tolstói, chegamos a Plekhânov, o introdutor do marxismo na Rússia: a mesma postura "utilitarista", moral, anti-arte pela arte. Seu "A Arte e a Vida Social", conferências de 1912, repete, em nota marxista e proletarizante, a argumentação de Tolstói.

Nessas conferências, cujo brilho não pode ser negado, Plekhânov conduz o julgamento da "arte pela arte", à luz dos seus condicionantes de classe. O que em Tolstói era moral, em Plekhânov é político.

Descontados os detalhes, essa visão da arte e da literatura prosseguiria por toda a era soviética, stalinismo adentro.

Importa muito observar ainda como essa visão russa da arte impregnou a estética e a poética do socialismo em geral. Uma postura ideológica marxista do mundo parece ser indissociável de uma visão utilitária e utilitarista da arte, nas antípodas da "arte pela arte".



Adorno: "Arte pela arte" de esquerda
Felizmente, a visão marxista da arte não parou nos maniqueísmos moralistas de Plekhânov, produzindo com Adorno (Theodor W. Adorno) uma espécie de síntese dialética entre o inutensílio da "arte pela arte" e o compromisso ético e político de viver revolucionariamente uma dada circunstância histórica.

Expoente da chamada Escola de Frankfurt, Adorno já é um contemporâneo de Walter Benjamin e Brecht. Sua reflexão teórica se volta para um capitalismo numa fase muito mais adiantada que a de Plekhânov. Comparado com Plekhânov, Adorno reflete a) num meio intelectualmente muito mais sofisticado e b) numa circunstância não-revolucionária.

Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um "objeto não identificado". Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma "negatividade". Ela é "a antítese da sociedade". A antítese social da sociedade.

Para Adorno, crítico eleitor agudíssimo das contradições do capitalismo, a arte só tem uma razão de ser enquanto negação do mundo reificado da mercadoria. Vale dizer, enquanto inutensílio.

A tensão ética da obra está nesta recusa em virar mercadoria.

Misteriosamente, os defensores da "arte pela arte" tinham razão.


In ANSEIOS CRIPTICOS, Ed. Criar, Curitiba, PR, 1986, p. 29-34.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

SOBRE SAPOS.

Depois de hoje, me ocorreu a seguinte reflexão:

O que é “aceitável”? O que é “permissível”? Quais botões devo apertar para me assegurar de que aquela determinada luz irá acender? E quais aqueles que devo prioritariamente evitar a título de receber em troca um sinal de “PERIGO”? Como mapear o terreno a ponto de que eu tenha a tranqüilidade suficiente para receber uma resposta minimamente programada? Como respirar aliviado ao saber que o meu estímulo encaixou-se em um retorno “degustável”, ao invés de parar atravessado na garganta de alguém? Esses questionamentos me fazem lembrar daquela máxima tão conhecida por alguns de nós, alunos, que ao longo desses quatro longos anos tentamos com nossas forças remar no contra fluxo: “O que é vendável”?; “O que é passível de audiência”? “Qual público quero atingir”?; “Será que a massa irá apreciar isso”?; “O mercado compra”?

Uma lógica cartesiana. 1 + 1 = 2. Isso mais Aquilo é igual a Aquilo outro e se Isso não for adicionado a Aquilo é bem provável que o Isso desmorone sobre o Aquilo. Estímulo resposta, causa e efeito. Não se pode mais pensar em produzir algo, em se colocar em uma atitude criativa sem antes mapear centímetro por centímetro as possíveis causas e conseqüências “Daquilo sobre o Isso”. E assim vai, medo atrás de medo, seja em razão da manutenção de um status profissional seja pelo motivo simples da busca por uma massagem alheia do ego. Ou pior, a equação da mesmice é tão corriqueira que a consciência da “indústria do que pode ser consumido” passa batida. E a lei permanece: vendeu? Passou pelo crivo da maioria? Não causou desconfortos? Sinal verde! Siga em frente! Enquanto isso, a individualidade é solapada pelo modelo.

Reportar esse contexto para a esfera do corporal é um engano. O corpo sabe, antes mesmo que você deseje querer saber, que sua mão ao fogo significa queimadura (reação de causa e efeito). O sensível é anterior ao racional e por isso o argumento não se sustenta. E é justamente no sensível que se encontra a minha busca, na tentativa de se resgatar o frescor descompromissado de um instante sem querer me preocupar com as elucubrações racionais do momento seguinte. Quero fugir da tão famosa frase: “O que você quer com isso”? Ou então: “Qual é o seu objetivo com isso”? Ainda pior: “Para que isso serve”? Todas remanescentes da tradição cartesiana, da tentativa racional de se buscar um sentido ou um fim, mesmo naquilo em que, por princípio, não se coloca na posição de utilidade. O que eu proponho é a inutilidade do instante, apenas uma história sobre sapos e, a partir dela, desfrutar do lirismo poético e do absurdo de um discurso saído da boca de sapos. Não busquem sentidos para os sapos porque os sapos não tem culpa de serem sapos e, se por alguma coincidência, os sapos se parecerem com humanos não é porque chamo os humanos de sapos (dedo em riste: “o que você quer com essa insinuação”?), mas, é simplesmente porque eu não conheço a língua dos sapos para poder traduzi-la, só restando o vocabulário dos humanos para contar a história. Humanizar os sapos é uma saída inevitável quando se quer contar uma história sobre sapos, assim como teria de humanizar o cano do meu chuveiro se quisesse contar a história de como ele sofre todos os dias com os vazamentos de água.

Não quero o racional, não quero o discurso do consenso porque não acredito na maioria (nem nas instituições!). Por isso uso a arte como a linguagem do sensível. Quero dizer exatamente aquilo que é dito e se você entendeu outra coisa é precisamente isso o que eu quis dizer. Não é preciso ir muito longe para afirmar que a linguagem da razão foi e é a responsável por inúmeros equívocos, mesmo aquela que aos olhos da maioria parecia ser a definitiva salvação para a raça humana (que já nasceu, desafortunadamente sem qualquer esperança de salvação). Não quero protestos, não quero levantar bandeiras e se você, através do meu texto, enxergou uma multidão empunhando estandartes de reivindicações é porque eu, de fato, pintei esse cenário, mas não em forma de manifesto, e sim em forma de fábula, em forma de ilusão, em forma de jogo. O texto é político porque não posso me furtar de atuar como um agente político, já dizia o nosso ancestral grego que o homem é por natureza um “zoom politicom”. Mas não ofereço um ato e sim uma sugestão, que será degustada por você da maneira como lhe convier, estou fora desse banquete.

Por fim, peço que façam um esforço para rir, para retornar ao prazer infantil do jogo e se divertirem com os sapos falantes. Não é a toa que a criança é o melhor exemplar de ator que qualquer adulto possa vir a conhecer. A criança ri do seu choro e chora do seu riso porque ao mesmo tempo em que se leva a sério ela sabe, em igual medida, que tudo não passa de uma grande brincadeira. E isso é uma atitude crítica que é perdida na maioridade. Todos se levam a sério e buscam justificativas naquilo que não precisa ser justificado. Aí começam os equívocos porque é nesse exato momento em que as individualidades esfarelam-se no rio dos modelos (DO MERCADO BROADCAST). Perde o homem que não consegue se enxergar na sua precariedade, imaginando-se único e poderoso, perdem os sapos que, dessa maneira, permanecem no anonimato.




Francisco Egydio de Carvalho.



4/09/2007.

PEQUENA FÁBULA

O Pequeno Príncipe vai à Universidade.

Prólogo.

Narrador:
“Quando o vento ao folhear gentilmente o manual de gramática espalhou pelo ar um conjunto de pontuações, mal sabia ele que o que o sapo engolira, depois de esticar a sua enorme língua, era uma vírgula e não um içá...”

“Não que o sapo tivesse desaprovado a refeição, muito pelo contrário, tratou logo de pedir ao vento que espalhasse letras que, depois de saboreadas, formaram sílabas dentro do estômago do anfíbio...”

“Não demorou muito para que Lobato, esse era o nome do sapo letrado, saísse por aí construindo frases para o assombro daqueles que ainda insistiam em engolir os bichinhos de asas. Mas as coisas pareciam mudar rapidamente e depois de uma palestra, em que todas as regras gramaticais foram exemplarmente empregadas pelo orador, Lobato convenceu seus colegas a trocar de dieta...”

“Com a retórica na ponta das línguas, os sapos viraram professores e juntos inauguraram a universidade. Mestre Lobato desfilava sua sintaxe invejável em meio aos girinos pupilos quando, em um momento de descuido, espirrou a palavra “foguete” depois que um içá, que agora não temia mais virar repasto, lhe fez cócegas ao voar bem embaixo das suas narinas...”

“A situação não mereceria maiores comentários não fosse um girino galhofeiro que resolvera aprontar para com o mestre ao combinar o seu ainda precário vocabulário de forma a produzir a palavra “fósforo”...”

“Mestre Lobato, o sapo letrado, entrou em ignição e decolou pelo universo afora deixando para trás um rastro de fumaça combinado com um grito coletivo de “viva” por parte dos girinos pupilos. Foi aterrizar em um pequeno planeta de pequenas proporções composto apenas por três pequenos vulcões, uma pequena flor, um pequeno bode e habitado por um Pequeno Príncipe...”



*** O PEQUENO PRÍNCIPE VAI À UNIVERSIDADE ***


Cena I – Quando Mestre Lobato aterriza no planeta do Pequeno Príncipe.

Sapo Lobato:
O Mestre Lobato vem para demonstrar que é assim que deve ser: “Que o primeiro é assim, o segundo assim e, por isso, o terceiro e o quarto são assado. E não fossem o primeiro e o segundo, o terceiro e o quarto não seriam jamais”.

Pequeno Príncipe:
Bom dia Mestre Lobato. Sou o Pequeno Príncipe. Seja bem vindo ao meu pequeno planeta. Esses são os meus três pequenos vulcões, o meu pequeno bode e a minha pequena flor.

Sapo Lobato:
O que fazes com tantas pequenas coisas?

Pequeno Príncipe:
O bode eu alimento para que ele me ajude com as raízes de baobás, depois lhe afago o cocuruto como recompensa. A flor me serve de paisagem e com os vulcões eu cuido para que não entrem em erupção.

Sapo Lobato:
Bem se vê que o Pequeno Príncipe pensa deveras pequeno. Vivesse eu nesse pequeno planeta faria do bode um cantor lírico. Gravaria CDs com o seu balido para vender em praça pública. Usaria o calor dos vulcões para construir uma fábrica de marmitas. Um disque quentinhas renderia um ótimo lucro. E com a flor produziria fragrâncias para quem quisesse perfumar o cangote, a um custo a combinar, claro.

Pequeno Príncipe:
Que sapo mais criativo. Nunca me passou pela cabeça fazer tudo isso. Mas eu moro sozinho nesse pequeno planeta e embora ele seja pequeno já tenho trabalho suficiente para me ocupar durante todo o dia. Tenho que alimentar o bode, podar a flor e revolver os vulcões. É cansativo mas quando chega de noite fico muito feliz por saber que tudo está organizado.

Sapo Lobato:
Inutilidades! Já pensou em ganhar dinheiro, caro Pequenino Príncipe?

Pequeno Príncipe:
Dinheiro? O que é isso?

Sapo Lobato:
Dinheiro é o prêmio-mor em recompensa ao suor dos merecedores, o que os faz ricos.

Pequeno Príncipe:
Ah sim! Sou um Príncipe muito rico. Toda tardinha, depois de muito trabalho, sento ao chão e observo o pôr-do-sol. É o maior prêmio que alguém pode receber, só não sabia que recebia o nome de dinheiro.



Sapo Lobato:
Somente os tolos para acreditar que sentados encherão os bolsos. Você não tem sonhos rapazinho?

Pequeno Príncipe:
Deixe me ver, acho que tenho um.

Sapo Lobato:
Uma banheira de hidro-massagem acoplada com dvd high definition super ultra xdv de tela plana slim power double deck, é esse seu sonho, não?

Pequeno Príncipe:
Não...

Sapo Lobato:
Um cargo de gerente chefe das produtoras Vila Maluca Incorporation Plaza com salários condizentes com um terço da receita bruta da venda dos sacos de risadas subtraídos da alíquota do Igcf 932 1b? É esse seu sonho, não?

Pequeno Príncipe:
Não...

Sapo Lobato:
Uma câmera hdtv seca sem lentes mas temperada com um switcher mega blaster hiper 3d? Acertei?

Pequeno Príncipe:
Na verdade, senhor Mestre Lobato...

Sapo Lobato:
Você tem sorte de me receber em seu pequeno planeta, pequenino Príncipe. Sou o representante magnânimo de uma instituição pseudo-filantrópica do 5º regimento dodecafônico intitulada Universidade. Lá você será instruído a como entrar no mercado de trabalho e a ganhar muito dinheiro. Basta seguir com régia disciplina os ditames dos professores e terá uma carreira de enorme sucesso. Poderá comprar o que quiser, banheiras, câmeras, cargos...

Pequeno Príncipe:
Muito obrigado Senhor Mestre Lobato, mas estou feliz com as coisas que tenho aqui, acho que não preciso de mais nada, quer dizer...

Sapo Lobato:
Quer dizer... hã? Hã? Hã? O que você deseja? Desembucha para o Mestre Lobato.

Pequeno Príncipe:
Uma corda e uma estaca para amarrar o bode.


Sapo Lobato:
Uma mísera cordinha e uma estaca para amarrar o bode???

Pequeno Príncipe:
As vezes ele teima em querer comer as pétalas da minha flor e isso eu não posso...

Sapo Lobato:
Ah! Está bem! Como pensa pequeno esse Pequeno! Poderá ter sua cordinha e sua estaca.

Pequeno Príncipe:
É mesmo?

Sapo Lobato:
Basta assinar aqui. Não precisa se preocupar, o vestibular é apenas um acidente geográfico fácil de ultrapassar, o que conta mesmo é quanto você pode desembolsar. Você tem dinheiro para gastar, não tem?

Pequeno Príncipe:
Dinheiro? Eu...

Sapo Lobato:
Ah, está bem, esqueça isso por enquanto. O senhor é bem aparamentado, essas roupas devem lhe render a primeira mensalidade, mais esse pequeno colar que imagino ser de ouro maciço, servirá de entrada para o segundo mês. Enquanto isso o senhor já estará apto para correr atrás dos nossos serviços de apoio ao estudante que oferece vagas de estágio em empresas de motoboys, muito conceituadas no mercado. Se for bonzinho poderá filar um emprego vitalício como atendente de buchas telefônicas. Não é preciso lembrá-lo de que toda féria conquistada deverá ser revertida para a sua formação como futuro profissional qualificado e isso, diz respeito a nós, fique sossegado.

Pequeno Príncipe:
Eu estou tonto, tudo isso me parece muito complicado.

Sapo Lobato:
Você vai se acostumar, não se preocupe. A complicação faz parte do negócio, quem pensa simples vende mais barato e não é isso que queremos como exemplo para os nossos girinos pupilos.

Pequeno Príncipe:
Girinos pupilos?

Sapo Lobato:
O senhor será um deles, todos que entram na universidade devem virar girinos pupilos, é a forma mais rápida e eficiente de se tornarem sapos como eu e, portanto, alcançar o estrelato. Não se preocupe, é questão de tempo para se acostumar a esticar sua língua para alimentar-se. Temos um pão de queijo borrachudo na lanchonete do terceiro andar que é de fácil alcance para os principiantes.

Pequeno Príncipe:
Nunca comi pão de queijo.

Sapo Lobato:
Agora vai comer. Sua primeira aula será com a professora-sapa Magaqui, depois será a vez de encontrar o professor-sapo De Poula e, por fim, terminará o período com a professora-sapa Salmento. Três dos mais respeitáveis mestres que a universidade já pôde oferecer aos seus pupilos. Você é um pequeno de sorte, ganhou uma vaga na universidade, imagine quantos outros não gostariam de estar no seu lugar mas, infelizmente, não possuem um planeta como o seu para dar em troca da admissão.

Pequeno Príncipe:
Troca?

Sapo Lobato:
Eu mesmo tomarei conta do seu planeta enquanto estiver fora se dedicando ao academicismo. Não se preocupe, cuidarei para que este pequeno solo cinza se transforme em um verdadeiro jardim de prosperidade.

Pequeno Príncipe:
O bode come duas vezes ao dia e não se esqueça de podar a flor ao menos uma vez por mês. Aqui estão as pás para revolver os vulcões. Promete que vai cuidar bem do meu planeta?

Sapo Lobato:
Não se apresse em voltar, aproveite bem a oportunidade que tem nas mãos. É o seu futuro como empreendedor que está em jogo. Absorva tudo o que há de bom e deixará de ser Pequeno para tornar-se Grande. Quero o receber de volta não mais como um Pequeno Príncipe mas sim como um Rei Gigante. Lembre-se de que a universidade é o canal para a realização dos seus sonhos. Dedique-se com afinco aos estudos e terá a recompensa merecida. Obedeça seus mestres e não crie confusões. Seja um bom girino pupilo, não rabisque nas carteiras, não faça caricaturas na lousa... e não se esqueça que 2 + 2 sempre resultará em 4! O que é, é o que é! E ai de quem diga que não é!

Narrador:
“Repetindo a galhofada do girino zombeteiro, a palavra “fósforo” foi expelida da boca do Mestre Lobato mas, dessa vez, acendeu o foguete para servir de carona ao Pequeno Príncipe que lá de cima já podia sentir o quanto o seu pequeno planeta faria enorme falta...”

“O aperto no coração foi seguido por uma sensação de aventura e descoberta. Mas o Pequeno Príncipe até então nunca havia saído de seu pequeno planeta com um destino marcado. Gostava de viajar sem ter um paradeiro certo para aproveitar melhor o sabor da novidade. As coisas mais gostosas de serem conhecidas são aquelas que nem ao menos sabemos que existem, pensava ele ao passar por um cometa apressado...”

“Olhou atentamente para o céu ao seu redor e percebeu ao longe uma pequena constelação composta por quatro estrelas bem luminosas. Duas duplas, quatro estrelas. 2 + 2 sempre resultará em 4. Engraçado observar as coisas a partir de fórmulas, nunca havia parado para pensar dessa forma. Mas funcionava e talvez fosse uma maneira mais prática de entender o movimento do universo. Lembrou-se da sua pequena flor. 6 pétalas, 3 de cada lado. 3 + 3 sempre resultará em 6, concluiu sorrindo mas sem deixar de reprimir uma lágrima de saudade que escorria tímida pelo seu rosto...”

“Enquanto isso, em algum lugar lá embaixo, a Sapa Magaqui lixava as unhas ao mesmo tempo em que ajeitava os fios rebeldes do cabelo para dentro de sua boina roxa. Levou um tremendo susto que a fez descabelar toda quando o foguete do Pequeno Príncipe aterrizou bem a sua frente. Ainda sob o impacto da visita inesperada, tirou um batom da sua bolsa de camurça, junto com um espelhinho, e tratou de se recompor...”


Cena II – Quando Pequeno o Príncipe encontra a Sapa Magaqui.

Pequeno Príncipe:
Bom dia professora Magaqui. Sou o Pequeno Príncipe e estou aqui para a aula da senhora.

Sapa Magaqui:
Como eu estou, meu pequeno?

Pequeno Príncipe:
É... bonita, eu acho.

Sapa Magaqui:
Linda? Ora que elogio mais lisonjeiro. Muito obrigada, o senhor também não é de se jogar fora. Na bem da verdade o senhor tem potencial, muito potencial. Uma hidratação nesse cabelo ressecado, aliado a algumas outras coisinhas mais o transformariam num verdadeiro príncipe.

Pequeno Príncipe:
Mas príncipe eu já sou.




Sapa Magaqui:
Ora que arrogantezinho impertinente, tão pequeno e já querendo ser o que não é. Mas eu gosto de ambição e isso o senhor exala pelos quatro cantos, dá para sentir.

Pequeno Príncipe:
Eu vim aqui para ter aulas com a senhora. Foi me dito que a universidade é o lugar onde nossos sonhos são conquistados.

Sapa Magaqui:
Dinheiro? Claro... vocês girinos pupilos só pensam nisso. Parece uma espécie de idéia fixa tal qual um imã que não larga do seu irmão ferro! O que resta a nós, pobres sapos professores, a não ser satisfazê-los? Gosta da minha boina, rapazinho?

Pequeno Príncipe:
É roxa.

Sapa Magaqui:
E é assim que o senhor vai ficar: roxo de rico.

Pequeno Príncipe:
Só quero uma cordinha e uma estaca para amarrar o meu bode.

Sapa Magaqui:
E fala por metáforas. Engraçadinho esse Pequeno. Sim! Vou te ensinar a laçar o seu chefe e quando menos esperar o cabrito vai estar atado à sua estaca. A lição de como evitar ser laçado depois que você tomar o lugar do carneiro, isso o senhor só poderá ter acesso na pós graduação.

Pequeno Príncipe:
Estou ficando sem ar.

Sapa Magaqui:
O senhor é bem apanhado, não lhe faltará também a ousadia para o mercado. E quando a gente confia em si mesmo os outros também confiarão. Aprenda principalmente a conduzir o patrão. Seus eternos “droga” e “ora pois”, tão multifacetados, são facilmente curáveis com um jantar a dois. É só mostrar-se um pouco honrado para tê-lo inteiramente ao seu lado. No início, um título é necessário para que ele acredite que a sua arte supera muitas outras artes. Logo de chegada lance paparicos aos ventos que outro durante anos só conseguiu ensaiar. Saiba bajular o ego com jeito e, com o olhar esperto e ardente, cumprimente-o com a direita ao mesmo tempo em que uma piscadela é executada com a pálpebra esquerda. Agora, se ele for ela, aí a técnica muda um pouco.

Pequeno Príncipe:
Não entendo muito do que a senhora fala.


Sapa Magaqui:
Assim que eu gosto, modéstia. Já avançamos muito por hoje. Para quem se auto intitulava o Príncipe do universo, o senhor já teve ganhos consideráveis para uma primeira aula. Trate de zelar pela ordem com afinco. São cinco horas diárias, esteja dentro ao tocar o sino. É claro que em casa o senhor se preparou, estudou os parágrafos, para depois ver melhor que o professor não diz nada além do que está no livro. Mas é assim que funciona, não somos pais nem mães de ninguém para ultrapassar aquilo que a burocracia exige; e se o senhor quer mesmo virar um sapo bem sucedido basta repetir junto comigo o seguinte refrão: pãn pã rã rãm pãm: pãm pãm. Sua vez.

Pequeno Príncipe:
pãn pã rã rãm pãm: pãm pãm.

Sapa Magaqui:
Ainda um pouco hesitante, mas melhorará com o tempo. Agora se me permite tenho um encontro surpresa no elevador para tratar da minha eleição como coordenadora do curso. Trata-se da técnica intitulada “elevator speech” em que durante o curto período de 1 minuto você deve realizar um streap-tease intelectual para seduzir seu superior. Mais tarde o senhor também aprenderá a perder a vergonha, não se preocupe. São 20 reais, por favor.

Pequeno Príncipe:
O que são 20 reais?

Sapa Magaqui:
O preço da aula. 20 reais.

Pequeno Príncipe:
E quando ela começa?

Sapa Magaqui:
Veja se não é um Pequeno Piadista. Já desconfiava que era um pobretão. Esse seu casaquinho vai servir de pagamento. Acha que ele combina com minha bolsa?

Pequeno Príncipe:
Acho que sim.

Narrador:
“Meio desorientado, meio desanimado, seguiu para a sua segunda aula. No meio do caminho começou a fazer um frio de gelar os ossos e o Pequeno Príncipe desejou ao menos ter com ele o casaquinho que havia empregado como pagamento. Pensou no seu pequeno planeta, em como ele era quente e aconchegante. Talvez nunca devesse ter saído de lá...”

“Todo esforço tem a sua recompensa, pensou consigo mesmo. E se tudo isso resultar na estaca e na cordinha para amarrar o meu bode, terá valido a pena. Olhou para cima e viu o céu todo estrelado. Lá estava a pequena constelação de quatro estrelas luminosas. 2 + 2 sempre resultará em 4. De repente percebeu que tudo poderia ser reduzido através dos números e das fórmulas. Tudo era exato, inquestionável e, por isso mesmo, descobriu que tinha perdido tempo demais observando todas as tardes o pôr-do-sol no seu planeta. Afinal de contas, pôr-do-sol tinha toda tarde e era sempre igual, sempre mais um número. Até o seu planeta era igual aos outros. Ficou triste sem saber o porquê...”

“Em algum lugar perto dali o Sapo De Poula dormia. Quando o Pequeno Príncipe chegou, o Sapo De Poula deu um pulo mas, de alguma forma, parecia que ainda continuava dormindo...”


Cena III – Quando o Pequeno Príncipe encontra o Sapo De Poula.

Pequeno Príncipe:
Bom dia professor De Poula. Sou o Pequeno Príncipe e estou aqui para a aula do senhor.

Sapo De Poula:
Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
Eu vim aqui para ter aulas com o senhor. Foi me dito que a universidade é o lugar onde nossos sonhos são conquistados.

Sapo De Poula:
Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
O senhor fala outra língua que não seja a língua dos sapos?

Sapo De Poula:
Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
Só quero uma cordinha e uma estaca para amarrar o meu bode.

Sapo De Poula:
(um balido) méééééééé.

Pequeno Príncipe:
Não entendo muito do que o senhor fala.

Sapo de Poula:
Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
Estou ficando sem ar.

Sapo de Poula:
(levanta uma plaqueta onde está escrito: “R$ 20,00”) Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
20 reais?

Sapo de Poula:
(vira a mesma plaqueta onde está nova inscrição: “R$ 20,00, preço da aula”) Ruãbãr.

Pequeno Príncipe:
E quando a aula começa?

(o Sapo De Poula dança um tango e em seguida alcança o cachecol do Pequeno Príncipe. O veste em si mesmo).

Sapo de Poula:
Ruãbãr.

Narrador:
“O pequeno Príncipe caminhou para a sua terceira aula do dia com uma dúvida na cabeça. Se é dinheiro que querem me oferecer como prêmio pelo meu esforço, por que é que até agora fui eu quem tive de pagar por alguma coisa que não sei nem ao menos para que serve? Sentia-se cansado como nunca estivera antes. Mesmo sem arregaçar as mangas para pegar na enxada, sentia suas forças exaurirem tão rapidamente que precisava parar para tomar fôlego de tempos em tempos...”

“A saudade do pequeno planeta apertava o coração do Pequeno Príncipe. Lá tudo era mais simples e não precisava pensar em recompensas futuras porque o pouco que ele tinha já o deixava feliz. Quando levantava os olhos para o céu em busca de lembranças agradáveis encontrava a constelação das quatro estrelas e a fórmula 2 + 2 = 4 o animava um pouco. Se as coisas são como tem que ser então eu estou no caminho certo. Fácil como uma fórmula matemática...”

“Perto dali, a Sapa Salmento pulava amarelinha despreocupada...”


Cena IV – Quando o Pequeno Príncipe encontra a Sapa Salmento.

Pequeno Príncipe:
Bom dia professora Salmento. Sou o Pequeno Príncipe e estou aqui para a aula da senhora.

Sapa Salmento:
Quer ser meu amigo, pequeno pequenino?

Pequeno Príncipe:
Quero sim. O que a senhora está fazendo?

Sapa Salmento:
Estou pulando amarelinha. Gosto muito de pular amarelinha. Sabe, amarelo é a minha cor preferida, é a cor da riqueza. Dizem que verde é a cor do dinheiro e eu até concordo que seja verdade, mas amarelo é a cor da riqueza e quando eu soube que existia uma brincadeira com o nome de amarelinha eu tratei logo de descobrir que brincadeira era essa. E aqui estou eu, brincando de amarelinha. Quer brincar comigo?

Pequeno Príncipe:
Faz tempo que eu não brinco de nada, desde que eu deixei o meu planeta.

Sapa Salmento:
Que triste! Mas ainda bem que você veio para a universidade, aqui é o lugar onde tuuuuudo pode acontecer. Não precisa se preocupar com nada, nós sapos somos treinados para distrair sua cabecinha e fazer com que você esqueça tooooodas as coisas chatas que existem por esse universo feio e cinza. Cinza, caro pequenino, é toda a teoria! E verde a árvore dourada da vida!

Pequeno Príncipe:
E azul é cor que deixa o céu azul mais azul?

Sapa Salmento:
Iiiiiisso! Isso mesmo. Essa era a lição do segundo semestre mas pelo visto você andou estudando antecipadamente, né seu cdf’zinho? Mas não tem problema porque aqui na faculdade nós temos um arco-íris enorme de possibilidades para deixar você mais feliz!

(A Sapa Salmento canta e dança uma música infantil)

Trala, trala, trala la la la,
Tralala, tralala tra la la Rei!

Trele trele trele le le le,
Trelele, trelele, tre le le Rei!

Trili trili trili li li li,
Trilili, trilili, tri li li Rei

Trolo trolo trolo lo lo lo,
Trololo, trololo, tro lo lo Rei!

Trulu trulu trulu lu lu lu,
Trululu, trululu, tru lu lu Rei!

Pequeno Príncipe:
Isso tudo está me deixando tonto.


Sapa Salmento:
Claro que sim! É normal! Quando a gente brinca de rodar a gente fica tonto. E depois de parar, se você fechar os olhos vai ver que tuuuudo fica preto. Sabia que preto é a cor do gato preto?

Pequeno Príncipe:
Eu vim aqui para ter aulas com a senhora. Foi me dito que a universidade é o lugar onde nossos sonhos são conquistados.

Sapa Salmento:
Sonhos? Passa anel, passa anel! O que é que você quer do mundo? Conquistar o jardim de cogumelos dos Smurfs ou expulsar o Esqueleto do castelo de Greiscol?

Pequeno Príncipe:
Só quero uma cordinha e uma estaca para amarrar o meu bode.

Sapa Salmento:
Yuuuuuuuuuuuuuuuuuuupiiii! Barra manteiga na fuça da nega. Senhor capitão caiu no chão! Moça bonita do meu coração. Frai si, tcham tcham tcham, si o lá, tcham tcham tcham, pra sorrir, tcham tcham tcham, frai si. Adoletá lepetite letolá le café com chocolá A-DO-LE-TÁ! Ganhei! Ganhei! Ganhei! 20 Reais, por favor!

Pequeno Príncipe:
20 reais?

Sapa Salmento:
É o preço da brincadeira.

Pequeno Príncipe:
Até para brincar é preciso pagar?

Sapa Salmento:
Não sabe, não sabe, vai ter que aprender! Orelhas de burro hão aparecer. Difícil? Parece fácil? Um belo dia, um belo dia aprenderá! YYYYhhhhhóóóóó.

(A Sapa Salmento arranca o colarzinho de ouro do Pequeno Príncipe)

Narrador:
“Quatro anos foram-se embora tão velozmente quanto o farfalhar do vento que não cessava de alimentar a erudição dos professores sapo. O Pequeno Príncipe tomou o caminho de volta para seu pequeno planeta com um diploma na mão. Estava tão ansioso por rever sua terra que mal pensou em o que fazer com aquele pedaço de papel. Nem na parede poderia emoldurá-lo simplesmente porque parede não havia naquele pequeno planeta...”

“Ao chegar, trocou o sorriso pelo espanto. Encontrou o pequeno bode sobre um pequeno palquinho de madeira ilhado por diversos CDs com a inscrição: “bode’s hits parade”. O animal estava velho, rouco e a alegria parecia ter lhe escapado do rosto. A flor estava com um aspecto não menos doentio, com suas pétalas murchas de tanto serem espremidas para a retirada do perfume. Os três vulcões estavam cobertos por chapas de ferro que acabaram por tapar as pequenas crateras, evitando a saída da fumaça. Como resultado, o planeta todo vertia um negrume malcheiroso vindo do solo. Bem ao sopé de um dos vulcões, Mestre Lobado fincava uma placa de “vende-se”...”

Cena V – Quando o Pequeno Príncipe retorna ao seu planeta.

Sapo Lobato:
O filho pródigo ao lar retorna. Seja bem vindo ao meu pequeno planeta, Pequeno Príncipe.

Pequeno Príncipe:
O planeta não é seu.

Sapo Lobato:
A sua frase faria sentido não fosse o emprego do tempo verbal. Pretendo partir em breve para o ramo audiovisual e esse é o motivo pelo qual coloco à venda este modesto pedaço de terra. Há de concordar comigo de que neste pedaço de fim de mundo não há um mercado consumidor em potencial para o sistema broadcast. Não teria interesse em adquiri-lo?

Pequeno Príncipe:
O dinheiro que o senhor procura não sou eu quem vai lhe dar. Não tenho nada nos bolsos.

Sapo Lobato:
Um verdadeiro homem das pechinchas. Parabéns pela formatura rapaz, vejo que a universidade o ensinou a sobreviver no mundo dos negócios. Não é preciso me agradecer quanto ao progresso que empreendi na sua ex morada, tudo o que fiz foi em prol do desenvolvimento sustentável. Agora, se me permite uma contra proposta, aceito que permaneça nesse local sob a condição de tornar-se meu empregado. Veja que as vantagens são muito maiores para o senhor. Quantos recém formados não dariam a vida para trabalhar comigo, o futuro detentor do império broadcast high definition UVA UVB?

Narrador:
“Sorte do Pequeno Príncipe ter aprendido um pouco da malandragem estudantil com os seus colegas girinos pupilos. Não fosse isso, teria apagado o foguete com que aterrizou em seu planeta e mal teria passado pela sua cabeça despachar Mestre Lobato para bem longe no mesmo transporte...”

“Não demorou muito para que tudo voltasse a ser como antes. O bode voltou a sua felicidade dos velhos tempos, ajudando o Pequeno Príncipe com as raízes de baobás. A flor fora tão bem cuidada que agora ostentava uma cor e um perfume nunca imaginados. Os três vulcões puderam voltar a respirar e o negrume mal cheiroso sumiu como que em um passe de mágica...”

“O bode ficou sem a sua cordinha e a estaca, mas que importância isso tinha agora? A flor estava tão exuberante e perfumada que a ânsia por mastigar suas pétalas foi transformada por momentos de conversas ao pôr-do-sol. Os dois tornaram-se grandes amigos...”

“E por falar em pôr-do-sol, lá está o nosso Pequeno Príncipe sentado a aproveitar esse momento tão bonito do final do dia. E quando a noitinha já vinha, ainda conseguiu vislumbrar a constelação das quatro estrelas luminosas. Esfregou os olhos uma vez mais antes de cair no sono para descobrir que havia mais um pontinho luminoso que nas outras vezes não notara. Uma quinta estrela intrometida. 2 + 2 sempre resultará em 4? Melhor deixar as fórmulas para os matemáticos. Ele dormiu profundamente e foram tantos os sonhos que teve que no dia seguinte não conseguiu se lembrar de nenhum.

Fim!


Roteiro escrito por Francisco Egydio de Carvalho.



“Só Agora Reconheço O Que O Sábio Diz:
“O Mundo Dos Espíritos Não Está Trancado,
Teu Senso Está Fechado, Teu Coração Morto.
Anda! Banha, Discípulo, Animado O Peito Terrestre Na Luz Da Aurora”*

*Goethe.

domingo, 8 de julho de 2007

SALOMÃO VIROU SALAMINHO!

Quem diria? Finalmente aconteceu: sacaram o homem do ar. Já era sem tempo. Pesares. Ficaremos órfãos daquela voz rouca que desfilava um repertório de vaidades sem igual pelas manhãs da Rádio Cultura. O menino propaganda, travestido de erudito senhor de cabelos grisalhos à serviço das insatisfações morais e éticas do povo – só faltou a candidatura para algum posto no governo já que a política parecia ser o principal instrumento de autopromoção do Diarista Matutino dentro da Fundação Padre Anchieta – foi emudecido. Lástima. É o fim da feira livre, das propagandas de vinho – sempre regadas com floreios intelectuais de invejar, dos Jabás dos restaurantes finos – o sujeito não era daqueles que apreciava um cachorro quente na esquina, é o fim do cardápio de variedades que engordava e muito a conta bancária do Senhor de timbre sensual, agora pobre funcionário jubilado de suas funções. Pobrezinho!

Quem sabe agora seja possível reconhecer que o ilustre ex-apresentador fazia uso de um espaço, teoricamente destinado ao desenvolvimento educacional através da música erudita, para lecionar suas cartilhas de bom costume conjuntamente com um hábil arsenal publicitário que o enchia de moedas preciosas. Salomão que antes era ÃO agora virou INHO. Bravo Markun! Que o povo tenha de volta a possibilidade de poder desfrutar de um canal que ofereça música de qualidade sem as interferências afetadas de garotos-propaganda do naipe das Casas Bahia que insistem em afirmar que o que fazem é em prol do engrandecimento cultural e intelectual do povo. Balela! Foi só tirar a bufunfa do Diarista que os argumentos de censura e perseguição vieram à tona – “Meus filhos! Clamai por justiça”.

Foi-se o tempo da arrogância, da prepotência em razão do benefício próprio. Salomão, que fazia questão de viver rodeado por belas mulheres na sua produção – “As Minas do Rei Salomão”, ingressos esgotados! - usa o argumento de que seu programa era o de maior audiência e o que trazia mais recursos para a Rádio Cultura. Novamente a justificativa de que o que “eu” ganho “eu” ganho em nome do povo. Se o nobre senhor estivesse um pouco interessado no crescimento da emissora na qual trabalhava dividiria sua gorda féria com os vários produtores e programadores que, depois de décadas dedicadas à Rádio Cultura, continuam ganhando migalhas para suster e engolir a empáfia de personagens como Salomão.

A habilidade oratória do ex-funcionário já começa a driblar as consciências e a transformar a questão em perseguição política. Grande sacada Salomão! Mas não são os russos que estão o perseguindo, a sua saída de cena é o resultado de anos de uma interpretação de ator canastrão. Por um tempo é possível ludibriar a maioria do público com caretas e frases carregadas de impacto mas, no final do quinto ato, alguns poucos espectadores atentos não compram mais tanta fanfarronice barata. As coisas caminham bem, Salomão arrumou as malas conjuntamente com outro Bufão dos picadeiros: José Roberto Walker, o ex-diretor da Rádio Cultura que, depois de demitir funcionários competentes especializados em música erudita, fazia seu Check-in para acompanhar a turnê internacional da OSESP na Europa, sempre à serviço da qualidade da sua emissora, claro! Fecham-se as cortinas! Bravo! Bravo Markun!