segunda-feira, 30 de junho de 2014

Diálogos filosóficos: #Sejas Natural!

Ao ator de gestos expressionistas e voz cavernosa pediram que fosse natural, ao que ele respondeu ser naturalmente impossível, haja vista que tudo o que é natural foge à mentira a que se propõe a ficção, concordamos nisso, disseram, mas se a ficção parte da vida e a vida é aquilo que podemos ver e sentir como coisas naturais, é seu dever também eliminar os exageros a ponto de poder ser verdadeiro nas suas ações, a verdade é terreno impossível, contra atacou, e ainda que eu a tentasse raspar estaria incorrendo naquilo que acredito, ou seja, na mentira forjada pelos meios a que disponho. Então a vida para você não é o que ela é, ou melhor, é isso que afirma ser: uma grande farsa? Sem dúvida alguma ela é o que ela é: um teatro de proporções gigantescas, e meu respeito a ela é uma mera formalidade, sem reivindicações outras senão nutrir-me das suas idiossincrasias aumentando um pouco o volume daquilo que por si só já se mostra fora de qualquer equilíbrio, mas nunca lhe passou pela cabeça agir de forma simples e sem enfeites para poder comunicar uma simples ideia? E desde quando é matéria do meu ofício ser simples? ou melhor, a simplicidade evidentemente é uma qualidade almejada por todos nós, ainda que seja o atributo mais difícil a ser alcançado, mas o que me pede, se eu bem entendi, é outra coisa, mais ou menos isso: seja direto! Isso mesmo! Porque dar curvas ao redor de um sentimento genuíno que é o que mais importa para um artista? Novamente essa história de verdade! Nada em mim é genuíno. Em nada sou transparente. O meu sentimento nunca esteve em jogo, e se há algum desejo que me acompanha, a ele dou o nome de invisibilidade. Pois então como é que você se propõe a emocionar as outras pessoas se a si próprio nomeia essa absurda característica de insensibilidade? Emocionar as outras pessoas? Nunca quis isso, meu trabalho não é fazer derramar lágrimas, se como resultado do meu ofício isso ocorrer, em nada tenho eu responsabilidade! E o que faz, então? Por que resolveu ser artista? Respostas, é o que me pede sempre com suas perguntas! Eu não as tenho, essa especialmente é impossível de responder. Existo, ou tento existir, dou forma a um discurso ao invés de tentar decifrá-lo, sou uma parte do mundo e não o mundo inteiro, e isso basta para mim: fazer a manutenção do mistério. Não te entendo. Bom, já temos um começo...


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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Já sou quem sou

Alguém esse que não sei

Pouco me importa se sei quem sou

Sou e pronto

Meu alvo é a periferia de mim

Existir é isso

Saber que existo

Dando-me conta de que o mistério da alma é pequeno

Frente ao mistério

Do mundo


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quarta-feira, 25 de junho de 2014

Estive sempre alheio de mim

E vendo-me assim

Eu que vejo vendo

Vi o que precisava ver

Os contornos que da minha alma vazia

Montavam a certeza de que vazio eu sou

Só certo daquilo que há para se saber que existir é coisa simples

Quase como um ir e vir

Sem maior razão

Ou sentindo 


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Não preciso querer ser para que seja

Forçar-me a existir para quê

Se o simples fato de saber que existo já me faz aqui

Presente ainda que não o queira?

Não posso fugir a ser o que sou

Ainda que outro invente

Serei sempre eu

Não outro diferente 

Só o mesmo de mim 

Inventado


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terça-feira, 10 de junho de 2014

Objetos de preciosidade ainda desconhecida: # O livro de imprecações dojornaleiro de bigodes parecidos com duas taturanas siamesas


O jornaleiro de bigodes parecidos com duas taturanas siamesas sonhava em mandar o mundo às favas, imprecar palavrões a todos os idiotas que saíam de suas casas para comprar em sua banca aquelas revistas idiotas cuja temática idiota girava ao redor de personalidades tão idiotas quanto àqueles que por elas se interessavam, mas, sabia por contingência dos anos acumulados que as palavras faladas servem muito bem à farsa da vida, cabendo-lhes perfeitamente o atributo de arautos supremos das mentiras que diariamente contamos para sustentar esses personagens idiotas que de forma ou de outra nos trazem a necessária tranquilidade para continuarmos encenando os dias que nos restam; portanto, desperdiçar verdades com palavras proferidas seria o mesmo que monologar ao vento, provavelmente fazendo dele próprio, o jornaleiro de bigodes parecidos com duas taturanas siamesas, o alvo maior das risadas daqueles que sendo idiotas desde o início dos seus mais tenros dias mal suspeitavam que idiotas continuariam a ser até findo o espetáculo, ainda que por idiotas tomassem os outros e nunca a si próprios; portanto, como um bom espectador atento ao fluxo da trama, tratou de aquietar-se com o intuito de se dedicar a escrever um livro munido de todos os insultos acumulados em sua rotina imprestável de vendedor de idiotices, e embora não fôssemos nós também um jornaleiro de bigodes parecidos com duas taturanas siamesas, perfeitamente colocaríamos-nos no lugar deste que sendo o que era, ou seja, um reles jornaleiro de bigodes parecidos com duas taturanas siamesas, soube com seu pequeno cenário de arbitrariedades falar a qualquer condição idiota de existência a qual estamos mais do que habituados a frequentar seja por teimosia distraída ou mesmo por talento inequívoco; e, sabendo que a palavra escrita guarda em seu mudo segredo a propriedade de sinceridade que falta ao gogó, pousou o seu volume autoral em uma prateleira central da sua banca de jornal, chegando-nos a informação de que até o presente momento, ao menos no que se tem conhecimento, não foi registrado nenhum pobre diabo que tenha folheado aquele diário original de banalidades transcritas, tão verdadeiro em seu conteúdo quanto a vacuidade daqueles que incessantemente cruzavam as esquinas onde a banca do jornaleiro de bigodes parecidos com taturanas siamesas jazia. Resta-nos darmos tempo ao tempo ou então morrer junto com ele, nessa lenta e triste cadência do fechar das cortinas que na sua maioria das vezes não dá sentido ou significado a nada, talvez sendo esse o seu único e maior sentido possível.

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sábado, 7 de junho de 2014

Prisioneiros de gabarito: # A história de sucesso de Sebastião Lotardo, o ladrão de galinhas


O ladrão de galinhas Sebastião Lotardo após incontáveis sessões no tribunal de justiça em razão da frequente recorrência de seus crimes baratos fora perguntado pelo juiz Maciel Malaquias se sabia que dali por diante somente um delito de graves proporções daria conta de fazer o réu retornar à prisão haja vista que todos já estavam por demais cientes da tática de Sebastião Lotardo que uma vez livre do cárcere repetia em liberdade pequenas infrações sob o pretexto de ser novamente capturado e se manter confortavelmente preso na penitenciária municipal local cujo lar montara desde que havia percebido o perigo de vagar à solta por essas bandas cruéis do mundo o que foi respondido não por palavras mas por uma atitude nunca antes imaginada por todos os presentes no tribunal de justiça já que nem bem o juiz Maciel Malaquias terminou sua arguição o ladrão de galinhas Sebastião Lotardo pulou no seu pescoço e lhe cravou na jugular um clip de metal que dera jeito de esconder por entre as mangas e caindo ao chão todo esguichado de sangue o juiz ainda teve forças antes de morrer para decretar a prisão perpétua do ex ladrão de galinhas Sebastião Lotardo e agora assassino consumado além de protegido até a morte dos perigos de pairar sem destino pelas ruas sem futuro do mundo.

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Será que o absurdo é haver absurdo
Ou sou eu 
Que incapaz de suportar o doce murmúrio das folhas nas árvores
Invento barulho
E torno-me surdo?

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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Tragédias inesperadas: # O fim precoce do tragediógrado Sófilus Antónius.


Sobre a morte precoce do promissor tragediógrafo Sófilus Antónius muito se conjecturou; alguns metidos a filósofos diziam que a alma de Sófilus Antónius não era afeita a grandes emoções e por isso traindo o próprio dono ao surrupiar-lhe a flor da existência antes mesmo dos beija-flores sorverem seu necessário néctar bastante raro nesse mundo atual de zangões da arte; outros associavam a uma grave constipação intestinal seguida por uma irreversível hemorragia do trato excretor a moléstia que levou Sófilus Antónius a evacuar cedo demais para o anonimato privilegiado dos defuntos; enfim, tanto fazendo uma quanto outra hipótese – deixando a nós a imaginação de considerar outras tantas – o fato mesmo é que o tragediógrafo Sófilus Antónius morreu antes disso, e foi mesmo de desgosto profundo, isso porque logo na sua peça de estréia, cujo destino quis que fosse também a última, Sófilus Antónius capturou um único embora grave erro do protagonista que ao invés de urrar o típico ‘Ai de mim’ das personagens já a beira do abismo fatal incluiu um ‘s’ inexistente, talvez por uma sibilação involuntária em razão do cansaço bastante compreensível de quem já por tantas horas carregava nas costas o piano das dores metafísicas, soltando um curioso ‘Sai de mim!’ e dando a entender, embora o texto de Sófilus Antónius, jamais quisesse dizer isso, que houvesse um encosto a grudar na alma da personagem sendo justamente ele (ou ela), esse tal encosto invisível, o responsável por todas as agruras que originalmente encosto nenhum, senão o destino, era responsável por causar. Imediatamente, ao ouvir a evocação demoníaca do pobre protagonista, Sófilus Antónius, devidamente postado em seu camarote no teatro, soltou uma tremenda gargalhada interrompendo imediatamente o espetáculo até o instante em que o autor da interferência fosse retirado a força da sala para a continuidade da encenação, terminando ela sem maiores intercorrências e tampouco sem a percepção do público para aquilo que só o tragediógrafo Sófilus Antónius pôde notar, a tal da sibilação criminosa que fizera toda sua peça naufragar, pelo menos para ele, num único estalo de dedos. Nunca mais conseguiu escrever texto dramático algum, e nas vezes em que ia ao teatro para procurar inspiração em peças de autores diversos inevitavelmente rompia em risadas extravagantes em momentos nada risíveis, lembrando do evento fatídico responsável por arruinar toda uma primavera promissora.

Obs: o ator autor do sibilo involuntário continua sua profícua carreira nos palcos.


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quarta-feira, 4 de junho de 2014

Destinos recusados por aventuras frustrantes: # A personagem voluntariosa.


Triste esse episódio em que uma personagem qualquer de um conto de gramática realista (e por demais descritiva) resolveu renunciar ao excesso de detalhes e minúcias sem importância para, uma vez longe das páginas, aportar no palco dramático imaginando lá colher alguma liberdade que lhe faltava pelas andanças dos mudos parágrafos. Arrependeu-se como arrepende-se quem não consegue reconhecer as benesses da própria morada indo despejar no vizinho a solução das frustrações que dependem menos da grama do quintal estrangeiro do que do cuidado com as ervas daninhas alimentadas no próprio coração. Tendo de repetir-se diariamente e ao menos durante quatro vezes por semana, e ainda refém de um ator nada talentoso que fazia questão de inventar sentido onde não havia, condenado ficou ao exercício infinito de convencer a plateia de que ele não era aquele que lhe pintavam ser, mas outro muito mais digno, exatamente como o era na literatura, tarde percebia ele, ainda que pequeno e cercado por fronteiras bastante sufocadoras.

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Premiações exemplares: # A cerimônia de entrega do troféu ao ator virtuose Alaor Coimbra.


Logo após derramar lágrimas em seu discurso de agradecimento pela conquista do cobiçado troféu dos melhores do ano, o ator virtuose Alaor Coimbra fora conduzido ainda emocionado ao patíbulo que ficava a poucos passos do palco principal e, sem maiores cerimônias, enforcado aos olhos da numerosa plateia. Os aplausos e assobios ressoaram ainda mais estridentes. A vaidade escondida sob o falso véu da competência, segundo a lei da pequena cidade de Monte-Sábios, era crime capital punido com o exemplo da invisibilidade eterna. O troféu agora sem dono novamente pendia no púlpido dos agraciados e a espera do ano seguinte quando um novo eleito receberia a graça do mesmo prêmio que por rápidos instantes pertencera ao ator virtuose, hoje finado por méritos inegáveis, Alaor Coimbra. 


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terça-feira, 3 de junho de 2014

Práticas altruístas de egoísmos elementares: # O ator de plateias vazias.


Quando Archimedes da Ribalta morreu ninguém o tinha visto, não naquilo que concerne a sua pessoa física, isso não! – Archimedes da Ribalta era um homem simples de hábitos regulares e quem o quisesse acompanhar em seu escrutínio diário e meticuloso que se colocasse como espectador na rua em que o velho ator morava, todos os dias palco anônimo de suas idas e vindas, ainda que sem aquele recurso dramático das cortinas caindo ao final sob o ressoar dos aplausos. O que se sabe era que Archimedes da Ribalta era um excelente ator, mas isso só ele sabia, mantendo em recluso segredo as suas habilidades histriônicas ao recusar peremptoriamente receber plateia em seu pequeno teatro, tampouco admitindo dividir o palco com companheiros de labuta. Só a ele e somente a ele, Archimedes da Ribalta, era permitido habitar em seu recanto de imaginação teatral. Em dias de espetáculo, as ruas adjacentes ao pequeno edifício de esquina permaneciam lotadas de curiosos, todos do lado de fora como formigas diminutas tremendo ao frio, esperando o momento exato em que as luzes se apagariam para ver sair de seu interior aquele homem já prostrado em anos e todo enrolado em seu cachecol, compelido a seguir em silêncio até sua casa. O cortejo o acompanhava, imaginando qual tragédia acabara de interpretar. Quando finalmente morreu, uma lápide em mármore raro foi erigida em sua homenagem, superfície cujas linhas inscritas assim proclamavam em mudo lamento:

‘Aqui jaz Archimedes da Ribalta, tão bom ator que conseguiu preservar o mistério de seu talento até o infinito das sombras poéticas. O que importa que nunca o tenhamos visto?’

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Situações de crise: # O personagem em greve não anunciada.


Soube-se por fontes escusas que um determinado personagem de uma tragédia encenada nalgum teatro da cidade do interior entrara em greve, recusando-se a continuar servindo de plataforma às lágrimas melodramáticas do ator responsável por lhe dar vida no palco. E tudo isso repentinamente, as vésperas de uma nova sessão. Acusando todos os atores de formarem uma raça de completos falastrões mentirosos, arrumou então as malas e munido daquela dignidade invejada só possível às figuras invisíveis, foi-se embora ainda debaixo do ressoar do terceiro sinal. Como não havia maneiras de cancelar o espetáculo daquela fatídica noite, o ator órfão, apartado definitivamente de seu colega fictício, entrou aos empurrões em cena, dessa vez completamente vazio de sentimentos e a exemplo de um equilibrista que vê durante seu número a rede de segurança ser retirada do fundo infinito dos seus pés. Os aplausos foram estrondosos. E ao final do espetáculo constatou-se obter o melhor dos desempenhos possíveis, chegando inclusive a angariar o principal troféu que era distribuído anualmente aos intérpretes dramáticos mais competentes do interior.

Quanto ao personagem desertor, pouco se sabe de seu destino. Sumiu.


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Histórias Jurídicas # O imbróglio entre biógrafo e biografado.


Ao receber em mãos a sua própria biografia escrita pelo biógrafo Prachedes dos Campos Neves o cantor de baladas e xaxados românticos Roberval Carloto exigiu imediata retratação do autor justificando que a sua vida íntima ou pública não era matéria de retratos melosos ou libidinosos ao que Prachedes dos Campos Neves respondeu elegantemente dizendo que melosa era exatamente a qualidade das canções que ele o cantor de baladas e xaxados românticos Roberval Carloto cantara durante toda a sua extensa e melodramática vida e libidinoso seria proibir todo o qualquer curioso de perscrutar as entranhas íntimas e públicas daquele que ficara na história como o mais importante cantor de baladas e xaxados românticos de todos os tempos. Munido de toda uma junta composta de advogados e estudiosos da lei o cantor de baladas e xaxados românticos deu conta de retirar das livrarias a sua biografia não autorizada e processar o seu biógrafo o senhor Prachedes dos campos Neves por injúria e difamação uma vez que um cantor de baladas e xaxados românticos – como o próprio termo denota - não tem como obrigação outra senão a de cantar baladas e xaxados românticos a quem os queira ouvir adquirindo ele todo e qualquer direito de sumir aos olhos alheios preservando a sua mais total intimidade seja ela melodramática ou não ao que o biógrafo respondeu indignado dizendo que faria da sua própria história de recusa um baita melodrama sendo ele próprio o biógrafo de si mesmo nessa biografia mais do que autorizada a respeito do biografado que injuriado pelo biógrafo fez dele o senhor Prachedes dos Campos Neves uma perfeita personagem romântica dançando num xaxado de baladas censuradas.

O livro foi lançado e acredita-se que venderá mais do que a biografia recusada e proibida, para a graça do senhor Prachedes dos Campos Neves, que a partir de agora só aceita biografar a si próprio, ainda que não saiba - e nunca tenha sabido - cantar baladas ou xaxados românticos.  



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