segunda-feira, 29 de abril de 2013

QUEM É VOCÊ?...



Se até Shakespeare dizem que não foi Shakespeare de verdade, quem diria...
Por que há tantos milhares de Josés e Marias
Todos sedentos por ser alguém um dia?

Enquanto a humanidade pavoneia-se para entrar nos umbrais da eternidade
Há quem desse teatro fuja
E no esconderijo da aparência 
Encontre a sua verdadeira essência 
E, se some das vistas alheias, é para fazer ver
Não a si
Mas ao que é urgente saber...

Enquanto uns morrem sendo vistos
Outros são vistos por antes terem morrido
Os primeiros são imediatamente esquecidos
Os segundos são os que ficam
E é a eles que não temos como não ser
Eternamente
Agradecidos...

...

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UM GORDO DORMINDO NA COXIA...



Há um senhor gordo que dorme na coxia
Enquanto a vida descansa sob os refletores da poesia
Ali, no escuro e sem ser visto
Descansa ele
O gordo senhor
Roncando em louvor
Ao esconderijo da coxia...

Ainda se o seu descanso fosse coisa merecida!
Porque isso, digo, é causa ganha:
Quem carrega ao teatro a preguiça da vida
À poesia estranha
Devendo, para tanto
Sonhar na cama, e lá ficar
Até, quem sabe,
A sentença dos dias
Essa que a todos reclama
Venha ao preguiçoso pedir para dançar...

O descanso da arte é estar desperto
Ou, antes
Despertar
Mentindo e fazendo mentir
Para as verdades sonolentas que não vemos
Revelar...

Alguém diga isso ao gordo senhor
Antes que a cortina caia, por favor
E o que sobre disso tudo seja só então
Silêncio
De uma tragédia sem dor...

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NÓS E O TEMPO...



Há uma consciência cravada em nós
De que o tempo avança 
E por ele avançamos nós
Ou, antes, nós o fazemos avançar
Avançando ambos, nós e ele
Para algum lugar...

Há uma cegueira operando em nós
Uma que não vê que o tempo
É coisa circular
Com ele dando voltas
Ou, antes, volta nele damos
Sem parar
E circulando vamos
Nós com ele
Sem nunca
Sair
Do
Lugar...

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sábado, 27 de abril de 2013

UM FIO BRANCO...


O fio branco
Que por um fio se fia
Lembra-me de que jovem fui
Lá atras, 
Um dia...

O fio branco
Que na cabeça não quis 
Lembra-me de que outrora fora,
Por um tempo
Ingênuo aprendiz...

O fio branco
Que agora carrego
Lembra-me de que hoje o tenho
E ainda que não o deseje,
O que faço?
O corto pela raiz...

Pobre de mim
Que de caneta em punho
Safar do destino tento
Driblando com verso
O que o futuro prediz...

Pobre de mim
Que dum idiota cabelo
Faço poema
Um cujo tema da grandeza foge
Não podendo fugir eu
Do tempo que escorre...

O fio branco
Que entre tantos aparece
Lembra-me do que a vida não esquece
Alvo seu viro agora
Mais um entre outros
Que se vive, esmorece...

Só um fio branco
Só uma lembrança:
A vida pende frágil numa beira
Corda bamba a se equilibrar
E ainda que não queira
Com ela hei de passar...

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ELEMENTAR MEU CARO WATSON...



O óvio é negócio que passa na frente dos óio
Num é óvin, ET d'outro mundo
É coisa de frente, evidente...
Mas o óvio é tão patente
Que quem o vê 
Se passa por gente que mente...
E assim continua a vida:
Um bando de nóis a ficar oiando pro céu
A nave que num chega
Lá no mirante
Enquanto ao lado se passa ao léu
O famigerado
Óvio Ululante...

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SIMPLES ASSIM...



O Simples simples fica quando antes de simples complica
Porque para simples ficar
O complicado há de reinar
Ou ter reinado
Para, aí sim, dar lugar ao simples entronado...
Nada simples reina de imediato
Primeiro o simples há de ser complicado
Assim como a vida
Coisa difícil e enrolada
Que só simples fica, quando
Vazia

Ao confuso renuncia 
Sobrando, portanto
Pouco
Ou quase

Nada...

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sexta-feira, 26 de abril de 2013

NÓS, E A PRAÇA...




O que fazem aquelas pessoas se ajuntando na praça?
Angariando opiniões, discutindo assuntos, propondo mudanças...
Suponho.
Mas será possível? 
Quantas outras tantas praças não foram juntadas, com o dobro de pessoas, todas com as maiores boas intenções, marchando em verborragia, ou marchando de fato - sempre em círculos, parece - para fazer do mundo um lugar melhor...
A história humana poderia se resumir a uma praça
Com um bando de nós a juntar-se, a darem as mãos, a gritar em uníssono
E milhares de bandeiras, tremulando ao vento, com nossas inventivas progressistas.
Recolho-me.
A minha reivindicação é na solidão, e pela solidão
Na certeza dessa condição de profundo anonimato
Sem quem me represente
Sem que me seja preciso representar alguém...
Muitos diriam:
- Seu misantropo pessimista de uma figa! Ególatra extravagante aristocrata!
Devolvo:
Em que vossas aglomerações humanitárias puderam tirar-nos da miséria em que sempre estivemos?
É certo que alguns passos rumo ao conforto e à civilidade foram de fato dados,
Mas poderia listar milhares de outros retrocessos que vieram na carona de cada uma dessas conquistas públicas.
Ao querer reunir forças,
Viramos cegos
Tapados
Ditadores sem o perceber.
Prefiro investir na fraqueza
Essa que me foi dada sem que esforço algum houvesse
Contento-me em estar vivo, e a lidar da melhor forma possível com esse difícil desafio que é passar pelo tempo
Para isso é necessário mais coragem que inteligência
Coragem de vagar só
Talvez como a própria natureza nos ensina sem que saibamos ver...

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ÀS VEZES É POUCO, E PONTO...



Às vezes a vida é um dia
Um acorde toda uma sinfonia
Às vezes o pedaço é o laço
Que ata o sentido que há por haver
À totalidade do espaço... 
Às vezes é o minguante que faz a lua
Que se cheia não seria tão linda
Às vezes é a parte que é bem vinda
E o todo um difícil esforço
Às vezes um capítulo é o livro
E uma linha o capítulo
Às vezes é a palavra quem salva
Ou mesmo um ponto que encerra tudo:
'.'
Às vezes
É isso
E

E
Ponto...
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quinta-feira, 25 de abril de 2013

UM DIA, UM DE MIM, EXISTIU...




O cachorro que bravo latia
Fez-me lembrar quão doce era
A infância que eu tinha

Pelas ruas nuas de terra molhada
Terrenos baldios
Sem carro nem nada

Será impressão minha ou o ar outro também era...?
Colorido parecia
Hoje me falta, a cor que outrora havia

E o tanto de correria que podia?
E nunca atrasava
Porque o tempo era história
Coisa da carochinha

O cachorro que bravo latia
Agora ficou para trás
Já latiu...
E eu que voltando a pé pra casa
Não vejo mais nada
De um de mim
Que um dia
Existiu...

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES: #O fim da bibliotecária da Biblioteca-de-um-Livro-Só, Dona Olívia dos Tomos.




A dona Olívia dos Tomos era a bibliotecária da Biblioteca-de-um-Livro-Só, e, de fato, ela, a dona Olívia dos Tomos, tomava conta desse que era o único livro da Biblioteca-de-um-Livro-Só, coisa que lhe exigia muitíssimo esforço, não para realocar os livros nas estantes, haja vista que, como já dissemos, não havia livros, muito menos estantes para os livros, mas um só, e numa única e solitária estante, onde o único livro da Biblioteca-de-um-Livro-Só jazia, ele cujo cuidado estava a cargo dela, a dona Olívia dos Tomos. O cuidado a que ela tinha em se ater era justamente o de gerenciar a gigantesca fila de candidatos que se formava nos arredores da Biblioteca-de-um-Livro-Só, uma vez que a disputa por folhear o único livro da biblioteca exigia de dona Olívia dos Tomos um esforço hercúleo, e, não fosse pelo curioso desfecho dos que haviam por finalmente conseguir folhear o tal livro da tal Biblioteca-de-um-Livro-Só, o trabalho dela, da dona Olívia dos Tomos, seria, sem dúvida nenhuma potencializado, isso porque todos os que finalmente haviam por conseguir folhear o tal livro da tal Biblioteca-de-um-Livro-Só morriam, se não imediatamente, no instante seguinte em que arregalavam os olhos de paixão pelo que viam impresso no disputado livro, e, se uma coisa podemos dizer disso tudo, é que todos os que folheavam o tal livro da Biblioteca-de-um-Livro-Só invariavelmente arregalavam os olhos, e, portanto, morriam. Assim, a bibliotecária da Biblioteca-de-um-Livro-Só, a dona Olívia dos Tomos, preocupava-se somente com a entrada dos candidatos por folhear o único livro da biblioteca, uma vez que a sua saída era de responsabilidade da firma de necrotérios Fim-Sumário, empresa que há muito houvera feito parceria com a Biblioteca-de-um-Livro-Só, haja vista a enorme demanda de defuntos que recebia diariamente pelo telefonema atarantado da bibliotecária da Biblioteca-de-um-Livro-Só, a dona Olívia dos Tomos. O tempo foi passando e todos da cidade foram morrendo, haja vista que não havia um pobre diabo que não houvesse por objetivo de vida folhear o tal misterioso livro da Biblioteca-de-um-Livro-Só, livro esse que, como dissemos, provocava olhos arregalados aos que o folheavam, e, por conta disso, seguia-se uma morte fulminante, o que abria um mercado de trabalho de profícuos rendimentos à firma de necrotérios Fim-Sumário, empresa que há muito houvera feito parceria com a Biblioteca-de-um-Livro-Só. Tantos morreram nessa brincadeira, ou melhor, todos morreram, exceto ela, a bibliotecária da Biblioteca-de-um-Livro-Só, a dona Olívia dos Tomos, que, já velhinha e caquética de tudo, já não tinha mais com que se ocupar, haja vista que não havia mais um único candidato a folhear o tal misterioso livro da tal misteriosa Biblioteca-de-um-Livro-Só. Assim, embebida em curiosidade por saber o que havia impresso dentro daquelas misteriosas páginas há tanto frequentadas por defuntos já idos, e, portanto, mudos, ela, a dona Olívia dos Tomos, reuniu coragem e se arrastou, levando junto o peso da sua velhice, para perto do tal misterioso livro, mas, antes de abri-lo, teve um piripaque cardíaco - imaginando nós em razão da enorme emoção por finalmente saber o que durante tantos anos protegeu como segredo dos que haviam por curiosidade descobrir -, e morreu ali mesmo, na Biblioteca-de-um-Livro-Só, sem que houvesse coveiro que sepultasse o seu corpo, haja vista que não havia raça mais curiosa que a dos coveiros, e, portanto, todos os coveiros há muito já estavam habitando as moradas eternas que durante a vida construíam para os que morriam. Esse é o fim da dona Olívia dos Tomos, bem como o fim da misteriosa Biblioteca-de-um-Livro-Só. Esse é também o fim das esperanças por descobrir o que havia dentro daquelas páginas que matava quem as lia.

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UM ATOR DÊ(A) VERDADE...



Por piedade
Ainda em tempo
Surgiu um ator de verdade!
Ele, surpreso com a mentira que via 
Foi logo dizendo aos colegas picaretas que conhecia:
Ora, tenham paciência! 
Vocês só fazem caretas! 
Torcem seus narizes com tal leviandade!
Inventam sentimentos sem que os saibam inventar
Imaginando o que não tem por imaginar!
Copiam a vida com tal negligência que viram vocês o motivo da chacota
Sem que o saibam, naturalmente,
Preocupados que estão com a aparência
Obliteram a ridícula qualidade de tamanha decadência...
Ora, tenham a santa paciência!
Deixem a mim a tarefa de mentir!
Vocês são por demais verdadeiros
Translúcidos na fraude que sustentam,
Sem que entendam disso, obviamente...
Convictos do talento que não alimentam!

E assim,
Embebido em crueldade
Surgiu, enfim
Um ator que dissesse a verdade
Não ao mundo, que há muito mentiroso entende-se por tal
Mas aos seus pares atores
Que mentirosos
Nunca souberam o quanto mentiam mal

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QUEM ME LÊ?



Se autor morto é autor lido
Morro agora 
Sem defunto ser
Ou ter sido
Isso porque já ressuscito 
E outra vez vivo 
Pergunto a ti, leitor amigo:
Me leu?
Duvido!
E assim vou indo
Escrevendo e vivendo
Sem um diabo que seja
Que me haja lendo
Seja Vivo
Morto
Ou morrendo

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quarta-feira, 24 de abril de 2013

ROMÂNTICOS! ROMÂNTICOS!



Ah, me entrego!
Sou da turma dos românticos
Dos trovões e trovoadas
Sangue fervendo na veia
Pela sarjeta enlameada...
Como ser clássico
Barroco ou moderno
Quando quem manda é a alma
Essa senhora inconstante
De coração pulsante
Variando em variantes
Hoje melancólica
Outrora vibrante?
Como economizar sabedorias
Ou rezar Ave Marias
Se quem rege o milagre é o homem diletante
Sozinho e delirante
Pelas alamedas perigosas da vida?
Ah, me entrego!
Sou dos românticos
Equilibrista no precipício dos sentimentos
Camaleão de horas cadentes
Impossível economizar
Quando o verbo é amar
Ou Odiar
Vituperar
Piruetear pelo ar
Ar!
Ar!
Deem-me mais
Um pouco mais
de
Ar!

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PRECE PRÓ-CÃO...



Senhor, peço-te um favor
Nunca deixe-me distante de um labrador
Preto, marrom ou bege
Um que seja 
Se responder ao meu clamor
Prometo:
Volto para igreja
E nunca mais serei 

Herege!

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PALHAÇO DE OCASIÃO...



Pediram-me para representar
E eu disse:
Mais?
- Ora, representas agora?
Claro, respondi
Porque acham que estou aqui
A fingir decência numa reunião de imbecis? 
Queriam rir, mas não riram
É sempre da mentira que tiram partido
Da verdade, nunca!

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LIVRARIA...



Num café de uma livraria vazia
Folheava um livro que na mesa jazia 
Açúcar não tinha
Café puro era o que bebia
Páginas em branco
Como na vida que via
Nessa livraria vazia
Nenhuma viva alma
Havia

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PELOTÃO, ALTO!



Tenho lampejos de coronel 
Eu, vestido com um baita chapéu
A berrar ordens pelo bocal duma corneta
E lá adiante todo um quartel
A bater continência
Em minha espectral reverência...
Pena que é sonho
Essa coisa de coronel
Tão logo ponho-me de pé
E mandam-me eles
Toda uma infantaria da vida
Ao recanto do beleléu

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1800...



Acusam-me de atrasado
Um apátrida do reino do contemporâneo 
E se eu nasci errado 
Todo enjeitado nas canduras do passado?
Nesse caso sou profeta
Que veio ao futuro salvar os displicentes
Esses que não pensam noutra coisa
Senão nas demandas do presente...
Se tinjo de sépia o que vejo
É mania de nostalgia
O resto é tragédia
De tentar e não poder mais
Remar e voltar para traz...

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VERDADE...



O que é a verdade senão um ultraje 
Veneno sinistro que aos loucos corrompe
Antes mentindo do que haver por coragem
Quem dele tome
E da vida desfaça
Toda a sua 
Miragem...

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SINFONIA!...




E de repente o sentido que ousa nos fugir
Sentido encontra 
Num simples parar para ouvir
No sopro o clamor de uma coragem
No ferir das cordas toda uma melancolia
Tudo isso há numa sinfonia
A vida mentida, soprada e sentida
Que no som ganha autonomia
Uma vida mais sincera 
Que aquela vista através da janela
Quisera eu abandonar as letras
Quimeras silenciosas de pouco alcance
E inventar nuances 
De partituras dançantes
E com isso poupar a quem me lê 
Dos labirintos do entendimento
Afrouxando as amarras dos argumentos
Livrando a mim e aos outros desse tormento 
Que é viver lendo
Traduzindo e entendendo
Quem dera eu com esse talento ter nascido 
O de somente ouvir
E ser ouvido


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A VIDA QUE NÃO TENHO...



Meu assunto é a poesia
Falar da vida não saberia
Mas, para verso fazer - santa contradição!
É preciso viver
Então, um pouco vivo
O suficiente, somente, para não gastar... 
O meu viver, melhor dizendo
É ver os outros vivendo
E isso já é vida o bastante
Para à página tornar e nela fazer
A vida que não tenho
Assim é que me entendo:
Poetizando a poesia
Inventando um existir que dos outros tomo emprestado
E, talvez, esse seja um jeito de amar
Ou ser amado
A certeza que fica é que saberia-me ultrajado
Se da mentira houver quem me proíba
Incitando-me a essa triste verdade fora dela

Só cabível na frequência inelutável da vida...

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INÚTIL, SOU...



Por mais fútil que pareça
Confesso:
Sou inútil, por isso o verso
Não ergo pontes
Não curo doentes
Livrar-te da cadeia não posso 
Tratar dos dentes?
Vá ao dentista!
Sou antes um malabarista
Equilibrando-me na lonjura da utilidade
É isso:
Na maturidade dessa minha idade
Confesso:
Perdi o direito, ou a vontade
De para alguma coisa servir
Mas, cuidado!
Quer se divertir?
Vá ao circo!
Lá tenho eu cara de Pedro-Mico?
Ora veja
Quando digo que sou filósofo do nada
Já tomam a mim por caçoada...

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POR QUE, MEU CÃO? POR QUE?



Perguntei ao meu cão porque o rabo balançava 
Disse-me: por que não?
Ou melhor
Disse-me nada...
Rabo é coisa de se balançar 
Balança por balançar 
Um jeito assim de gostar
Sem explicar...
Perguntei ao meu cão porque de mim gostava
Disse-me: porque sim
Ou melhor
Disse-me nada
No seu silêncio filosofava...
Perguntar porquê é coisa de quem quer saber
Algo que não há razão por entender...
Tudo isso disse-me ele
Meu cão
Sem dizer
Só ali ficando
A olhar e me gostar
Com seu rabo
Uma vez mais
Balançando...

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terça-feira, 23 de abril de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do construtor de escadas rolantes não íngremes...




O construtor de escadas rolantes para declives não íngremes teve uma síncope de felicidade e morreu. Justo ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, o mais importante engenheiro do ramo dos transportes coletivos, embrulhou-se em tamanha alegria a ponto do seu coração, nada afeito a suores outros senão o da morbidez crônica, falhar e decretar o seu fim sumário, fim desse que foi o mais importante dos engenheiros do ramo dos transportes coletivos da cidade de Senta-Panças. Não havia qualquer ladeira respeitável em Senta-Panças, nenhuma grande depressão, vale ou morro, nenhuma geografia eminentemente acidentada que justificasse a existência de escadas rolantes para levar alguém de um lá para cá, e, justamente por isso, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes tinha a favor de si um fervilhante mercado de trabalho, sedento por instalar esteiras eletrônicas que evitassem o movimento supérfluo e compassado dos passos de um homem, ou de uma mulher, ou também de uma criança, fazendo-nos crer, o que é bem verdade, que todos em Senta-Panças aprendiam logo cedo a inutilidade de mexer os glúteos nesse rebolado imprestável, produto disso que chamamos comumente de andar. Aconteceu um fato, porém, e esse fato é decisivo para entendermos as razões, ou simplesmente a razão - porque houve apenas uma só -, que levou a cidade de Senta-Panças a ver-se, de um dia para o outro, órfã desse que foi o mais importante construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, justamente o nosso personagem em questão, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes. Numa de suas raras tardes de folga, porque ele era extremamente requisitado e fazia tempos que não usufruía da sua preguiça íntima, antes trabalhando para oferecer a preguiça aos outros que usufruíam das suas escadas rolantes, ele, construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, viu, sem pretensão alguma de ver, o gato do vizinho executar um pulo soberbo, ato que reuniu todos os conjuntos musculares do pequeno animal para que ele, o gato do vizinho, conseguisse cumprir aquela fenomenal distância entre o chão e o topo do muro. Ficou tão emocionado com tal cena que decidiu prontamente se vingar de todos os senta-pançudos - como são chamados os habitantes da cidade de Senta-Panças -, que durante uma eternidade inteira fizeram uso de seus equipamentos rolantes para evitar qualquer tipo de esforço outro senão o de existir, coisa já por demais cansativa ao olhar desses aos quais apelidamos de senta-pançudos justamente por morarem na cidade de Senta-Panças. Dito e feito. Ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, num ato perfeitamente planejado, interrompeu todos os mecanismos promovedores do suave deslizar das engenhocas rolantes, e isso num ato súbito, sem qualquer aviso prévio, fazendo com que a totalidade dos senta-pancenses (outro apelido possível aos que moram em Senta-Panças) fosse pega de surpresa e estacasse em cima dos equipamentos, e lá ficando, deitando olhares pasmos no vazio e sem saber o que fazer, e sem conseguir se mexer, justamente pela força do hábito de nunca na vida ter se mexido. O quadro dessa imagem causou a ele, o construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, uma gargalhada hiperbólica, uma gargalhada tão intensa que o seu coração não foi capaz de acompanhar, brecando suas funções bombeadoras para calar definitivamente esse que foi o mais genial construtor de escadas rolantes para declives não íngremes que a cidade de Senta-Panças já viu em toda a sua história.

Obs: Cabe ainda dizer que o enterro do construtor de escadas rolantes para declives não íngremes não pôde ser providenciado, uma vez que todos os coveiros, bem como o restante dos senta-pançudos, permanecem estáticos em suas posições, esperando que um dia as escadas rolantes voltem a funcionar.

Obs 2: O construtor de escadas rolantes para declives não íngremes, por curioso que seja, morreu de pé, com as duas mãos na barriga, num claro gesto de gargalhada triunfal. Seu rosto, e tudo isso de acordo com os relatos de turistas que empreendem excursões até Senta-Panças para testemunhar in loco o que dizemos agora, cristalizou-se na imagem da risada final, com os dentes a mostra.

Obs 3: Há quem preveja o fim de Senta-Panças, caso as escadas rolantes não voltem nunca mais a funcionar.

Obs 4: Réquiem.

Obs 5: ...

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segunda-feira, 22 de abril de 2013

ANTES DE FREUD! ANTES...



Queria ter nascido antes da psicanálise
Antes de Freud
Muito antes da tal da Memória Emotiva
Adeus Stanislavski, fique com sua trupe de inflexões profundas!
Sou raso, nada intenso
Minha beleza está na ausência...
Um basta a mania de complexar tudo o que existe!
Ou se é ou não se não é
E pronto!
Ser ou não ser é existencial
Sou antes
Sou material! E só!
Queria ter vindo ao mundo só em matéria
Sem que me pedissem para mergulhar dentro de mim
Não mergulho! Não sou profundo...
Minha destreza está na superfície
Nela eu navego!
Queria ter vindo ao mundo simples assim
Um corpo e pronto
Existir já é mistério para toda uma eternidade
E chega de tamanha autopiedade!

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BENDITA TECNOLOGIA...




Se algum dia alguma coisa louvaria
Perdão aos jurássicos de plantão
Mas, revelo:
Seria a tecnologia!
Bendita alegria que essa tal coisa me dá
Porque tivesse eu de dizer o que escrevo
Não diria metade
Vendo no teu rosto o que vejo
Reflexo do que digo
Produto da minha mediocridade!
Viva os botões que me mantém distante de ti, leitor amigo
Apartado da vergonha das filosofias do verbo ao vivo
Impedido que fico de alvo me tornar...
Imagine Shakespeare sem o perigo dos tomates
Arremessados por quem não houvesse gostado dos seus versos?
Bastaria-lhe publicar na rede virtual e pronto!
Nada de remorsos!
Mas Shakespeare era gênio afinal
Eu, confesso, sou boêmio
Mas sem beber, passo mal!
Só consigo pensar em te dizer
O que na tua presença não ousaria fazer...
Viva a tecnologia!

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NÃO SOU O QUE DIGO...



Nem tudo o que digo eu vivi
Aliás, muito de mim eu invento
Que graça tem ser um fiel monumento
Aos acontecimentos atado?
Desse retrato as fotografias cuidam bem
Escrevo para olhar o inverso
E se combinar com o que penso de fato
Nem assim assino contrato
Antes me esquivo
Dizendo a verdade ou não
Aliás, que diferença faz para você
Que conhecer-me não vai?
A vantagem desse meu lado é o anonimato
Se quiser fazer de minhas palavras um rosto
Não será esse que carrego comigo
Ou será tantos que não poderia equilibrar só eu, dono de um pescoço só
Caso queira fidelidade,
Converse com uma pedra ou um jumento
Da minha instabilidade faço aumento
Tragédia ou não
É o que possuo como documento...

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PLATEIA...



Plateia que uiva
Grunhe
Arranha gritinhos
Suspira baixinho
Plateia que ronca
Saracoteia
De tanto rir
Esperneia
Espreguiça na preguiça
Plateia que se coça
Mastiga paçoca
Confere e-mail
Baita recreio!
Plateia dessa vida
Que a tudo interessa -
Dos cílios postiços ao bafo de menta,
Exceto a peça!
Sobe a cortina e...
Não me atormenta!
Babemos na periferia da tragédia
Toda uma primeira fila a fazer média...
A plateia é o espetáculo
E os atores os reféns
Desse coro de corpulentos Joãos
Ninguens
Findo o ato
Pano ao chão
Aplausos a quem?
Aos tantos
Que do drama se esquivaram
Muito bem
Plateia que volta
Sem ter ido
Chegando a mesma que era
Onde antes houvera
Do seu mundinho
Saído
...

...