domingo, 30 de setembro de 2012

Acordei gênio!

Acordei com uma única e retumbante certeza: é hoje o dia que escrevo a minha obra prima! Levantei da cama com a convicção de que eu era o portador de uma importante missão cujo esforço criativo repassaria à humanidade um legado de valor inestimável. Nessa manhã, tão logo abandonei o travesseiro, de alguma forma eu já sabia: aquelas pantufas que impediam o contato dos meus pés com o chão gelado estavam prestando um precioso serviço não a qualquer um, mas a um eminente candidato ao Olimpo das artes. É isso! Acordei gênio! - não que ontem eu fosse um asno claudicante e mentecapto da espécie mais comum que desfila por aí na hípica vagabunda da vida, longe disso! Mas, especialmente hoje, eu havia sofrido uma iluminação -, escreveria um livro para entrar no time dos grandes! O espelho do banheiro, ao avistar meu topete desarrumado na ocasião do cumprimento das exéquias matinais, já denunciava... (***vejam os sintomas da genialidade já se fazendo presentes!!! – ‘exéquia’ é um termo nobilíssimo que só alguns poucos escolhidos tem o domínio intelectual para empregar e, ainda mais genial!, associá-lo aos rituais higiênicos do baixo-ventre é o diagnóstico cabal de uma impetuosidade sábia típica das mentes fora de padrão!) enfim, o espelho do lavabo, numa livre e audaciosa adaptação da historinha da Branca de Neve, confidenciava-me aos sussurros: ‘Tu serás o novo ícone da literatura mundial!’ Era um típico topete de gênio aquele! O topete do escolhido! Dentre tantos exemplares dessa raça de seres pensantes, justo eu acabei sendo pinçado para ingressar no panteão dos deuses literários! Ocuparia uma cadeira na Academia Mundial das Letras ao lado de Dostoievski, Shakespeare e Machado de Assis (Paulo Coelho é a faxineira que tira o pó das estantes uma vez a cada quinze dias). Quanto orgulho! O café da manhã que se seguiu irá ficar gravado para sempre na história como o café da manhã que antecedeu a produção da grande obra! O que diriam aquelas torradas besuntadas com requeijão se soubessem do prestimoso auxílio que estavam oferecendo ao emprestar suas propriedades nutritivas aos meus neurônios geniais, verdadeiro exército de massa cinzenta que em breve revolucionaria com suas sinapses o mercado editorial mundial? Liguei o rádio para tentar registrar quais notícias esse dia tão especial se dedicava em transmitir, todas elas ínfimas perante o grande acontecimento ainda reservado à solidão do meu íntimo. Não é curioso imaginar que as pessoas travam a própria vida em função de manchetes tão insignificantes? Não e não! Ainda que o muro de Berlim fosse reconstruído para depois ser novamente colocado a baixo, ainda que os homens de turbante do Bin Laden resolvessem bombardear o Cristo Redentor com ultraleves terroristas, ainda que o Russomanno virasse honesto, ainda assim nada poderia me interromper! Hoje eu acordei com uma única e irrevogável missão: conceber a minha espectral obra prima, um pequeno conjunto de páginas escritas por homem, um gigantesco monumento para o futuro caminho de toda a humanidade. Agora todos em silêncio... vou começar a pensar no que raios escrever. Todo gênio escolhido tem momentos de insegurança. Esse é o meu momento de insegurança. To inseguro. Mas sou um gênio, não duvide... o meu espelho que o diga!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A metafísica das calças frouxas...


Saí de casa com a calça frouxa. Talvez o cinto não tenha cumprido o seu papel, ou então eu emagreci pegando carona com o Fenômeno, que acaba de entrar pro Medida Certa. Só sei que no meio de uma elucubração das mais filosóficas, no auge do ‘ser ou não ser eis a questão’, fui obrigado a puxar o jeans para evitar um diálogo público e imprevisto com as minhas vergonhas. Não que as minhas vergonhas sejam vergonhosas, muito pelo contrário, as minhas vergonhas são tratadas a pão-de- ló, cuido delas com todo esmero para ter alguma coisa com que me orgulhar nessa vida, ainda que a gravidade torne grave o prognóstico de um futuro que há de vir mais cedo ou mais tarde. A questão é que quando minha cueca estava prestes a protagonizar seu discurso à la ‘Bonitinho mas Ordinário’ em plena padaria, local onde me encontrava em trânsito matinal rumo à labuta dos justos, eu sofri uma iluminação! Eureca! Eis o que descobri: o homem evoluído veste calças frouxas! O homem evoluído frequenta constantemente o intervalo entre a descoberta do Bóson de Higgs e a inescrupulosa tarefa de erguer suas calçolas para evitar publicar suas vergonhas nos anais – ou bundais – das revistas científicas. Não confie nunca num sujeito de terno e gravata! O sujeito de terno e gravata anda impecavelmente ajustado ao seu cinto de couro, nunca passando pela sua cabeça que existem vergonhas profundas escondidas por detrás de tanto charme executivo. O terno e a gravata é a armadura dos ímpios, a carapaça dos mentirosos, o casulo dos blasfemadores. Quem usa terno e gravata é um desavergonhado, herdeiro dos iluministas pedantes, todos acadêmicos bobinhos que inventaram os suspensórios justamente para desfilar suas enciclopédias de termos inúteis por aí. Não é a toa que a Idade Média foi o período mais frutífero da história do homem, tempos em que os loucos, dementes e poetas amarravam suas ceroulas com cordinhas vacilantes. Até quando o assunto é religião o elástico frouxo escorrega com força. Imagine Cristo indo para a cruz de terno e gravata? Certeza que não subiria aos céus, nem no terceiro dia, quanto menos depois da posse do Apóstolo Russomanno! Arrisco a dizer que Sócrates proferiu o seu ‘só sei que nada sei’ na urgência de apanhar sua túnica grega que insistia em lhe abandonar os seus gambitos filosofais! A filosofia morreu na era da razão, com todos os seus filósofos protegidos pela ladainha de uma retórica pudica que escondia a roupa de baixo dos bigodudos. Marx foi um chato pateta, um desavergonhado que proibiu a especulação capitalista das calças largas. Deu no que deu: uma revolução abstrata. Tivesse afrouxado a bermuda, teria sido um gênio. É isso! Os escolhidos, os gênios, os profetas, os inteligentes, todos eles abrigam em seus armários um conjunto espetacular de calças largas, ansiosas para lembrar que no fundo, ou melhor, na cintura da vida, nada de importante pode concorrer e superar a consciência de nossas vergonhas. Saí da padaria e passei o dia inteiro entre a cueca e a consciência. Quando embarcava numa nova teoria revolucionária, fruto da minha invejável malhação intelectual, lá me caiam as calças para alertar-me de que os fundos da casa podem sempre colocar tudo a perder. É isso! Sou um privilegiado! Descobri o caminho, ou o tamanho errado, da sabedoria. Vou aposentar todos os meus cintos. Vou afrouxar o que resta do meu guarda-roupa! Virei um homem evoluído!

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O gato, o Lawrence Olivier de bigodes!



O gato é o artista do palco por excelência, o ator dos atores, o Lawrence Olivier de todos os tempos. Frente ao gato não há Cacilda Becker ou Paulo Autran que resista. Em cima do tablado é o gato que reina, enquanto nós, sapiens, naufragamos. O gato olha de soslaio para Édipo e diz: ‘mas que menino mais bobo, matou papai e casou com mamãe!’ Meow! Só um gato para dar conta da potência trágica de um herói grego! Faça o teste e vá assistir no teatro a história protagonizada pelo rei de Tebas na pele de um gato galante. Ator nenhum consegue convencer a mais generosa das plateias com a famosa cena da perfuração dos olhos. O ator humano se esbugalha em cena, berra, grita, chora, corta as tripas na tentativa de transmitir o horror da situação e conclama a audiência para compartilhar da sua interpretação de toureiro com hemorróidas. O gato não. Com o gato a coisa é bem diferente. O gato é econômico. O andar do gato já carrega todo um caminhão de emoções contidas num simples desfilar de patas acolchoadas. O gato é elegante, um mentiroso profissional que jamais exagera em nada. O gato não dá a mínima para nossas crises melodramáticas, ao contrário, o gato passa longe do Leblon do Manoel Carlos e sobe direto ao monte Olimpo. O gato é trágico. O ‘ai de mim’ nada mais é do que uma triste tentativa humana de traduzir o lamento de um felino grego, proferido aos ouvidos de Sófocles. Um único ‘meow’ tem a capacidade de derrubar uma plateia, já a ladainha das frases humanas quase sempre vira uma cantilena interminável que dói nas orelhas dos ratos e morcegos, habitantes dos bastidores de todo teatro. Foi depois de ouvir um ‘meow-miau’ que Aristóteles formatou a sua teoria da função catártica do teatro antigo. Gato nenhum se permite entrar na mansão do Tufão e da Carminha. Todo gato sabe que novela, seja ela Mexicana ou Tupiniquim, não está à altura do seu magnífico domínio da cena. Novelas e séries de TV se dirigem a qualidades artísticas inferiores as do gato. Cães e humanos cabem perfeitamente na categoria de personagens moldadas no formato Maria-do-Bairro. Labradores são sempre melodramáticos. Investigue o curriculum de um labrador e verá que o focinho freqüentou o Studio Fátima Toledo ou a Escola de Atores da Rede Globo. O gato ri dessa bobagem toda. O gato sobe ao trono da magnificência dramática, não se rebaixa a figuras medianas freqüentadoras de padarias. O gato é o proprietário do teatro, nós os tristes inquilinos. Shakespeare só foi capaz de compor a sua monumental obra porque afagava um gatão peludo que ronronava no seu colo enquanto escrevia o ‘ser ou não ser [meow] eis a questão’. Se houvesse um teste vocacional que reunisse homens e gatos, não haveria qualquer chance para nós, humanos aspirantes à arte de Dionísio. É o gato o dono da ancestral arte do fingimento. Inevitável persistir. Não há curso de interpretação que nos faça sequer raspar o talento dramático de um bichano de bigodes longos. Pobres mortais de consciência desenvolvida! Queimem os métodos, fechem as escolas, tapem os ouvidos para a tonelada de teorias e... comprem um gato! O gato é o mestre da cena. O gato, só o gato! 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Haiti não é aqui... mas a China é logo ali!




O barateamento da ponte-aérea Pequim-Praça-da-Sé tem ajudado a aumentar a ocorrência de um fenômeno moderno batizado pelos especialistas demográficos com o nome de ‘chineização-da-população-da-terra-da-garoa’. Antes acostumados ao ônibus-leito que cumpria a rota Marco-Polo-Rodoviária-Tietê, os habitantes da terra-do-espetinho-de-escorpião-frito costumavam chegar em menor número a nossa querida cidade. Agora, porém, seduzidos pelos preços mais em conta em razão da concorrência entre as companhias aéreas, não é raro observar congestionamentos homéricos de Boeings 747-400 da Air-Xing-Ling na pista de pouso de Congonhas – muitos dizem que a 23 de Maio enciumou-se ao ver o seu reinado de estacionamento-a-céu-aberto ser ameaçado com um xeque-mate pelos mastodontes do Mao-Tsé-Tung. O fato é: um formigueiro diário Made-in-China passa pelas nossas alfândegas, depenando todo e qualquer free-shop que apareça no meio do caminho. Os gafanhotos do Antigo Testamento caberiam em duas kombis, se comparados ao contingente de olhos puxados que desembarcam religiosamente até nós. Resultado óbvio: é chinês pra tudo quanto é lado! É só sair na rua para dar de cara com um chinês. O fenômeno de chineização da capital da fumaça atingiu tal extremo que medidas jurídicas já começaram a ser tomadas para abolir o tradicional bairro chinês, o sempre fedorento e agridoce China Town. O motivo é mais do que justo, já que não há mais razão para privilegiar um único bairro com o título oriental sendo que a China está literalmente espalhada por toda a Town. Há quem defenda que o antigo quadrilátero-do-rolinho-primavera vire um gueto ao contrário, abrigando agora os legítimos filhos da terra do Padre Anchieta – tremores na bancada dos defensores dos direitos humanos! Contra a separação das raças! Direitos iguais a todos! Nada como um DO-IN chinês no cocuruto para acalmar os nervos e adiar, pelo mesmo por enquanto, a inadiável revolução da Praça-da-Sé-Celestial, eternizada pelos arquivos jornalísticos na foto da figura de um vendedor de churrasco-chinês proibindo a passagem de uma fila de camelôs-blindados! O fato é: espirre prá ver! Um chinês aparece imediatamente lhe desejando ‘saúde’ em mandarim! Tem chinês saindo pelo ladrão. Outro dia estava eu distraído a navegar pela internet – mares até então nunca d’antes ameaçados pela frota do frango-xadrês -, quanto eis que a foto de um Chinesinho brejeiro aparece na minha página do Facebook, pedindo encarecidamente para que eu o aceitasse no meu rol seleto de amigos ocidentais. O que fazer? Recusar seria pior, afinal, quem nunca balançou na base ao ouvir falar da grandiloquente estratégia militar empregada nos tempos da dinastia Ming quando todo o exército Chinês conseguia ocupar o terreno inimigo em não mais do que cinco minutos? Os livros de história não deixam mentir! Quando o negócio é ocupar, a China domina a técnica do arrastão, técnica essa que aos poucos foi sendo transmitida para a torcida do Corinthians, hoje sediada num dos bairros mais chineses da nossa cidade, o bairro de Xangai-Itaquera. Exatamente a mesma técnica de ‘dominô-geral’ é empregada também nas ruas do centro de SP, como o que ocorre rotineiramente na conhecida rua de bugingangas chinesas, grafada pelo nome de 25 de Março. Resolvi não titubear e aceitei o Wai-Chu-Tai como meu brother virtual. Terrível ideia! Na semana seguinte quase toda a minha lista de amizades era composta por chineses, uma legião de amarelos que eu nunca na vida havia travado contato pessoal, mas que lá atracavam em segurança e sem qualquer cerimônia, promovendo uma verdadeira Cruzada chinesa via banda larga. E o incrível aconteceu. Ao lavar o rosto pela manhã, depois de acordar normalmente, notei um leve abaulamento da circunferência ocular de ambos os olhos. Olhei-me no espelho. Espanto! Estava virando eu próprio um Chino! De noite o processo já estava resolvido por completo: agora eu era um legítimo Chinês em terras Paulistas. E uma vez Chinês, sempre Chinês! Como diz o famoso hino do clube rubro-negro Chinês, fundado por chineses-paulistas em terras cariocas – que paulatinamente também vão sofrendo processo orientalizante semelhante. A questão é: o mundo está virando uma China, com chineses saindo pelo ladrão. Muralha da China nenhuma dá conta de impedir a maré-tsunami-de-chineses que diariamente nos engole. Talvez seja necessária uma campanha de Des-Chinização completa do planeta, iniciando com a temporada de caça-ao-chinês. Enquanto isso não acontece, o jeito é programar umas férias na Groenlândia. A Groenlândia, pelo que ouvi falar, ainda não foi invadida pelos chineses... talvez caiba a mim, o novo Marco-Polo-Tupiniquim, essa tarefa de colonização. Mas não fale alto! Não quero seguidores! Só desejo um pouco de paz de espírito, todo chinês recém convertido aos olhos puxados tem direito a um pouco de sossego... São Paulo virou uma China comunista, não dá mais! Vou comprar minha passagem. Groenlândia, aí vou eu!

domingo, 16 de setembro de 2012

O princípio encalacrador da vida...



Viver é encalacrar-se. O sujeito mais admirado nos tempos que se seguem é o encalacrado. Encalacre-se e verá, será respeitadíssimo, motivo de admiração e orgulho para seus colegas e familiares. Até mesmo a sociedade adora render homenagens orgulhosas ao encalacrado filho de sua terra. O encalacramento é um processo lento e gradual de fabricação de nós cegos à prova de desatamento que acaba sempre numa região sem retorno, mais conhecida como beco-sem-saída. O beco-sem-saída é um território altamente desejado pelo aspirante ao título de encalacrado. Há várias maneiras de trilhar o rumo da encalacração. Quem compra um carro já está no caminho certo, embora não seja possível trilhar caminho algum dentro dessa lata de alumínio quente, especialmente projetada para ser admirada no seu estado de preguiça mórbida, bem no meio de um congestionamento-monstro. O congestionamento, por isso mesmo, é uma etapa segura para o sujeito que deseja encalacrar-se profissionalmente. O encalacrado jamais aceitaria deslizar sem rumo com o vento a lhe bater no rosto. Não! O encalacrado faz de tudo para não sair do lugar e isso lhe cai muito bem. No rumo da encalacração é urgente e necessário procriar. Todo encalacrado exige rebentos que lhe representem no futuro, transmitindo sua herança genética para sucessores que nada tem a ver com a encalacração de quem os predestinou a uma futura e próspera encalacração. Um encalacrado nunca se admite sozinho, muito pelo contrário, a vida de um encalacrado é repleta de berros, uivos, choramingos, lamentos, risos, gargalhadas em coro. Não há monólogos na encalacração diária de um encalacrado, apenas elencos gigantescos que o forçam a sumir no meio do corpo de baile. Faz parte do regime encalacratório fugir do foco do holofote para botar outro desavisado no alvo das atenções. Não há maneira de se tornar um legítimo encalacrado se não houver uma árdua batalha cujo intuito final é a conquista de uma vaga de emprego numa grande empresa ou numa repartição pública. Todo encalacrado é um ótimo funcionário. Todo encalacrado sabe que passará a vida inteira apertando eficientemente os mesmos botões até conseguir chegar à gerência, quando poderá ensinar aos estagiários-encalacrantes a maneira correta de fazer aquilo que até um chimpanzé analfabeto saberia executar. Todo encalacrado veste terno e gravata e se orgulha de passar calor debaixo do sol tropical. O figurino encalacrante é um ótimo emblema da eficiência encalacratória do seu dono encalacrador. Todo encalacrado tem um regime alimentar digno da sua fartura monetária. O encalacrado não economiza garfadas suculentas em gorduras nobres, aumentando a circunferência da sua pança para que suas tripas internas sejam admiradas pela junta médica na iminente lipoaspiração escultural. Todo encalacrado sempre se preocupa com o amanhã, tratando o momento presente como uma vagabunda de esquina para justamente garantir mais ingredientes encalacratórios num futuro remoto. O encalacrado também é erudito, instruído na arte de morder e assoprar para nunca correr o risco de se comprometer perante o julgamento alheio. Existe toda uma técnica que oferece ao encalacrado a qualidade de dizer um monte de coisas sem dizer absolutamente nada, ao mesmo tempo em que é possível escrever laudas e mais laudas de uma escrita impecável e absolutamente vazia de propósito. O erudito encalacrado adora promover e participar de reuniões. São nas reuniões que o encalacrado limpa a voz para defender teses sobre a influência do esmalte cor-escarlate no dedinho mindinho da mão esquerda em tempos de seca atmosférica. São nas reuniões que o encalacrado consegue torcer o seu bigode com as pontinhas dos dedos e demonstrar aos outros companheiros de encalacratice que o charme de viver está em produzir encontros de tédio. O encalacrado adora correr atrás do próprio rabo só para provar aos outros o quanto o seu rabo é digno de ser perseguido por ele próprio. O encalacrado é comedido, não se presta a esforços inúteis, afinal, já que não é permitido interferir no movimento de rotação da terra, para que se preocupar? O encalacrado morre tarde, mas feliz, reconhecido por todos como um emérito cidadão atador de nós das necessidades públicas.  

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Enxuguem as lágrimas, caminhar é sempre mais interessante!


Não acredito que o papel do artista seja esmiuçar as suas entranhas emocionais para oferecê-las ao espectador, isso mais parece com um exercício autoritário de auto aceitação, distante de qualquer generosidade poética. O artista, ao contrário, deve sumir, desaparecer, evaporar, fugir do seu íntimo e abrir espaço para deixar passar a obra que deseja comunicar. O artista deve forçosamente estar à se
rviço de algo maior do que a si próprio, e toda tentativa de aproximação emotiva é um passo na direção de reduzir a poesia. O artista, para manter plena a sua arte, nunca deve encontrar-se naquilo que quer dizer, deve permanecer estrangeiro, longe para produzir intervalos. Os intervalos são mais importantes do que qualquer coisa. O vácuo, o silêncio, a pausa, a incomunicabilidade entre artista e obra é tão ou mais importante que a sua assimilação interna. Essas fissuras vazias não querem dizer que o artista está isento daquilo que faz, apartado de envolvimento pessoal. Ao contrário. É a distância que o permite conduzir. E conduzir é infinitamente mais emocionante do que perder-se na lágrima que brota de si próprio. Conduzir exige chamar o espectador para uma jornada. Não há jornada se não há a abertura de espaços para caminhar. A jornada é o que conta. O resto é recheio vaidoso sem valor algum.

To be or not to be... ouçam a barata!



O homem é covarde, um covarde de firma reconhecida no cartório, covarde de carteirinha. Numa disputa entre covardes o homem concorreria consigo próprio. Não há concorrentes à altura do homem em matéria de covardia. A covardia é um atributo humano, animais não são covardes, os bichos podem ser frágeis, fracos, doentes, mas não covardes. Covarde só o homem pode ser. O homem é covarde porque se diz corajoso, fingindo ser muito maior do que de fato é. A consciência, essa voz metafísica instalada dentro da cabeça de cada um de nós e que não se cansa em repetir a famosa ladainha ‘penso, logo existo’ é a responsável por toda a farsa. Maldito Descartes e toda a corja de iluministas! Iluminaram o nosso ego mentiroso e covarde, e só! Os loucos da Idade Média eram muito mais sinceros e apaixonantes que os seus sucessores da era da razão. A razão trouxe junto a consciência. A consciência é o silicone moral, uma prótese que tenta a todo custo levantar a auto-estima para provar que a nossa existência não é um mero acidente, mas produto de uma missão altamente importante que servirá de exemplo primoroso aos nossos semelhantes. Para justificar o quão covardes somos, criamos a ideia de Deus e todos os personagens que dão suporte a esse herói invisível que no auge do seu tédio celestial resolveu brincar de criar avatares para matar o tempo. Somos tão covardes que precisamos acreditar que somos únicos. Únicos e humildes, porque faz parte da covardia se colocar na posição de vítima do mundo, de ovelha do rebanho, triste coadjuvante num enredo cujo protagonista é o outro. Covardia e coragem são faces da mesma moeda. Moeda escondida dentro do bolso humano. A barata é a prova irrefutável de que somos todos covardes. Na intimidade do seu lar, o mais invejável dos representantes humanos hesita quando avista um baratão atravessando o chão de sua residência – não é a toa que a indústria química lança a cada ano um novo spray anti-barata, tentativas sempre frustradas de se fazer prevalecer sobre o ser abominável do esgoto. Inclua a cena do Rambo sendo pego desprevenido por uma barata que faz coceguinhas no seu pé de salvador da pátria e ele imediatamente larga a metralhadora para virar apresentador de programa de fofoca nas tardes da televisão. Isso sem contar as inúmeras marcas de chinelos e tamancos que, a rigor, não servem tanto para calçar os pés, mas para oferecer uma distância segura entre a mão do sujeito e o inimigo de antenas que se espreita cambaleante pelas frestas do lar. Se a barata tiver asas e puder voar, então, é como se toda a dignidade ética e moral da nossa raça fosse imediatamente embora pelo ralo. Nenhum mestre de academia sobrevive ao vôo de uma barata tropical. Se Gregor Samsa acordasse no seu quarto transformado não numa barata, mas numa lagartixa, a história de Kafka perderia toda a força. A barata é uma afronta ao destino humano, o último estágio da decência que supera aquilo que ambicionamos ser. As unhas são outro índice da nossa covardia. Basta ver as unhas de um homem para comprovar. O leão só é o senhor da selva porque carrega junto às suas patas garras enormes. Leve o bicho numa manicure e ele voltará para seu habitat mais manso que um gatinho de pelúcia. Hamlet não consegue agir porque suas unhas são curtas, podadas na mesma medida da sua elegância intelectual. Complexo de Wolverine – Oh maldita queratina que não me deixa vingar a morte de papai! É isso. Somos todos covardes. Unha, barata e consciência... uma combinação improvável, mas que desmancha toda a petulância moral que nos serve de figurino para brilhar em cima do palco da vida.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Do pó viemos, ao pó retornaremos.



O destino de São Paulo está selado, um futuro nebuloso, um futuro poeirento e funesto. No dia 21 de dezembro, data do próximo apocalipse – anote no seu smartphone para não correr o risco de perder a celebração -, a cidade da garoa sumirá por completo debaixo de toneladas e mais toneladas de pó – passe o dedo na sua estante de livros e perceberá os sinais concretos dessa tragédia iminente. Não, caro amigo de infortúnio, não adianta ligar para sua faxineira, ela pouco teria a fazer para nos ajudar. O pó vencerá! Do pó viemos, ao pó retornaremos. O pó na estante é a primeira trombeta do apocalipse segundo São Paulo. Ainda que as forças armadas empunhem o conjunto total de aspiradores de pó à venda nas Casas Bahia, ainda assim, o pó triunfará! Será o fim. Seremos todos sepultados vivos num piscar de olhos, sem nenhum aviso prévio! Nada de hecatombe hollywoodiana com direito a terremoto engolindo o Monumento às Bandeiras, labaredas de fogo queimando as capivaras do rio Tietê ou chuva de meteoro inundando de granito o já afogado Jardim Pantanal... nada disso! O enredo melodramático da nossa triste existência terá uma conclusão frugal, um ‘pronto cabô’ sem clímax nenhum, todos pegos desprevenidos pela força devastadora da poeira assassina. São Paulo entrará para a história como a nova Pompéia e escavações futuras revelarão nossos corpos petrificados nas poses mais prosaicas, indicando que o curso da vida corria normalmente no instante em que a nuvem negra baixava seu manto de morte sobre nós. Não, companheiro de dor, não adianta gastar dinheiro com ventiladores ou circuladores de ar, ainda que fosse possível instalar uma turbina de Boeing na sua sala, ainda assim o pó daria conta de se esgueirar por entre as frestas do seu humilde e asséptico lar! Passe o dedo em cima da televisão e verá! O pó em cima da televisão é a segunda trombeta do apocalipse segundo São Paulo. Mas não se entregue, lacrimejante irmão! Mesmo fossilizado, há que se preservar o respeito! O passado de glória da raça humana tem o dever de, ao menos, servir de molde para notáveis estátuas de pedra a serem expostas nos museus dos séculos seguintes! Que o diga o peladão Davi de Michelangelo, pego desprevenido pelas cinzas do Vesúvio enquanto interpretava uma peça antropofágica do Zé Celso. Portanto, engula o soluço e vá ensaiando qual estátua humana quererá deixar como legado para as gerações vindouras. Eu já decidi a minha! Vou ser desenterrado de joelhos e com uma bíblia na mão, para provar que em vida fui um digno devoto do Senhor e cabo eleitoral do Russomanno. Ah, triste presságio! Tanto tempo trabalhando na escolha das palavras do meu nobre epitáfio e agora terei de me contentar com um prosaico: COF! COF! COF! Foi Ivete Sangalo a primeira a nos alertar sobre o epílogo dos sapiens. O ‘levantou poeira’ da musa do axé baiano era um alarme profético que poucos levaram a sério. Por detrás do gingado da arretada escondia-se uma Nostradamus-do-Acarajé! E não demos qualquer atenção. O pó, sempre o pó a espreitar o nosso destino... e nós menosprezando a sua força de extermínio. Oh pó! Minha consciência afunda-se em remorso. Passe a mão pela consciência e verá. O pó de cima da consciência é a terceira e última trombeta do apocalipse segundo São Paulo.         

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Campanha contra os acentos!


Sou contra os acentos! Não aquele lá debaixo, escrito com dois ‘ss’, que acomoda o vosso traseiro quando a fadiga aperta, mas aquele lá de cima, que cobre com chapeuzinho, cobrinha, pinguinhos e toda espécie de tracinhos as vogais do nosso alfabeto tupiniquim. Se essa língua fosse minha, eu mandava arrancar a espinha aguda que fere o seu pobre ‘i’, aliás, aproveitando o embalo reformador, pavimentaria o limite superior da letra ‘i’ para que o pinguinho evaporasse também, virando um ‘i’ asfáltico uno e liso nas suas dimensões retilíneas, um ‘i’ sem buracos ou saliências, um verdadeiro ‘I’ sóbrio e digno. Todo acento gramatical é uma rebarba inútil, um topete rebelde a ser podado na barbearia do bom senso! O que é um til (~) senão um apêndice dolorido que faz entortar a caneta e o lápis, atrasando a digitação da palavra no teclado do computador, uma vez que a cobrinha egocêntrica exige um clicar só dela, às vezes combinado com o pressionar de outra tecla em concomitância, e toda essa operação para quê, minha gente? Somente para atrasar a nossa vida! Campanha ‘Renove a velha e ondulada Mamãe por uma nova Mamae’! Tudo começou com a maldita crase, com uma dificuldade tremenda para se saber para que lado essa desgraçada aponta – para a esquerda ou para a direita do ‘a’? Como nunca cheguei a um consenso apropriado sobre a filosófica questão, não arrisco mais e grafo a bendita dos dois lados, para não correr o risco de errar, exemplo: ‘hoje eu fui `a´ farmácia e comprei o remédio que tanto procurava’. Depois dessa revolta acentuada, resolvi curar-me por completo da dor de cabeça sintática e desacentuar tudo – é preciso cortar o mal pela raiz, alforriar as nossas vogais, dar curso ao pensamento sem que haja satélites zombeteiros interferindo no fluxo límpido das ideias (a velha ‘idéia’ já perdeu o acento! Vejam como é bom renovar as ideias!). Para quê achapelar com circunflexos os nossos ‘es’, ‘os’ e ‘as’? Essa cobertura em forma de toldo-retorcido-de-padaria é uma afronta à dignidade das nossas vogais! Ao cobri-las dessa maneira, estamos dizendo: ‘Ei! Não saia por aí ao relento com o cocuruto descoberto! Proteja-se! Leve esse gorrinho e não seja teimoso, senão pegará uma constipação de tapar o narigo!’ Ora essa! Nossa língua já está madura o suficiente para se desgarrar dessa mimação toda. O trema já se foi, sentou-se no assento dos acentos aposentados... Vamos dar o devido descanso ao restante da parentada!

Vota em mim? Diz que vota, diz?



Vou me candidatar a um cargo público para resolver os seus problemas, afinal, sou um candidato-do-bem. Todo candidato-do-bem é bom, bom, bonito e cheiroso. Atualmente não existe nenhum candidato-do-bem, só eu. O resto são sósias que fingem uma bondade que não carregam, ou melhor, quer dizer, ou pior, são candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro. Cuidado com os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro! Normalmente esse tipo de candidato se esconde atrás de um personagem do bem – o cordeiro, mas não se deixe ludibriar – são lobos! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro são maus, terríveis, é certo que penteiam o cabelo para o lado certo, são bonitos e cheirosos exatamente como eu, que sou do bem, mas não se deixe ludibriar, são do mau! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro são todos uma matilha de predadores vorazes que jogam suas lorotas como iscas sedutoras para que você, uma rã distraída coaxando no brejo da inocência, seja catapultada para dentro de suas mandíbulas ferinas! Cuidado com os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro sabem falar, tem uma retórica afiada, pronta para lhe enganar. Os candidatos-do-bem, ops, quer dizer, O candidato-do-bem, porque só existe um, e esse um sou eu, também sabem falar que é uma maravilha, mas falam para o seu bem, não para o seu mau. Não existe nenhum candidato-do-bem, só eu. Você sabe disso, por isso confia em mim. Meu passado é idôneo, de ficha limpa, limpíssima, translúcida! Cuidado com os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro também dizem que são idôneos, limpos, limpíssimos, translúcidos... tudo mentira! Quer dizer, pode até ser verdade, mas o essencial é que todos são do mau, não do bem, como eu. Só eu sou do bem e você sabe disso, não sabe? (Diz que sabe?) Mas como a política é algo sério e complexo, há que se provar tudo o que se diz. Só um candidato-do-bem, como eu, pode se permitir auscultar seu próprio interior sem correr o risco de encontrar qualquer carocinho maligno. Mas cuidado! Como descobrir quem é do bem e que é do mau? Acreditando em mim, que sou do bem. E a prova de que falo a verdade está impressa aqui nesses documentos que mostram, como podem ver, que eu sou inocente em todas as acusações já feitas e não feitas a meu respeito, inclusive, como os lobos-em-pele-de-cordeiro chegaram a cogitar, não tenho relação nenhuma com o pecado original, nunca tive no meu quintal nenhuma árvore do conhecimento do bem e do mau, já que, como todos sabem, sou do bem. Não conheço e nunca tive contato com nenhuma Eva ou Adão. Cuidado com candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro normalmente mostram as mesmas provas que eu, que sou do bem, mas não se deixe enganar – são do mau! Vote em mim, que sou do bem! (Diz que vota?)

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A Capivara se impressiona com o impressionista Monet!



Sucumbi à pressão e fui ver os impressionistas no centro de SP. Escolhi minha melhor roupa para impressionar e... tcharãn... impressionei! Olhava pro Monet que olhava pra mim e ambos faziam aquela cara de im-pre-ssio-nan-te! Eu porque admirava os lindos quadros impressionistas do pintor, ele porque ficou impressionado com a minha expressão de filósofo do impressionismo tardio. Já reparou que nessas ocasiões, de grandes exposições cujos autores são artistas renomados, há um afluxo alucinante de Phd’s em vanguardas-emergentes-do-contexto-sócio-geo-político-da-conjuntura-mundial-do-pós-guerra? É quase proibido ser uma anta e ainda assim pedir ingresso num desses eventos, uma capivara sim! – porque as capivaras tem a sorte de carregar aquela expressão ‘un passant’ típica do ruminante que não se impressiona com nada do que vê, embora entenda perfeitamente toda a cronologia impressionista do movimento dos artistas em questão. Nunca desconfiou porque razão legiões de capivaras circulam as margens do Tietê e do Pinheiros? Simples, porque os nossos dois queridos rios formam juntos a maior obra abstracionista e fedorenta – porque toda arte que se quer moderna deve em algum momento exalar um odor nauseabundo, nem que seja um ligeiro budum-poético - que nossa capital da fumaça já produziu. Eu era uma capivara declarada na exposição dos impressionistas. Uma capivara-cult. Uma capivara assídua do espaço Unibanco, que veste boina e chinelo e sabe tudo do neorrealismo italiano, além de ser fã dos filmes do Godard. Mas não me pressione a mudar de assunto! Se eu sou uma capivara assumida, naquele instante eu não era uma capivara da 7ª arte, mas uma capivara das artes plásticas, impressionada com os impressionistas. É por isso que eu não sou afeito a visitas em museus, prefiro preservar minha porção capivara para momentos campestres, em que é possível mastigar a mais fina alfafa interiorana, capivaras urbanas são quase sempre contaminadas pelo ar da erudição-capivarial, aquela sapiência zoomórfica que domina as cátedras acadêmicas dos orientadores de doutorado. Prefiro ir ao teatro. Na platéia do teatro as antas são bem vindas. No teatro eu sou uma anta. As antas no teatro não correm o risco de sofrer qualquer espécie de bullying-intelectual. O melhor público é o que se assume ignorante, tapado, desorientado... ainda que o sujeito seja uma Toupeira-Shakespeariana – um grau além da antice esperada -, o palco é tão potente que dará conta de arrebatá-lo para dentro da história do bardo inglês. Nenhum pós-doc sobrevive a um espetáculo de teatro, o maior dos instruídos vira mais um numa audiência repleta de espectadores transparentes. Mas a despeito de tudo isso, vale a pena ver o Monet e todo o resto dos impressionistas, só tome cuidado para não tropeçar nas montanhas de capim que vez ou outra se formam durante o trajeto das capivaras...

domingo, 9 de setembro de 2012

O Focinho empreendedor...



Entre os animais houve um rateio de profissões e coube a pomba o papel de lixeiro do mundo. Pobre coitada da pombinha que tem de sobrevoar as metrópoles malcheirosas do mundo em cumprimento ao seu árduo ofício. Mas a natureza é sábia e Darwin, chefe-mor do Poupatempo-zoológico, não titubeou em carimbar a carteira de trabalho de cada bicho de acordo com o focinho do candidato. E não é que ele tinha razão? Já imaginou um albatroz elegantemente estacionado no topo da Catedral da Sé só à espera de uma lasca de churrasco-grego atirada inadvertidamente ao chão? No instante em que esse boing-penoso alçasse vôo em direção ao lanche desprezado, todos os camelôs teriam forçosamente que recolher suas barracas made-in-Ponte-da-Amizade sob o risco de darem adeus às suas mercadorias, engolidas pela lufada de ar das asas do gigante destemido. O rei dos animais não poderia ser outro senão o leão, a juba é que lhe dá esse direito! Tose o colarinho de um leão num pet shop da esquina e ele voltará para o seu lar no máximo como um motoboy a serviço do rinoceronte. Imagine se a girafa, com aquela cara de Mister Bean de pescoço avantajado, poderia pleitear um cargo de respeito na repartição da savana africana? Jamais! Aliás, é desse estigma que padece a hiena. Teria de tudo para virar um bicho de dignidade irreparável não fosse sua risada de taquara rachada. O cachorro só é o melhor amigo do homem porque não fala, no instante em que um totó abrir a boca para comentar sobre as perspectivas em torno do futuro dos acusados do mensalão ele perderá seu emprego de Sancho Pança da raça dos sapiens. Na empresa da terra, os animais não falseiam, desempenham a tarefa que lhes foi entregue e isso basta. Diferente de nós, humanos, que estamos o tempo inteiro atrás de uma revisão a respeito do que somos ou poderíamos vir a ser. Essa coisa chamada consciência vive nos pregando demissões por justa causa, nunca satisfeita em ser o que é, porque já essa certeza – a de ser alguém, nos escapa a cada instante. A regra é fingir, falsear, driblar, escamotear, constantemente num exercício camaleônico de busca pelo emprego ideal que se encaixe na perfeição dos nossos desejos. Nunca será encontrado. Darwin é o nosso inimigo mortal, não há ocupação que combine com esse focinho empreendedor.         

sábado, 8 de setembro de 2012

Somente o clips prevalecerá!



O clips prevalecerá! Para além de todos os esforços humanos, será o clips o herdeiro da nossa mais bem sucedida passagem pela terra. O sujeito que inventou o clips é um gênio, receberá como recompensa o merecido descanso no reino dos escolhidos, sim, porque na corte do juízo final deve haver um espaço importante para avaliar as patentes, e, nesse caso, por mais libidinosa que tenha sido a vida do criador do clips, o autor desse pequeno objeto metálico retorcido será salvo, deixando a nós, simples mortais incapazes de inventar algo de grandeza comparável, entregues ao limbo fedorento do capeta. Imagine a seguinte cena – o pai do liquidificador tentando convencer o Todo Poderoso a lhe dar uma quitinete no paraíso, alegando que seu filho de pás metálicas, motor elétrico e jarra acrílica foi um fiel servidor dos interesses mundanos... pobrezinho, será triturado como uma vitamina de orgulho pecaminoso no instante em que se deparar com seu concorrente maior ao posto de jardineiro do Éden: o artista do clips! Insisto, nada nem ninguém poderá fazer frente ao insuperável poder agregador de um clips, que embora um: clipe, já não se entrega ao singular, virando vários em um, exatamente como os peixes e pães multiplicados pelo filho redentor do Pai Celeste. Amém ao Clips, agora com maiúscula! Shakespeare só foi Shakespeare porque em algum momento um clips medieval reuniu suas páginas poéticas num único volume, evitando o que seria a maior tragédia não escrita de todos os tempos: A revoada de palavras ao vento do esquecimento eterno... Hamlet se tornaria um menino bobo em comparação a tamanho desastre, aliás, Hamlet não existiria, assim como nenhuma dúvida metafísica poderia habitar em nós caso o clips não tivesse sido inventado. Por que acham que Sócrates foi condenado a tomar cicuta? Justamente porque o barbudo se recusava a por no papel aquilo que pensava, insultando o clips como objeto dispensável às necessidades humanas.... veredito? Um processo em praça pública que o levou a morte, todo circunstanciado em laudas e mais laudas, unidas de que maneira? Por um clips grego, é claro. Pobre dos atores, poetas que desprendem o verbo da escrita, creditando à garganta a sua potencia encantatória. Serão todos esquecidos. Somente o clips prevalecerá! Nas futuras escavações, será o fóssil do clips que testemunhará a nosso favor... 

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Banheiro é o berço da filosofia...




O banheiro é o berço da filosofia, lugar de elucubrações elaboradíssimas, arrisco a dizer que o ‘conhece-te a ti mesmo’ surgiu quando perguntaram a Sócrates qual shampoo usar na hora do banho, o de cabelos secos encaracolados, ou o destinado a cabeleira lisa passada na chapinha? E eis que o filósofo devolve a batata quente ao ensaboado inquiridor: ‘conhece-te a ti mesmo e saberás qual escolher, Dove reparador de pontas secas ou Pantene nutrição total’; o trecho final foi surrupiado para dar a entender que a nossa filosofia sempre foi fundamentada em temas metafísicos de seriedade suprema, mas de metafísicos e sérios não temos nada, só a audácia de acharmos que somos superiores a qualquer outra espécie que nunca teve de decorar a fórmula de báscara para passar de ano no maldito ensino médio, ou fingir interesse no julgamento do mensalão para justificar uma dignidade que nunca existiu em nenhum de nós – às vezes me dá uma vontade louca de ter nascido um ouriço nas Bahamas, um ouriço nas Bahamas tem a vida melhor do que a de qualquer um de nós, mergulhado em tranqüilas águas quentes sem precisar se preocupar com o Russomanno prefeito de SP ou mesmo em aprender logaritmo para provar aos crustáceos circundantes de que ouriço que é ouriço sabe honrar os espinhos pontudos que carrega... definitivamente um ouriço nas Bahamas tem uma vida melhor que a nossa, freqüentadores de banheiros metafísicos. Mas voltemos ao banheiro. Hoje de manhã tive uma experiência digna de nota, escovei os dentes com a pasta close-up refrescância total sabor tutti-frutti, um bálsamo dos sabores bucais que até agora desconhecia. Já reparou que a vida é assim mesmo? Alguns se dedicam anos a fio dentro de um laboratório para encontrar o sabor exato do tuttu-frutti dental (o hortelã-eucalípto é outra história!) de modo que você sinta o prazer de pertencer a uma raça que se preocupa com tudo, até mesmo para você ter o direito de não precisar se preocupar com nada, e é justamente nessa ponta que eu me estabeleço. Nesse mundo de alquimistas das pequenas coisas eu me coloco na posição de filósofo comedor de churrasco na laje, os outros que se virem para inventar um fio dental talentoso que faça voar o resto de carne que por ventura vier a estacionar nas frestas da minha dentadura... e é claro que depois haverá sempre um banheiro metafísico com uma pasta dental saborosa à minha espera. Às vezes eu tenho uma dó tremenda dos ouriços das Bahamas que não podem desfrutar dos mesmos prazeres mundanos que eu...  

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Ode ao umidificador...



Ganhei um umidificador de ar e minha vida mudou... em dias secos, ligo o meu umidificador; em dias não tão secos, também ligo o meu umidificador; em dias nublados, por que não ligar o meu umidificador? Já que toda hora é hora de ligar o seu umidificador, eu também ligo o meu umidificador em dias nublados; mesmo quando o mundo está virando um pão bolorento de tanta umidade, eu faço questão de ligar o meu umidificador. Umidificadores deveriam vir dentro da cesta básica, afinal, mesmo com o apocalipse batendo à porta, aquela fumacinha gelada e branca parece dizer: 'Ei, sorria, tá tudo bem, olha que delícia é a vida!' Parei com a terapia, agora é o meu umidificador que me ouve quando deito no divã...

A batalha das miudezas diárias...




Meditando sobre os dissabores dessa nossa triste vida, cheguei à conclusão de que vencer uma guerra é infinitamente mais fácil do que lidar com os pequenos entraves do cotidiano. Por exemplo, ontem estacionei meu carro bem próximo de uma pilastra, já imaginando que esse meu shape de faquir-do-rio-Ganges daria conta de se esgueirar para fora sem maiores problemas. Ledo engano... com metade do corpo já à salvo, eis que um pé resiste à tentação de abandonar o veículo e se engancha no vão entre a porta e a cadeira do motorista... ao tentar livrar o bendito cujo, meu bastonete de manteiga de cacau cai do bolso e rola galhofeiro para debaixo do automóvel (pequeno à parte: resgatar esse objeto era motivo de primeira ordem, tendo em vista que um cactus do Saara tem a pele mais sedosa e hidratada que a nossa, habitantes da capital da fumaça)... continuando, livro o pé e me abaixo para apanhar a manteiga fugidia e é aí que a mochila resolve despencar das minhas costas e espalhar todo o seu conteúdo no chão da garagem. Subo vivo ao meu apartamento e quando abro a porta a maldita maçaneta sai na minha mão... nem Winston Churchill saberia como consertar essa pequena peça da engenharia doméstica. Morrendo de fome, tento abrir um vidro de palmito que deve ter sido lacrado na época da santa ceia, porque mesmo evocando fervorosamente o espírito santo (ou o preto-velho do candomblé) a coisa insistia em permanecer fechada... resumindo, é muito mais fácil decolar no Enola-Gay e lançar uma bomba atômica no cocuruto dos comedores-de-sushi do que enfrentar a gincana diária da vida...

Marcha contra os pintassilgos...


Tem um maldito pintassilgo, ou o que quer que o valha, que insiste em pousar numa árvore próxima à minha janela para diariamente me convocar ao serviço de feirante antes mesmo do seu parente galo acordar. Já tentei de todas as maneiras avisar o desgraçado do pintassilgo, ou o que quer que o valha, de que feirante é a galinha-da-sua-mãe-me-deixe-dormir-porra, mas parece que a filiação do penoso não
 é galinácea e sim herdeira das aves agourentas do inferno! Ando bolando um plano para abater o tal do pintassilgo, ou o que quer que o valha, e antes que a APDP - Associação de Proteção aos Direitos do Pintassilgo - venha me processar por crime contra à natureza, faço questão de redigir um convite escrito de próprio punho para que todos os defensores do pintassilgo desse mundo repousem uma noite no meu quarto para sentir na própria pele o que é ser intimado a carregar no lombo uma caixa de couve no CEASA, só peço que haja certa organização nesse procedimento para que minha humilde residência não se transforme na nova Aparecida do Norte, com legiões de fiéis ao pintassilgo vindo acampar em cima do meu colchão. Além do mais, há que se preservar a dignidade da raça humana, raça essa que trouxe aos seu pares figuras ilustres tais como Aristóteles, Sócrates, Ronaldinho Gaúcho e Gretchen, nomes infinitamente superiores à toda cadeia de pintassilgos que já voaram por esses ares esfumaçados. Portanto, chega de me sentir o Pato Donald tentando roncar feliz e agarrado ao seu travesseiro, vou seguir o conselho de Hamlet: 'o mundo está fora dos eixos. Maldito o dia em que eu nasci para pô-lo no lugar!'...