quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

EM FAVOR DA MENTIRA, CONTRA A VERDADE!



Hoje perdeu-se o valor da mentira. A verdade, ou a ânsia por proclamá-la, parece ser o fim de um arco-íris cujo trajeto até o pote de ouro é formado pelos ladrilhos das certezas. O almejado tesouro, nesse caso, é um falso diploma – veja a ironia – assinado com tinta transparente. Quanto mais se tenta chegar a verdade última dos fatos menos próximos estamos de compreender qualquer coisa. Há aqueles que advogam pela verdade no campo do jornalismo onde a informação é elevada ao status de ferramenta da clarividência, capaz de arrancar a ignorância dos desinformados. Contra estes há não muito o que argumentar, embora particularmente tenho a tendência a dar mais crédito às informações escondidas nas entrelinhas de uma estória de um livro do que nas lentes assépticas dos repórteres televisivos. O que quero aqui é deslocar a polêmica para o território em que a mentira, até pouco tempo atrás, trajava as vestes de protagonista. Falo da arte, em especial da arte dramática.

A origem da palavra "ator" carrega uma tradução esclarecedora: vem do grego hipócrates que, por sua vez, aproxima-se do nosso conhecido verbete hipócrita. Hipócrita, ainda segundo a definição do dicionário, indica aquele sujeito que finge ser o que não é. O ator, portanto, segundo a definição, é, por natureza, um grande mentiroso. Será isso verdade nos dias de hoje? Parece que não, a idéia de que um ator tem como ofício praticar o "mentir" virou mentira, não é mais verdade. As explicações para tal mudança de eixo são muitas, uma delas é justamente a fixação que a imagem do "real" – produto da tecnologia moderna – despertou nas consciências. O que antes era sugestão hoje é constatação, a penumbra deu lugar aos holofotes, a dúvida não tem espaço quando o assunto é perscrutar a veracidade dos fatos, a maquiagem agora é a da cara limpa. Mas como não tenho como pretensão chegar a verdade alguma, volto novamente meu foco para o ator, o mentiroso que não mente mais. Triste verdade!

Se pensarmos que no passado o teatro guardava atrás de suas cortinas todo o mistério hoje ultrajado pelos bastidores da fofoca dos programas de TV, teremos uma pista para entender o que pode ter acontecido. O ator que antes existia como representante de uma personagem hoje virou personagem de si próprio. O "esse sou eu" tornou-se mais importante do que vestir por convicção a máscara da mentira. Tudo começou com a câmera, o olho da verdade. A televisão e o cinema conferiram à dramaturgia um empobrecimento irremediável, sem volta.

E eis que me deparo com a reportagem da revista Veja sobre a preparação de elenco para filmes brasileiros que tem em Fátima Toledo o guru do momento. Fátima afirma categoricamente que a sua terapia – não há palavra melhor – consiste em fazer, custe o que custar, o "ator" arrancar as máscaras para viver à flor da pele as emoções da personagem. Ou melhor, personagem? O que é isso? Em outras palavras, o ator de Fátima Toledo não mente, ele é: "esse sou eu". Assim, o mistério do faz-de-conta – desde sempre a matéria prima da arte dramática - vira um capricho nada producente. Mais fácil é procurar um analfabeto para interpretar o analfabeto, um galã para interpretar o galã e um vilão para ser o ... bingo: o vilão! Antes que algum defensor de Stanislavsky queira me crucificar em praça pública com a bíblia do Método em punho, bom que se diga que o diretor russo em nada se aproxima das técnicas de hipnose da nossa coach brasileira. A personagem existe para Stanislavsky como um processo de construção consciente e, se a aproximação do intérprete para com a personagem – independente de como é feita – é confundida com um estado de ausência do ator isso se dá por uma má compreensão do sentido do trabalho imaginado por Stanislavsky. Mais uma vez o cinema aqui tem culpa.

Puxar os cabelos e gritar de pernas para o ar até exaurir as forças do pretenso "ator" de fato pode funcionar no cinema e na televisão. Se para a câmera o que conta é o momento único da captação, e o que está em jogo é o resultado pretendido pelo diretor, a terapia hipnótica dá conta do recado. Agora se estamos falando de teatro, e é aí que se encontra o verdadeiro terreno do ator –o artista está longe de ser uma marionete à serviço de uma idéia de verdade instantaneamente registrada e logo abandonada. Ao contrário, ele é um artesão que tem a mentira como instrumento de trabalho. A máscara é a ferramenta que possibilita aproximar o espectador de uma experiência de vida, construída na relação entre ator e público. E pelo fato de ser compartilhada ao vivo torna-se um produto da memória, nunca descartável.

Hoje, a verdade como instrumento de expressão na arte dramática produz um casting esvaziado de sentidos. Quando se reivindica o foco para o "eu-ator" (ego) em detrimento da busca pela possibilidade do "outro-personagem" (construção) o que se tem é uma verdade mentirosa, a de que o que se faz é arte. A indústria da imagem nos apresenta uma seleção repetitiva de eus-personagens que não podem ser outra coisa do que são: galãs, vilões, donzelas, enamorados.... representantes de uma vaidade individual muito distante do construir e compartilhar da arte. E a mentira vai mais além. Imaginar que a máscara afasta a sinceridade do artista é tão absurdo quanto afirmar que todos nós somos constituídos por alguma identidade original, pura e possível de ser alcançada. Reconhecer a própria precariedade e a complexidade de nossa natureza imperfeita deve ser a premissa de qualquer artista. A vaidade de um eu uno e perfeito é vazia de sentidos porque não é uma verdade humana e, portanto, torna-se desinteressante. A máscara atrai porque é a metáfora da mentira, de possibilidades e não de certezas, da incompletude que faz parte do cenário da vida e onde nós somos as personagens protagonistas.

Escrito por Francisco Carvalho. 01.01.09

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

UMA RESPOSTA A DIOGO MAINARDI - AFINAL DE CONTAS, QUE CAPITU É ESSA?


Depois de ler a crítica que Diogo Mainardi redigiu em referência a minissérie Capitu, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, algumas questões despontaram da minha ingênua sinapse cerebral. Vamos a elas:

Qual é o papel de um artista? Obedecer regiamente ao consenso do "aceitável" – de modo a satisfazer o que já é conhecido previamente – ou se propor ao enorme risco de traduzir algo pelo viés de uma experiência pessoal e, portanto, intransferível? O que está em jogo aqui não é a busca por uma originalidade celestial só alcançada por alguma espécie de gênio romântico - Luiz Fernando Carvalho é por demais inteligente e sensível para reconhecer que a premissa de qualquer grande artista é o respeito pela sua própria ignorância.

O resultado da Capitu de Carvalho passa longe da fanfarronice barata advogada pela nobre retórica de Mainardi, isso porque o intuito de levar Machado de Assis ao grande público não tem como objetivo – esse sim pretensioso e arrogante – reproduzir o pensamento Machadiano ao incorporar nos atores o bolor das páginas manuscritas do nosso Bruxo do Cosme Velho. E como se isso fosse de alguma forma possível! Esse "desrespeito" pela literatura de Machado, que pode ser lido nas entrelinhas do texto de Mainardi, é absolutamente inverossímil quando o assunto é criação artística. Arrisco-me a dizer que o único e verdadeiro compromisso de um artista para com seu autor é justamente o de abandoná-lo tão logo seja possível, garantido que a futura obra seja uma leitura pessoal e não uma réplica perfeitamente adequada aos museus de arqueologia.

Volto a dizer, esse é o único caminho possível para a verdadeira arte: propor diálogos – mesmo que absurdos e improváveis – a partir do que já existe. Esse é o caminho da inteligência, generosidade, sensibilidade. Se Luiz Fernando Carvalho, aos olhos acurados de Mainardi, elegeu Dick Vigarista como protagonista, ponto para o diretor que por princípio fugiu da tentação de encontrar com Bentinho folheando as páginas de Dom Casmurro.

Onde está Hamlet? Aliás, a pergunta é outra... Hamlet existe? Evidentemente que seria um atestado de burrice imaginar que um bom ator – ou diretor – pensa em decifrar a personagem shakespeareana em algum modelo formatado pelo próprio autor da tragédia. Uma vez compreendidas as complexidades da personagem, Hamlet habita e configura corpo em qualquer época, situação ou contexto. Transportar essa leitura pessoal – individual e solitária - para as entrelinhas da obra de Shakespeare é o que configura o ofício de um artista de talento. Fosse de outra forma, só existiria UM Hamlet, UM Bentinho, UM Dom Quixote. Todos peças mortas e enferrujadas em museus. Arte é vida, movimento, diálogo, possibilidades.

Mainardi, na sua crítica a Capitu, é moralista e esse é mais um dos equívocos quando o assunto é arte. Quem disse que Luiz Fernando Carvalho quis elencar as discussões políticas de Machado de Assis em sua adaptação televisiva? Quem disse que existe uma forma de traduzir Machado? Quem disse que há qualquer outra pretensão na cabeça do diretor que não seja somente a de contar uma estória? Quem disse que há qualquer outro motivo na criação artística que não seja o de oferecer um interlúdio de prazer aos olhos viciados dos telespectadores? Para que tentar transformar arte em uma cartilha de acertos e equívocos? Agindo dessa forma perde-se o que há de mais precioso na criação: o prazer de fazer, o prazer de ver, o prazer de não servir para nada a não ser para o prazer.

Eu fico com a "Corrida Maluca" de Luiz Fernando Carvalho e espero ansioso pelo próximo ano para ver quais outros carros improváveis serão alinhados na linha de largada do diretor. Onde essa corrida vai dar? Essa é uma questão que não me interessa nem um pouco e, ao que parece, é matéria somente do ranço viciado de críticos intelectuais.

E foi dada a largada!

Escrito por Francisco Carvalho. 27.12.08
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Segue a reflexão crítica feira por Diogo Mainardi a minissérie Capitu:


Machado de Assis é Bentinho. Nós somos Capitu. A analogia é simples: nós abastardamos a obra de Machado de Assis. No centenário da morte do escritor, Dom Casmurro e seus outros romances perderam qualquer sinal de paternidade machadiana. Eles parecem gerados por Escobar, o amante de Capitu.

Luiz Fernando Carvalho, diretor da série televisiva Capitu, é o mais perfeito Escobar que surgiu até agora. Seu "Dom Casmurro" tem o nariz de Luiz Fernando Carvalho, tem o sorriso de Luiz Fernando Carvalho, tem a mentalidade de Luiz Fernando Carvalho. Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance.

Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias.

A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos.

Machado de Assis é o oposto. No livro Dom Casmurro, o relato de Bentinho é espantosamente seco e desencantado. Ele narra sua história apenas para combater o tédio: sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade. Quando Bentinho descobre que o filho bastardo de Capitu com Escobar morreu de febre tifóide, ele comenta simplesmente: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro".
Luiz Fernando Carvalho só foi autenticamente machadiano na metalinguagem.


A atriz que interpreta Capitu está grávida de se-te meses. Quando um repórter lhe perguntou se o pai do menino era Luiz Fernando Carvalho – o Escobar de Jacarepaguá –, ela se recusou a responder, limitando-se a declarar, como uma Capitu do funcionalismo público: "Não vou dizer a identidade e o CPF dele".

A literatura brasileira tem um escritor. Um só. O que fizemos com ele, nos últimos cinqüenta anos, foi traí-lo com todos os Escobar que apareceram. Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu, moldando Dom Casmurro às suas teorias feministas, Machado de Assis foi raptado pela crítica esquerdista. Em particular, por John Gledson e Roberto Schwarz, que o transformaram ridiculamente num agente da luta de classes, empenhado em denunciar os abusos da classe dominante.

Na realidade, Machado de Assis é mais complicado do que isso. Ele é um satirista conformista e resignado, que zomba da mesquinhez de nossa sociedade e acredita que, quando ela muda, muda sempre para pior. A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.

Ufa! Asfaltaram a minha rua...



Foram quase trinta anos... – o período de tempo é naturalmente mais extenso, uso aqui a escala dos meus anos vividos somente para me localizar na questão –... trinta anos até que finalmente asfaltaram a minha rua. Muitas tinham sido as ameaças anteriores, sempre frustradas por um rol de preguiças que não sei ao certo elencar. Mas enfim, eis que chega o suntuoso tapete de piche, o arauto escuro da modernidade. O processo não foi de todo abrupto, lembro-me do estágio do cascalho - que vez ou outra era despejado sob a rua poeirenta na esperança de abafar os buracos irregulares, inimigos declarados dos amortecedores alheios. A maquiagem funcionava satisfatoriamente por um tempo, mas bastava uma sequência de chuvas para que as crateras reivindicassem mais uma vez o direito de respirar. Ah! Rua de terra! Quanta desgraça! O cheiro do barro devia causar alergias nas narinas sensíveis dos moradores da João Carlos de Almeida. Quando o sol ardia e a lama secava, o desconforto migrava dos narizes para os olhos. As tormentas carregavam pedras nas exurradas - que se despregavam não sei de onde – para as depositar no meio das vias sujas por um marrom lamacento. Ah! Enfim o asfalto... veio tão rápido quanto a notícia de que um vereador ilustre acabara de desmontar acampamento na minha rua. Na verdade a ordem dos fatores é inversa: primeiro o vereador, depois o asfalto. Quem resistiria a promessa sorridente da modernidade logo na soleira da sua porta? Não resistimos nós e tampouco os buracos que foram calados, dessa vez até não sei quando. Hoje as Grand-Cherokees com tração nas quatro rodas – tração que não traciona mais nada porque não há obstáculos para tracionar – deslizam lépidas pela pista dura.

Os trabalhos duraram poucos dias, o suficiente para terminar tudo antes das eleições e consagrar nosso novo morador como um dos vereadores mais votados. A casa do honorário é uma fortaleza de esquina que poucos afirmam ter vida, eu mesmo nunca vi viva alma entrar ou sair, a única coisa visível, a bem da verdade, são as câmeras que fiscalizam a identidade de quem pisa em cima da sua obra de piche. E quantas são as diferenças entre o barro lamacento e o asfalto asséptico! Quem as notou primeiro foi a Naomy, minha labradora preta, da cor do piche, que ao pisar no novo piso elevou seu focinho na minha direção ao mesmo tempo em que suas patas almofadadas acusavam a frigideira escaldante em que pisavam. Instantes antes de pular no canteiro abençoado pelo frescor da grama verde, Naomy e eu quase não testemunhamos o nosso quase-carrasco que voou em cima de nós com seu veículo, inaugurando o grand-prix de máquinas desejadas.


Ah... o barro lamacento! Foi-se a sujeira úmida, o pó da alergia, os buracos dos mecânicos... e veio a modernidade com seus votos de "votem em mim". E por falar nisso, qual foi a nossa surpresa, minha e da Naomy, depois de escapar do balet da chapa quente e do nosso quase-carrasco, ao nos deparar defronte a uma faixa afixada na praça de baixo com os dizeres:

"Os moradores da Rua João Carlos de Almeida agradecem o vereador Goulart pelas obras de melhoria nas vias do bairro"

Naomy, com seu instinto de dar maior importância ao focinho do que as questões que atormentam o raciocínio, prosseguiu com sua intenção de cheirar o que lhe viesse pela frente. Eu a segui, não sem antes pensar em outra faixa que nunca cheguei a preparar: "Obrigado Goulart por atender ao pedido que nunca pedi".

Ufa! Asfaltaram a minha rua!

Escrito por Francisco Carvalho. 26.12.08

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ODE AOS MARCIANOS!



O RÁDIO COMO CONTADOR DE ESTÓRIAS


Há exatos 70 anos, no ano de 1938, para ser ainda mais preciso, no dia 30 de outubro daquele ano, um americano qualquer que se dignasse a sintonizar o seu aparelho de rádio no dial da estação CBS tomaria um grande susto: um ataque marciano a terra estava em curso. Em pleno dia das bruxas – e na efervescência da expectativa pelo início da 2ª guerra mundial - entrava no ar a dramatização radiofônica do romance "A Guerra dos Mundos" de H.G. Wells, feita pela equipe do ator e diretor Orson Welles. A brincadeira era precedida por um aviso de que os fatos narrados não passavam de mera ficção mas, como era de se esperar, nem todos os ouvintes tiveram o espírito de ligar seus aparelhos de rádio a tempo de filtrar aquilo que ouviam de notícia por faz-de-conta. O resultado da galhofa radiofônica iria superar por muito o cenário imaginado pelos mais ambiciosos diretores dos blockbusters de ação do futuro: centenas de milhares de americanos desesperados com a invasão dos alienígenas verdes sairiam as ruas. Estradas lotadas de motoristas em fuga, corajosos fazendeiros empunhando suas escopetas terrenas, legiões de famílias em busca de esconderijos formariam o cast de figurantes dessa poderosa encenação levada a cabo unicamente pelas ondas do rádio.

Deixando de lado as implicações éticas da empreitada tragicômica de Welles, o exemplo nos oferece uma idéia magnífica do poder das sugestões sonoras como estímulo à imaginação. Cada ouvinte pintou para si um exército de cavalaria-verde e por ele se deixou impressionar, mesmo sem nunca o ter visto reproduzido por qualquer imagem. A imagem, porém, não deixou de existir – ela foi concebida e idealizada individualmente por cada ouvinte. É o que poderíamos chamar de um verdadeiro exercício autoral de criação.

E hoje? Será que o rádio dos tempos atuais mantém a mesma força de persuasão à imaginação? Difícil. Quem sintoniza o rádio nas grandes metrópoles não foge às toneladas de informações jornalísticas sobre trânsito, política e economia. O ouvinte de Welles que imaginara acompanhar uma cobertura jornalística da invasão marciana em Nova Iorque hoje não teria dúvidas: o que se ouve perdeu o sentido do mistério, os alienígenas estão todos domesticados, pintados da mesma forma e prontos para tomar o chá da tarde educadamente em nossa companhia. E mais, que efeito teria uma "Guerra dos Mundos" moderna? Caso um radialista espirituoso tomasse os microfones de uma grande emissora e anunciasse enfaticamente que ao planeta terra restaria apenas algumas horas de existência.... quem acreditaria? Para desmentir o delírio bastaria ao ouvinte abrir o flip do seu celular e conectá-lo às informações on-line, ou então levantar a tela do seu lap-top, quem sabe acionar o controle remoto da televisão... enfim, os marcianos estão em baixa. Nem mesmo o que é reconhecidamente ficção - novelas, filmes, seriados – consegue, na maioria das vezes, abrir espaço para um espectador criativo que se dá ao direito de imaginar a sua própria versão individual da aberração extraterrestre. A imagem, da maneira como ela é pensada nos meios de comunicação de massa, parece sepultar com pá de cal o mistério da incompletude do som.

Pensando em devolver à linguagem radiofônica um pouco do mistério perdido em favor da clarividência informativa, um grupo de radialistas recém formados resolveu unir esforços e seguir na tentativa de estruturar, adaptar e criar estórias a partir do som – voz, música, ruídos. A Boneco de Olinda Produções surge da vontade comum de elaborar uma dramaturgia sonora para incluir o ouvinte como parte ativa dentro do processo criativo. A nós cabe a monumental tarefa de oferecer novamente a possibilidade do assombrar-se com algo desconhecido e obscuro (o som) e deixar a seu cargo, caro ouvinte, o desafio de enfrentar a sua própria imaginação. Sejam bem-vindos todos os extraterrestres verdes... azuis, rosas, roxos, brancos, pretos, amarelos....

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

COMPAREÇAM!

***ESTRÉIA***

"RÉQUIEM" - De Hanoch Levin

de 27 de Janeiro a 5 de Março - Centro Cultural São Paulo.

Um conto de fadas sobre a morte. Baseado em três contos do autor russo Anton Tchekhov, narra encontros e desencontros de diversos personagens em busca da felicidade, da cura ou do tempo perdido. Terça a quinta, às 21h - R$10,00 (a bilheteria será aberta com uma hora de antecedência) - preço popular: dia 3/2 (R$2,00) - Sala Jardel Filho (324 lugares).

direção: Francisco Medeiros

tradução: Priscila Herrerias, com a colaboração de Dinah Feldman,Francisco Medeiros, Lílian Froiman e Pablo Ferreira -

elenco: André Blumenschein, Chico Carvalho, Dinah Feldman, Fabrício Licursi, Felipe Schermann, Fernanda Viacava e Priscilla Herrerias.

POR QUE CAPITU NÃO ME TRAIU?


Agora virou regra... se bem que, confesso, posso estar equivocado ou mesmo ligeiramente embriagado, culpa, talvez, da névoa festiva que nessa época natalina mistura champagne com uva passa. Esteja eu ébrio ou sóbrio, não importa, o fato parece-me repetir aos olhos: todo ano tem o seu Janeiro marcado pela estréia glamurosa do Big Brother Brasil enquanto a saideira do mesmo período, lá pelas bandas de dezembro, eis que surge Luiz Fernando Carvalho com mais uma de suas minisséries-cabeça. Como um corpo que inicia pela ponta dos cabelos e termina na unha do dedão do pé, ambos os extremos, BBB e Capitu, desfilam tão desconexos que não fosse o recheio dos órgãos para uní-los diria que são tão estrangeiros quanto o calendário chinês que não fala a mesma língua do nosso companheiro Gregoriano.

Capitu estreou e com ela a doce sensação de que a dramaturgia brasileira ganha um respiro de poesia pelas mãos habilidosas de Carvalho. Somente a premissa de adaptar obras literárias para as telas globais, já tão modorrentas pela velha e moribunda ladainha folhetinesca, mereceria louvores do Olimpo. Zeus está feliz e eu também estou. Para aqueles que avaliam o esforço de Carvalho como hermético e distante da compreensão da grande massa, saibam que essa é, ao meu ver, uma das maiores qualidades desse grande artista contador-de-estórias. Isso porque o sentido da criação não vem antes das tabulações estatísticas que garantem o que o grande povo quer ver e, portanto, vai consumir. Consumo, eis a moeda de barganha que Luiz Fernando Carvalho faz questão de se distanciar. Capitu não existe para ser comprada, mastigada, deglutida e defecada como a grande parte dos pacotes-laxante da dramaturgia brasileira.

O exercício para acompanhar Capitu é maior, exige tempo, tempo para contemplar. E quando esse estágio de fruição é alcançado – não sem uma certa dose de sensibilidade – a menina de olhos oblíquos e dissimulados não se apaga da nossa mente como acontece na maioria das experiências “pseudo-estéticas” de hoje. Capitu permanece e junto com ela o maravilhoso tratamento cenográfico e musical de toda a minissérie. Isso sem contar a performance dos atores. A poesia aqui ganha pelo ritmo da montagem, pelas sombras impressas no rosto das personagens, pela combinação de um texto magistral com a ousadia de torná-lo audível em um suporte inimaginável pelo nosso Bruxo maior do Cosme Velho. Capitu é difícil? Claro que é... e quem disse que a poesia tem de ser fácil? Mais um de nossos bichinhos de estimação devidamente tosados e comportados? “Dê a pata!” Luiz não dá! “Rola no chão” Capitu, galhofeira, ri com o canto da boca. Não, a preguiça da obediência não faz parte do universo da arte, muito menos é materia prima da poesia. Carvalho acerta pelo incômodo e ganha pela clareza do que quer: contar uma estória, tão somente.

Janeiro está aí e na rabeira dele eis que vem o BBB. Reparem! Um celeiro de novos talentos para as novelas televisivas. Uma indústria da repetição de padrões eleitos pelos publicitários marketeiros. A ordem é reverter em dinheiro o sotaque caipira das modelos de talento dramático. E que drama! Como a linda Grazi Massafera sabe chorar! O público, narcotizado, mal se dá conta de que dá a volta em círculos em um roteiro que prima pelo conforto: “sinta-se em casa e espie a vontade”. O mundo é belo e cheio de alegrias, para que escurecer o cenário? Misturar rock com Villa-Lobos? Qual o sentido disso? Linguagem empolada, difícil... ai que preguiça!

Capitu já passou mas ficou na lembrança. Imprimir memória, estimular experiências... eu prefiro o complicado dos olhos dissimulados e oblíquos do que a torrente de lágrimas verborrágicas e fáceis. Viva Luiz Fernando Carvalho!