Somos perigosos. Os atores, digo, são perigosos. Nós,
atores, somos um dos mais perigosos tipos dessa atual sociedade. Sociedade que
tudo falsifica, tudo floreia, e que sequer suspeita da patética e histriônica
realidade a qual se sustém. E justamente porque o nosso ofício, o dos atores, é
o de falsificar a vida, é que deveríamos dela tomar distância, dar um passo
para trás e não nos misturar aos seus ingredientes fantasiadores, esse tipo de
purpurina invisível que acaba por ditar uma verdade, um jeito de viver ao qual
nos acostumamos e que pode ser tudo, menos verdadeiro. O que temos hoje como
regra nas ruas é um espetáculo de tristes fantoches interpretando papéis
vazios, perdidos numa trama sem sentido algum, ou preenchidos por uma razão
medíocre que não se equipara nem de perto ao pior dos personagens dramáticos
inscrito na história da dramaturgia. Nós, atores, temos como obrigação e dever
falsificar as aparências, e delas extrair a essência das máscaras que encobrem
o homem comum, coisa que ele mal desconfia; esse mesmo homem que se diz livre e
dono do seu próprio nariz, e que, avaliando um pouco melhor, sobrevive apenas
como marionete, preso a fios invisíveis que o puxam ora para um lado, ora para
outro. Mas como a essa importante tarefa se prestar se nós, os atores, somos os
que mais chafurdamos nessa lama de artifícios forjados, e fazemos a nós mesmos
representantes idiotas da vida mentirosa a qual desejamos desnudar em cima do
palco? Nós, atores, somos bastante perigosos hoje em dia. Exercemos um nefasto
poder dinamitador das possibilidades de inteligência, uma vez que somos nós
mesmos os maiores contaminados pelas falcatruas as quais desejamos desvelar. Já
que temos por ofício a falsificação da vida, não deveríamos de forma alguma nos
propor a uma falsificação do que somos dentro dela, agindo impunemente sobre
essas ferramentas que encobrem mecanismos de amortização da nossa capacidade de
escuta e de visão. Hoje, nós, os atores, subimos ao palco com quase nenhuma
convicção de que somos seres perigosos, capazes de mudar consciências ou
despertar horizontes, isso porque nós, os atores, enlameamo-nos numa falta
absoluta de entendimento a respeito do nosso papel político. Todos, ou quase a
totalidade de nós, sequer tem preparo para emprestar as fracas e impotentes
vozes a um personagem dramático, ocupados que estamos em garantir um bom
penteado em cena. Viramos emblemas do charme, da sexualidade, do erotismo
vulgar, da vontade de aparecer custe o que custar. Vendemos nossas almas para
as bobagens televisivas e esperamos em troca o momento glorioso de sermos
reconhecidos no hall do teatro, quando tudo de realmente importante já acabou
no instante em que o maquinista baixou a cortina. Mas o espetáculo agora é
outro. O espetáculo está na propaganda, no lobby que fazemos das qualidades que
há muito não temos para oferecer, o empresário virou peça chave, e junto com
ele toda uma horda de abutres exploradores dessa idiota imagem que viramos -
jornalistas, fotógrafos, fãs, etc. Nós, os atores, cuja responsabilidade de
tornar claro os absurdos da vida, acabamos por virar reféns do nosso próprio
tema, sendo nós próprios mais falsos que a vida falsa que corre em surdina
pelas esquinas da vida. Que coisa patética é ver um ator discursando sobre seus
direitos suprimidos sendo que ele próprio é um engodo, bradando aos quatro ventos
as injustiças que a ele recaem sem que se dê conta do quão abobalhado é na sua
atividade, todo inconsciente da sua falta de talento, de preparo, convencido
por sei lá quem de que ele um dia foi um artista. Nós, os atores, somos
extremamente perigosos. Perigosos e ridículos porque convidamos os outros a
saírem de suas casas para reafirmar a inconsciência da mentira a qual pertencemos
todos, cabendo a nós, os atores, o título de maiores picaretas, não porque
somos eficientes na arte de picaretar, mas porque não desconfiamos do quão
picaretas e despreparados estamos para exercer tal função. Deveríamos nós, os
atores, desistir de viver a vida, deixa-la de lado, não nos misturar as suas
mesquinhas demandas. A arte deveria voltar a ser marginal, e o ator um náufrago
completo... os que sobrevivessem a tal aventura, esses sim, poderiam ser
chamados de artistas. Enquanto isso, vivemos no mercado das vaidades, com toda
espécie de justificativas para comprar a falta absoluta de talento e preparo
para o ofício...
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