segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Quando o "Isso" não vem depois do "Aquilo".

Transcrevo abaixo um trecho maravilhoso de um dramaturgo contemporâneo francês, Michel Vinaver, que acaba de ter duas de suas peças editadas no Brasil pela EDUSP. Penso que o conteúdo é bem apropriado para nós, humanóides modernos que ansiamos desesperadamente por buscar as razões (começos / meios / fins) de qualquer coisa que passe pelo campo esclarecedor (será?) do intelecto. Aí vai:

"Não se preocupe nada por baixo das superfícies; são elas o segredo. Não há não-dito: tudo é dito. Sobretudo nos intervalos, no espaço entre objetos da fala - palavras, frases, réplicas -, que não são vazios, mas o branco nas telas de Cézanne. E nada de ponto de vista globalizador, redução do texto a uma moral ou mensagem. Todos os pontos de vista são válidos, sem hierarquização, sem julgamento. Não há denúncia do sistema, há desmonte. Há ironia; como decalagem entre aquilo que se espera e aquilo que realmente vem, num encadeamento inesperado das réplicas, ou das situações, no plano molecular da conversação banal do dia-a-dia. Não se cave uma profundidade, nem mesmo psicológica. Pois não há um antes e um depois. Vale o presente imediato e urgente. São peças-paisagem, sem o encadeamento causa-efeito das peças-máquina, sem progressão cronológica visando ao desenlace. Sem desenlace no sentido convencional, a peça tem que parar, eis tudo; o último instante não vai se suceder de um outro. Trata-se de uma estrutura musical de temas e suas variações, num ir e vir rítmicos. Para a captação do instante em sua fulgurância desnorteante numa realidade mutante. Uma sucessão de instantes em conexão, mas não subordinados, que desautoriza os termos "cena" ou "ato"; temos peças em pedaços, em fragmentos. É a realidade fragmentada da vida em estado bruto, como se dá no cotidiano".*


*Prefácio de "Dissidente / O Programa de Televisão" - duas peças de M. Vinaver. EDUSP, 2007. Tradução de Catarina Sant'Anna.

Nenhum comentário:

Postar um comentário