sábado, 1 de janeiro de 2011

No princípio era o silêncio...


Olho para fora, através da janela, e agora consigo reconhecer precisamente o que me atrai aqui, no Canadá. Não é a neve nem a beleza do cenário, tampouco a invejável organização de um país que respeita seus habitantes. Não. Fico com algo mais simples, fico com o silêncio. Pensemos sobre o assunto.


As melhores paisagens são mudas, o único som possível é aquele audível pela respiração de quem contempla com profundo respeito um silêncio já raro entre os que não abrem mão do verbo para descrever o que não necessita ser explicado.

As melhores sinfonias sabem que a melodia dos instrumentos só é potente na medida em que reconhece no silêncio da pausa o instante passageiro que confere a música toda a sua força poética. As melhores sinfonias trabalham para o silêncio e no silêncio.

As melhores peças de teatro são aquelas que conseguem a difícil façanha de conservar o mistério efêmero que separa o início do espetáculo da algazarra que preenche o momento de ocupação do público na sala. É no movimento do abrir da cortina, breves segundos de silêncio, que reside a qualidade artística que as palavras que virão a seguir deverão necessariamente dar conta de manter. O bom dramaturgo sabe que suas palavras só são eficazes na medida em que fazem revelar espaços entre as frases, pausas não traduzíveis, silêncios repletos de verdades incontestáveis. Nada combina mais com péssimo teatro do que a tagarelice.

O bom ator é expressivo no silêncio, não se esforça para convencer ninguém com a sua voz porque tem a convicção de que a palavra só lhe serve até certo ponto. A humanidade da personagem que interpreta não vem impressa em formato de receita tal qual ocorre nas bulas de remédios da farmácia; para alcançá-la é preciso silenciar, e este exercício é o que separa o grande artista daquele outro, o medíocre. Enquanto um se permite experimentar a dúvida não expressa em verbalizações, ou seja, o silêncio, o outro não perde tempo em mostrar serviço, tagarelando.

É na pausa do avião na cabeceira da pista, segundos antes de decolar, que a viagem ganha todo o seu sentido, o resto só terá interesse se conseguir sustentar essa expectativa inicial de mistério não revelado. O viajante que retorna ao seu destino com um repertório de histórias não foi tão longe quanto aquele que regressa sem saber ao certo o que revelar. Nada mais triste do que viajar para tirar fotos; álbuns são documentos, não experiências vividas.

Concordo com Nelson Rodrigues: a missa só interessa quando padre e fiéis decidem não comparecer ao evento. A igreja vazia, com seus ecos silenciosos, é muito mais sagrada do que quando repleta de ladainhas e vozes em coro. O espiritual só ganha sentido quando não há interlocutores, quando a solidão se faz sentir. Pobres daqueles que acham que formar rebanhos é a saída para encontrar a salvação. “O homem mais forte é aquele que está mais só”, como já dizia Ibsen.

Todos deveriam ter direito ao silencio e o dever de praticá-lo.

Olho novamente para a rua deserta lá fora. O frio convida ao silêncio. Quão mais sábios seríamos nós, brasileiros, se tivéssemos a oportunidade de experimentar mais o prazer de um inverno como esse. Sentirei imensas saudades quando regressar ao meu país.

Escrito por Francisco Carvalho. 1.1.2011. Canadá.




3 comentários:

  1. Acredito que a leitura é um dos mais encantadores tipos de viagem, e como você mesmo disse, "O viajante que retorna ao seu destino com um repertório de histórias não foi tão longe quanto aquele que regressa sem saber ao certo o que revelar".
    Ao acabar de ler esse maravilhoso texto, não me sobraram palavras para expressar minha admiração, apenas um amontado de sensações que dificilmente conseguiria transcrever nesse comentário.
    Sendo assim, tudo que posso fazer é te pedir que continue escrevendo e nos emocionando com suas palavras para que eu possa fazer muitas outras viagens, dentro de mim mesma, como essa que acabo de realizar.

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  2. Texto excelente, achei por acaso, devido a frase do Ibsen... Gostei muito. Parabéns!

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