sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Os surdos e a orquestra...


A política de cotas para minorias não-privilegiadas, ou privilegiadas pelo desprivilegio, ou então acometidas de algum infortúnio da ordem biológico-funcional, enfim, a coisa de acolher os desacolhidos era coisa que andava de vento e popa, e com vivas de viva à igualdade, ainda que tirada à força das idiossincrasias misteriosas impostas pelo destino, que sem chamegos de justiça, outorga a cada miserável a cota de miserabilidade que lhe cabe sem consultá-lo ou pedir anuências prévias de autorização. E foi assim, nutrido pelo espírito da boa vizinhança, que reservaram alguns assentos para portadores de audição perfeita na sala de concertos onde a orquestra, até então aplaudida unicamente pela massa surda, tocava. E foi assim que ela própria, a orquestra, foi à falência, tão brutalmente desmascarada em sua desordem rítmica que até os surdos, a partir de então, não tiveram outra alternativa senão voltar a ouvir, rogando que interrompessem os trabalhos e causando novo alvoroço, porque agora, mediante a formação de nova maioria, composta desta vez por ouvintes de orelha afiada, já segregava aqueles poucos e míseros que, afortunadamente, insistiam em permanecer surdos, e surdos tanto para aquilo que não se ouvia porque não era dado a ouvir, quanto para todo o resto de barulho, que por ser barulho - afinado ou não-, exigia ouvintes...
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Enforcamento da Faxineira...


Razões não havia, ou eram tantas que não sobrava motivo algum, somente um desejo incontrolável que Odorico experimentou aquela manhã de, finalmente, enforcar a sua faxineira. E só não levou a cabo o plano porque nunca na sua vida teve uma faxineira que faxinasse os seus curtos domínios domiciliares. Porque havendo uma, uma que pudesse chamar de sua, pensou Odorico, definitivamente não só a enforcaria como também serviria à ela um delicioso chá de camomila açucarado com arsênico. Mas antes era preciso arrumar uma faxineira que aceitasse sem admoestações maiores o seu destino de epílogo dramático, porque Odorico gostava das coisas bem explicadas, e nada do que planejava ficaria escondido nas frestas da sua íntima perversão assassina, não! Uma vez encontrada a faxineira, a perfeita candidata e aspirante ao enforcamento seguido do envenenamento por chá de camomila açucarado com arsênico (quem sabe também não a atirasse janela abaixo envolta num alvo lençol de linho?), Odorico faria questão de travar uma conversa franca com ela, explicando suas intenções da maneira mais cordial e afetuosa possível, convencendo-a de que não havia qualquer sentido em começar uma história entre ambos se não houvesse logo de cara um ápice trágico, qualquer coisa que justificasse o enredo dos dias, e que barrasse a modorrenta tirania das tramas sem sal onde as personagem rodeiam por décadas os próprios rabos até que, chegado o momento fatal, literalmente morrem de tédio sem nunca terem sequer arreganhando os dentes para a sombra. Odorico sabia que as grandes figuras são feito pavios de curta extensão, aparecem e já desaparecem, sem sobra de rebarbas ou desvanecimentos em intermináveis palavrórios sentimentais, e que, por isso, a não ser por profunda falta de espírito da escolhida, concederia à ela, à faxineira sortuda, a chance de virar protagonista, enquanto ele, servindo-se do manto humilde dos coadjuvantes, sumiria nos anais da história como mais um a passar ao fundo do palco sem chamar qualquer atenção, mesmo do mais estrábico dos espectadores colado à cena...
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Depois de repetidas interpretações da 5ª de Mahler, lia-se no epitáfio:
'Aqui jaz aquela orquestra, que acometida de adágios demais, foi condenando seus naipes a enferrujarem num lento e soluçante engessamento lacrimoso, até que não sobrassem forças para ferir as cordas, fôlego para soprar os metais, músculos de suporte às madeiras, coração palpitante para o rumo da percussão, até que tudo parasse, o maestro por cima do púlpito enraizasse, até que o público congelasse, até que o silêncio rompesse, e sem desejos de retorno '...




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Fábulas: # As Cortinas Precoces...


Da algazarra que se seguiu após o final do espetáculo na forma de conjecturas inflamadas sobre a razão do pano haver sido erguido muito antes do combinado - o que acabou por colocar a nu o quarteto de atores que descansava esparramado no sofá do cenário, cada qual com o queixo apontado para cima e sem a preocupação de defender qualquer personagem em solilóquio dramático senão à triste e irremediável máscara que aos envolvidos a providência divina não rogou piedade em maquilar -, chegou como resposta ao conhecimento geral, apimentado pelas odes da surpresa que costuma temperar o inesperado dos assuntos graves, que o público, não informado sobre o incidente imprevisto – e crendo que o que via era o que de fato deveria ver como parte integrante do espetáculo -, não só rendeu fervorosos aplausos àqueles que, desprevenidos, tiveram de sambar para esconder as barrigas flácidas, como não mais conseguia arredar o pé da sala de apresentação - e isso ainda depois de horas corridas quando os atores, evidentemente desesperados, haviam há muito buscado refúgio em seus respectivos camarins -, tamanha fora a gratidão por haver naquele exato instante que recusava-se a desvanecer no limbo esfumaçado da memória presenciado tão incrível performance, que se, como é típico da pouca habilidade de discernimento das massas, não sabia como traduzir, traduzimos nós agora e aqui como a mais cristalina demonstração da verdade da alma humana, quase como um testemunho genuíno e irretocável do grande desespero que é saber-se vivo e diante de um bando outro de gente igualmente viva e que não tem outra intenção na vida senão julgar aqueles que, desprevenidos ou não, cruzam os entroncamentos da existência com as calças nas mãos, performance que ensaio nenhum, mal desconfiava disso o público, daria conta de reproduzir com tamanha contundência dramática, restando aqui, e por que não?, congratular com honras merecidas o anônimo contrarregra, que sabe-se lá por qual motivo, naquela fatídica noite, quis antecipar o ritmo natural do movimento dos astros...
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O misterioso país e sua intrigante engenharia de controle demográfico...


Havia esse misterioso país que ninguém sabia ao certo onde no mapa deitava suas fronteiras, tampouco sobrando registros comprovados de que alguém por lá tivesse visitado os seus domínios, conversado com o seu povo, anotado detalhes geográficos, topográficos ou climáticos, quiçá conhecido a língua de comunicação entre os seus habitantes e qualquer outra espécie de testemunho fotográfico ou documental de que, de fato, o tal país existia para além dos boatos de que havia em algum lugar esse dado pedaço de terra onde era por hábito praticar uma intrigante e jamais vista engenharia de controle populacional. Fruto do conto da carochinha ou não, a curiosidade, em compadrio com a imaginação, vence por pontos a batalha com raciocínio lógico e, esfumaçando a divisória entre o que é real com o perfume da fantasia, absolve-nos de qualquer provável devaneio para dizer que o tal mecanismo referido consistia em levar a público um determinado compatriota para que, diante de um microfone apontado para a praça abarrotada de populares, pudesse ele, enfim, dizer algo de relevante – qualquer coisa que fosse! - aos que lá se reuniam para ouvi-lo. E, como era praxe nunca haver nada de importante para chamar a atenção de tanta gente quieta e com as orelhas atentas, o orador, sempre sorteado a esmo, era, portanto, levado à degola. E assim, em escassez de palavras justas ou novidades importantes, a demografia mantinha sua saúde em perfeito equilíbrio, ceifando do seu quadro de funcionários tantos quantos emudeciam – ou quando ousavam dizer aquilo não valia a saliva de tê-lo dito -, todos pobres azarados, sorteados pelo destino, em condenação por absoluta falta de conteúdo.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Falecimento da Estátua Viva

Por força do matraquear anônimo que levou à baila pública a notícia de que aquela determinada estátua viva havia morrido, exatamente aquela que na praça do coreto e ao lado do chafariz simulava ela própria um querubim a despejar água na fonte dos prazeres, enfim, soube-se que a estátua viva de torso prateado e semi-nua e com um dos pezinhos suspensos ao vento na pose barroca de algum anjo alado-gorducho a apontar o beiço como quem implora ao céu um beijo estalado, ela mesma, enfim, a estatua viva, já não mais vivia. Porém, acostumada a engessar em vida, coube ganhar da morte a rigidez de outrora, ou melhor, dobrada, e dessa vez ainda mais impressionante, porque, enfim, se é hábito de quem vive desmanchar-se sem rigor algum, espera-se do defunto um desleixo de exponencial habilidade, desmilinguindo o esqueleto para nunca mais tê-lo de pé, coisa que não aconteceu, ao menos não com aquela estátua viva, que agora estátua morta, enfim, preservava a placidez de um bloco firme de mármore, e toda ela lapidada na expressão perfeita e imutável dos querubins talhados com esmero, coisa só comparável ao David de Michelangelo que, enfim, não se sabia se antes de ser estátua morta era, de fato, um David vivo, o que se sabe, ou se soube, é que, advento do bulício geral, uma enormidade de afluxo de gentes foram conferir a recém falecida estátua viva, agora muito mais visitada do que quando, enfim, de fato vivia, havendo passado anos até o presente dia sem que um único tônus muscular fosse desmanchado em função da eternidade imposta, período em que, nota-se, não faltaram romarias dos quatro cantos do planeta a celebrar a maravilhosa estátua que antes vivia, e que, hoje, enfim e por fim, e para sempre, condenada estará à celebridade imutável dos blocos rijos de matéria bruta.

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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Fóssil do Homem Honesto...

Em recente escavação arqueológica num dado sítio dos recônditos improváveis da Mauritânia, misturado aos cacos de cerâmica do neolítico, foi arrancado da terra um vaso intacto, em cujo interior, não menos intacto, jazia encolhido o fóssil de um homem honesto, e de preservação tão impressionante que ainda dava-se a sorte de vê-lo balbuciando a sua última frase. O arqueólogo-chefe da expedição requereu, então, que imediatamente lhe trouxessem um amplificador auricular para não perder a chance de ouvir o que aquele Matusalém-Jurássico havia a mastigar tão baixinho, imaginando que a força de seu maxilar não suportasse tanto tempo o rarefeito cheiro da atmosfera moderna e, enfim e por fim, calasse-se para todo o sempre. Uma vez chegado o cone-amplificador, dobrou-se o arqueólogo-chefe até à distância de ser possível captar qualquer mínimo ranger de dentes, e foi então que pôde ouvir em muito claro e bom som:

- Vão todos à merda!


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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Fábulas: # A precipitada aposentadoria do Caçador de Codornizes...

O caçador de codornizes de repente e sem aviso prévio anunciara que deixaria de caçar codornizes e assim efetivamente o fez abandonando portanto duas coisas ao mesmo tempo não somente desistindo de ser um caçador de codornizes como também de ser um caçador de qualquer coisa que voasse fossem codornizes ou não e interpelado do porquê dessa sua atitude radical o agora ex-caçador de codornizes dissera que as codornizes de hoje fervilhavam nos céus feito pernilongos e que bastava atirar sem qualquer mira para que um punhado de codornizes caíssem mortas no colo de qualquer diabo que apontasse para as nuvens fato que menosprezava por completo qualquer perícia do caçador transferindo o mérito para as próprias codornizes que agora pareciam que voavam justamente para serem abatidas por qualquer idiota que atirasse em sua direção e não bastassem as codornizes a povoar os céus os céus parecem também fervilhar com toda a espécie de pássaros que decolam somente com a ideia de atulhar os horizontes e sem qualquer rumo ou objetivo senão serem abatidos eliminando assim o ardiloso labor de qualquer caçador de exercitar a paciência e a mira para uma vez decidido a atirar haver nesse último estampido terminado um processo de meticulosa artesania cuja esperança era a de atingir alguma codorniz e caso não o fosse possível engolir então o fracasso que justamente porque entalava na garganta motivava o caçador a aprimorar a sua técnica de caça e novamente interpelado do porquê desistir de um ofício tão fadado ao sucesso uma vez que um tiro dado a esmo poderia fazer despencar dos céus não somente uma codorniz como também uma águia um gavião ou um albatroz o caçador de codornizes ou melhor o agora ex-caçador de codornizes dissera que antes a mediocridade era privilégio de poucos e tornando-se moeda barata era melhor morrer de fome do que convencer os céus de que os céus é que estavam errados por permitirem que tantas asas revoassem por seus domínios fossem elas asas de codornizes ou de qualquer outro pássaro raro ou não...


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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Os indignados são sempre solitários. Porque essa coisa de coletividade é sempre um aprender a resignar-se na dignidade indigna. E os indignados, ao menos os indignados verdadeiros, nunca juntam-se para indignarem-se em grupo e exigir maior dignidade de outros, sejam lá estes quem forem. Os verdadeiros indignados sabem perfeitamente bem que não há responsáveis diretos pela indignidade da vida, ou todos o somos, o que, em ambos os casos, anula a ideia de eleger alguém, ou 'alguéns', como autor(es) da nossa miséria indigna. E essa, precisamente, é a maior das bobagens: a indignação é o motor de mudanças! A indignação é por demais preciosa para ser confundida com revoluções progressistas. Um verdadeiro indignado preserva para si a sua indignação porque sabe que é ela um bem verdadeiro e incorruptível. E tudo o que é compartilhado, sabe o indignado, é coisa passível de corrupção, ou, ao menos, de tempo deveras perdido na tentativa de convencer o mundo de que é preciso indignar-se.

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A paradinha da bateria evoluiu de síncopa para uma semibreve, mas do tipo de semibreve longuíssima. A mulata, ainda assim, sustentou o rebolado por alguns eternos silenciosos segundos, e depois congelou. Todo o resto congelou também - baianas, mestres-sala e portas-bandeira, alegorias, plateia e foliões dentro e fora da avenida. E congelados permaneceram até que a neve começara a cair. E feito doces polvilhados por açúcar, cada estátua foi crescendo em uma camada de branco pelo cocuruto e até que só o nariz sobrasse para fora, e depois nem mais o nariz, talvez somente uma única pena de pavão remanescente da última fantasia do destaque que pairava altíssimo no derradeiro carro alegórico. Tudo coberto por um cobertor gigantesco de neve, abafado por uma outra melodia, dessa vez uma melodia branca e carregada de notas longas, nada percussionadas. Passaram-se mil anos, e as escavações descobriram ali os vestígios de uma antiga civilização, e ao que tudo indica bastante primitiva, e cujos habitantes, mumificados, comunicavam-se praticamente pelados, de posse de tinturas no corpo, e de um estranho sorriso paralisado na face...
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Obituários exemplares: # O fim da foliona Betina Albuquerque

Após incontáveis acareações reconstituições e encenações in loco nunca se conseguiu chegar à conclusão de quem ao certo foi o autor do fatídico pisão no rabo de pavão da foliona Betina Albuquerque o que se provou sem que houvesse qualquer fumaça de dúvida é que com o tal derradeiro pisão a foliona Betina Albuquerque fora parar ao chão junto com o seu rabo de pavão e que de lá do chão não levantaram-se nunca mais pisoteados que foram pela ala das crianças e logo após atropelados pelo carro abre-alas que sem se dar conta de Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão estatelados ao cimento da avenida continuou seu trajeto rumo à dispersão mas não sem antes prensá-los ao chão feito massa de pão deixando o corpo de Betina Albuquerque e o seu rabo de pavão sovados ambos aos sabores dos rodopios das baianas que vindas na sequência também fizeram a sua parte ao chutar a foliona Betina Albuquerque que a essa altura já sentia os dentes lhe escaparem da boca o que de fato se confirmou quando o casal de mestre-sala e porta-bandeira lha desferiu uma baita duma bicuda no maxilar como consequência do movimento de um desses passos nobres ao qual a foliona Betina Albuquerque junto ao seu rabo de pavão só poderiam render admirações uma vez que a especialidade de ambos era sambar e não bailar ainda que agora nem isso mais era viável haja vista que o rabo de pavão de tão amarrotado estava mais para penugem de frango de macumba e ela pobrezinha toda ela banguela e à imagem e semelhança de uma santa surrada na periferia e se ainda não era completamente santa porque ainda não era morta para ser beatificada pelo papa o fato é que cumpriu a primeira etapa do processo morrendo já quando a velha guarda que acreditava-se iria toda ela empacotar antes da foliona Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão serem pisados proferiu bengaladas no crânio de Betina Albuquerque que já sem vida e com os miolos espalhados pela avenida por sorte do destino fora recolhida por um passista que munido da perspicácia dos malandros alocou o cadáver atado ao rabo de pavão na última alegoria da escola que era justamente e por sorte do destino uma alegoria que trazia um caixão puxado por tantos outros foliões fantasiados de coveiros e assim a foliona Betina Albuquerque encerrou a sua participação na história do samba ainda que essa história prometa capítulos futuros uma vez que a agremiação enseja para o ano que vem um enredo em homenagem à Betina Albuquerque cujos registros de canonização já foram delegados aos ministros do vaticano e que na passarela da alegria será lembrada com sangue suor e muitas penas.... de pavão.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Procura-se um idiota...

Em virtude da recente e não anunciada escassez de idiotas no mercado de varejo, saíram correndo às ruas à procura de alguém que se prestasse a ser o novo idiota do momento, alguém com potencial inequívoco para a idiotice, que talhasse aquele perfil idiota típico dos aspirantes ao trono dos idiotas, um não-se-sabe-quem com certo rebolado idiota que se encaixasse aos padrões idiotas, e, sobretudo, alguma alma de eminência idiota que suportasse contente a carga de festejos, apupos hormonais, e toda a sorte de uivos coletivos que só aos idiotas verdadeiros é dado receber, e disso fazer a sua razão idiota de vida. Pois encontraram aquele a quem vislumbravam futuro tão promissor e imediatamente interpelaram o candidato com a pergunta já prenhe de expectativas, a saber, então, se ele aceitaria tornar-se um completo idiota para o bem completo de todos os que ansiavam pela eleição do mais novo idiota do momento, e por qual motivo eu aceitaria tornar-me um idiota, perguntou de volta o interpelado, ora, veja bem, o senhor já é praticamente um idiota completo, o que lhe falta é um trabalho mais efetivo de marketing, de venda da sua imagem para que os outros possam conhecer do senhor tudo o que é preciso que conheçam, e assim, portanto, lhe render as admirações e aplausos que só os idiotas verdadeiros em sua prática ininterrupta de idiotices diárias são alvo, e o que isso traria vantagens para mim, retrucou o quase convencido a tornar-se o novo idiota do momento, vantagens inúmeras, a começar por arrancar fora da sua pessoa qualquer qualidade de crise ou pensamentos nebulosos que possam por ventura vir a esfumaçar essa sua consciência de tendências idiotas – note que todo idiota que se preste a ser o que realmente mostra ser, ou seja, um retumbante idiota, é sempre dotado de uma alma translúcida e cristalina, quase feita do mesmo material dos cristais das lojas de taças de cristais – a assim alumiar-se sem medo da luz solar, e para que todos possam o ver naquilo que você realmente sente e mostra sentir, ou seja, dar ao conhecimento alheio todo um repertório vazio de frases feitas e de clichês já mastigados por não sei quantas outras mandíbulas – note que o verdadeiro e completo idiota é sempre esse arauto da voz pública, um legítimo representante do matraquear anônimo da massa sem rosto – e dessa forma, então, cair nos braços daqueles que estarão preparados para carregá-lo até o lugar em que você disser que deseja estacionar, ainda que esse lugar seja o inferno. E além de tudo isso, saiba que o idiota com carteirinha de idiota, para além de todas as vantagens citadas, exala também o raro perfume do charme, esse elixir que faz levitar as narinas dos que tem narinas para cheirar mas que nunca souberam, ele próprios, vaporizar pelos sovacos o aroma que tanto admiram, porque o idiota é exatamente isso, a projeção estúpida e idiota daquilo que os outros, por falta de tarimba ou disciplina para galgar o cume rarefeito da idiotice, sonharam um dia poder ser. E já convencido de dar-se ao sacrifício de vir a ocupar o lugar vago de o idiota do momento, o sujeito interpelado só reuniu fôlego para mais uma única de fulminante pergunta, essa que veio a ser, e se eu quiser deixar o bigode crescer, sobre isso trataremos mais adiante, a bem da verdade é que já faz algum tempo em que não temos um idiota-de-bigodes e talvez seja esse o exato momento de apresentar ao povo um novíssimo idiota-de-bigodes, talvez um idiota-de-bigodes venha a ser um idiota-de-bigodes-de-meia-idade, quem sabe até um idiota-de-bigodes-grisalhos-de-meia-idade, não deixa de ser uma excelente sugestão!


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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Fábulas: # A Loja dos Suicidas...

Um suicida entrou na loja de artigos para suicídio e perguntou ao atendente se a corda da forca era de qualidade, ao que recebeu como resposta que era sim, protocolada, inclusive, pelo órgão público que regia a satisfação dos consumidores para produtos vendidos no comércio varejista, e, ainda assim, havendo qualquer problema de fabricação, que voltasse imediatamente que a troca seria garantida, mas que duvidava peremptoriamente de que o material fosse falhar, uma vez que ontem mesmo havia vendido o mesmo produto para um velho hipocondríaco cujo nome já aparecia na sessão de obituários do jornal, veja, aqui está o obituário para que não me deixe passar por mentiroso, ótimo então, disse o suicida, mas e quanto ao patíbulo, isso não fornecemos, é de responsabilidade do consumidor providenciar onde pendurar a corda bem como uma cadeira ou coisa que o valha para equilibrar-se a fim de desequilibrar-se depois para aí sim pender pendurado pelo pescoço e enfim suicidar-se, mas isso é muito difícil, alegou o suicida, não é possível que alguém ajude-me a realizar tal procedimento, alguém da loja mesmo, quem sabe até mesmo o senhor que já está bastante acostumado com os mecanismos de incentivo da prática alheia de se ceifar a vida, definitivamente não, meu senhor, nesse caso eu me tornaria assassino, o que é, evidentemente, absurdo, uma vez que eu apenas ofereço produtos para que as pessoas se assassinem deliberadamente, o que me enche de satisfação e orgulho, uma vez que me sinto bastante realizado quando alguém decide mandar uma banana para essa vida sem sentido e sem cor que por sabe qual lá motivo nos acostumamos a amar, o senhor fala como um verdadeiro suicida, é exatamente isso o que penso, pois acha que nunca tentei me suicidar, evidentemente que sim, e várias vezes, e por que nunca o conseguiu, é essa pergunta que martela a minha cabeça dia e noite, todas as vezes em que tento engolir um veneno, cortar os pulsos, meter uma bala na cabeça, alguma coisa acontece que impede a minha ida ao além devolvendo-me a esse desgraçado ao qual já acostumei-me a ser, não seja por isso, eu poderia muito bem empurrá-lo do parapeito do meu apartamento, são quinze andares, aposto que ao chegar lá embaixo o senhor já não mais existiria, ou existiria somente a vossa carcaça estatelada ao chão, mas aí o senhor é quem se tornaria um assassino, pois eu não me importo, uma vez que logo depois seria eu a dizer adeus à vida ao fazer uso dessa corda que teria de encontrar algum lugar para amarrar e depois equilibrar-me numa cadeira ou coisa que o valha e depois desequilibrar-me para aí então pender pendurado com o pescoço asfixiado, o senhor é muito gentil, vamos fazer assim então, eu o espero até conseguir enforcar-se, depois, se tudo der certo, eu me atiro janela abaixo, poderia ser assim sim, mas, se o senhor não se importa, eu gostaria de vê-lo morto primeiro, isso me daria um empurrãozinho final, o ânimo decisivo para dar cabo da minha própria vida, então o seu desejo é matar-me jogando-me janela abaixo, de forma alguma, meu senhor, não me tome por outra coisa que não sou, meu desejo é ajudá-lo a se matar, uma vez que o senhor mesmo foi quem confessou que há tempos empaca nisso e não consegue matar-se, pois isso é o que eu tento fazer, afinal, sou eu quem vende artigos para suicidas e não o senhor, disso não posso contrariá-lo, então ponha-se daqui para fora e não me aborreça mais, farei isso sim e desculpe-me por aborrecê-lo, e ficaria muito grato caso o senhor soubesse de uma vaga para trabalhar como vendedor nessa sua loja de artigos para suicidas e pudesse eu, quem sabe, vir a ocupá-la, para isso acontecer teria que me matar, meu senhor, a loja só tem vaga para um único vendedor que sou eu, não seja por isso, para que essa arma, não se assuste, eu só vou puxar o gatilho, ajudá-lo a se matar, exatamente como o senhor sempre o quis, mas isso o tornaria um assassino, e qual é a diferença entre matar os outros por tabela e matá-los diretamente, a diferença é enorme, pois eu não vejo a coisa assim e além disso eu preciso de um emprego, portanto, foi um prazer conhecê-lo meu senhor, e tenho certeza de que a corda me seria muito útil caso fosse eu a querer aparecer amanhã nas páginas dos obituários...

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Árido Fim de Guilhermina Gólgota...

Encontrou-se a solução para as torneiras secas: Guilhermina Gólgota. Bastava a cantora lírica que lembrava garganta no nome soltar o gogó para fazer verter água pelos canos. E Guilhermina Gólgota fora durante muitos anos requisitada aos mais diversos fins, transformando desertos em represas caudalosas, riachos em corredeiras espumantes, poças em lagos de margens largas, e até mesmo emprestando suas árias e arpejos às campanhas dos políticos que utilizavam de seu nome para dizer que quem tem Guilhermina dá-se ao luxo de dispensar os labores invisíveis de São Pedro. Mas esqueceram-se de que é também da qualidade do ser humano - e Guilhermina Gólgota não furtava-se de tal alcunha imposta pelo destino -, secar. E Guilhermina, a medida que o tempo passava, ia ela própria secando, murchando feito uma uva-passa de ceia de natal. E embora sua voz ainda permanecesse altiva e eficientíssima no cumprimento da tarefa que lhe deu prestígio, chegou o momento em que a aridez subiu uma oitava e lhe surrupiou a alma, e junto com ela a garganta. Desde então os tempos de augúrio vaticinado pelos pessimistas fez-se palpável. E já não há agora um único miserável esperançoso que debaixo do chuveiro inoperante não tente imitar o zelo operístico de Guilhermina Gólgota numa triste expectativa piedosa de que alguma gota possa compadecer-se desse nauseabundo fedor digno de alguma apoteose apocalíptica
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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Uma solução para a cegueira...

Cônscia de que as suas lentes de aumento oculares não faziam enxergar o mais bem intencionado dos mentecaptos, a empresa tratou de enveredar para outro ramo e começou a produzir tapadeiras acústicas para as orelhas, no que alcançou um resultado estupendo, uma vez que privados dos zumbidos descartáveis da vida, até mesmo o mais teimoso dos mentecaptos estrábicos voltava a enxergar, senão até a lonjura do horizonte, ao menos até a distância da verruga que lhe brotava na ponta úmida do nariz batatudo...
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Fábulas: # O pronunciamento de Tobias Paschoaletto...

Tobias Paschoaletto chegou ao parquinho de diversões escoltado por toda a sorte de repórteres e homens abastados da imprensa investigativa para aquilo de deveria ser uma imperiosa revelação: tomaria sozinho assento na roda-gigante do local e quando lá em cima no topo rarefeito chegasse proclamaria aos ventos uma verdade incontestável que a todos pairava subtraída pelo véu viciado dos pés soterrados ao chão, porém não contara ele, o pobre Tobias Paschoaletto, com a cadência ininterrupta da engenhoca redonda, obliterando, portanto, uma parada completa lá do alto para que assim finalmente pudesse tomar fôlego e despejar o verbo para o registro da massa critica que debaixo empinava seus queixos curiosos, e tampouco dera-se conta da velocidade que a esfera metálica empreendia nas suas voltas repetidas, coisa realmente - não se sabe se por conta de algum sabotador que escolhera aquele exato instante para vingar-se do Paschoaletto ou mesmo por mero defeito a que todas as traquitanas estão sujeitas - excedia os padrões normais, fato que, consumado o périplo, desembocou no registro de uma única e derradeira frase entremeada por golfadas de suspiro desesperado e onde se lia:

- Deixe-me descer dessa maldita geringonça...!

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