Transcrevo abaixo um trecho maravilhoso de um dramaturgo contemporâneo francês, Michel Vinaver, que acaba de ter duas de suas peças editadas no Brasil pela EDUSP. Penso que o conteúdo é bem apropriado para nós, humanóides modernos que ansiamos desesperadamente por buscar as razões (começos / meios / fins) de qualquer coisa que passe pelo campo esclarecedor (será?) do intelecto. Aí vai:
"Não se preocupe nada por baixo das superfícies; são elas o segredo. Não há não-dito: tudo é dito. Sobretudo nos intervalos, no espaço entre objetos da fala - palavras, frases, réplicas -, que não são vazios, mas o branco nas telas de Cézanne. E nada de ponto de vista globalizador, redução do texto a uma moral ou mensagem. Todos os pontos de vista são válidos, sem hierarquização, sem julgamento. Não há denúncia do sistema, há desmonte. Há ironia; como decalagem entre aquilo que se espera e aquilo que realmente vem, num encadeamento inesperado das réplicas, ou das situações, no plano molecular da conversação banal do dia-a-dia. Não se cave uma profundidade, nem mesmo psicológica. Pois não há um antes e um depois. Vale o presente imediato e urgente. São peças-paisagem, sem o encadeamento causa-efeito das peças-máquina, sem progressão cronológica visando ao desenlace. Sem desenlace no sentido convencional, a peça tem que parar, eis tudo; o último instante não vai se suceder de um outro. Trata-se de uma estrutura musical de temas e suas variações, num ir e vir rítmicos. Para a captação do instante em sua fulgurância desnorteante numa realidade mutante. Uma sucessão de instantes em conexão, mas não subordinados, que desautoriza os termos "cena" ou "ato"; temos peças em pedaços, em fragmentos. É a realidade fragmentada da vida em estado bruto, como se dá no cotidiano".*
*Prefácio de "Dissidente / O Programa de Televisão" - duas peças de M. Vinaver. EDUSP, 2007. Tradução de Catarina Sant'Anna.
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