Ao lado da guarita do Guarda, bem ao lado desse caixote de
concreto com uma janelinha de vidro incrustada no meio para que o homem que
está lá dentro possa nos proteger dos outros de nós mesmos que estão do lado de
fora, vizinho a esse bunker mal ajambrado que pinga nas esquinas das nossas
ruas e faz nos fingir mais seguros, bem ali do lado, irmã-caçula da construção
maior e colada a ela, está a casinha do cachorro. De teto de lona de plástico
ou de telha, elevada por tijolos do chão úmido ou forrada por jornais de ontem,
de alvenaria ou mesmo de restos assimétricos de tábuas largadas por aí, ao lado
da guarita do Guarda está sempre ela, a casinha do cachorro. E dentro está ele,
o cachorro. De olhos semicerrados e orelhas dobradas ao meio formando setas que
apontam para destinos contrários, misturando uma cor na outra sem qualquer
cerimônia estética típica dos primos de pedigree, no alto da postura altiva da
sua viralatice respeitosa, como uma esfinge congelada pela nobreza dos sortudos
que nasceram com focinho ao invés de nariz, o cachorro jaz sentado sobre as patas
traseiras na função de proteger quem nos protege. Lá dentro da casinha
permanece ele, e sem desmontar a figura emite um breve suspiro de alívio que
faz inflar seus pequenos pulmões num convite tentador para esparramar em
definitivo o papo ao chão e dar adeus ao árduo ofício de vigiar quem nos vigia.
Mas o cachorro resiste. Quem o visse de longe poderia confundi-lo com uma
sentinela de cera, inerte na mesma postura de sempre, com aquele rosto de fiel
escudeiro semiencoberto pela sombra projetada pelo teto da frágil moradia. Mas
o cachorro não parece se importar com a imagem que produz na mente dos
passantes, e ainda que tivesse consciência do que dizem ou pensam, responderia
que a condição de cachorro-estátua lhe cai muito bem no exercício de zelar por
aquele que o alimenta e vez ou outra o afaga no cocuruto. Ora bolas, um
cachorro estátua! Pensa o cachorro sem mover um milímetro do seu perfil de
mármore, que tipo de gente vocês são para denegrir os sujeitos de quatro patas
como nós? Vivem por aí zanzando de um lado para outro e acabam sempre voltando
para o mesmo lugar! E mesmo que não falasse para ser ouvido, o cachorro tinha
razão. A rua era uma passarela de trânsito previsível, as mesmas pessoas
passavam por ela para ir ou voltar de lugares que já tinham ido não sei quantas
vezes, e voltado outras tantas infinitas. Se há a necessidade de ir, porque ao
chegar não ficar de vez? E se quiserem voltar, que voltem para sempre. Isso sem
contar aqueles semáforos e sinais de trânsito que organizam um fluxo de
formigas paranóicas, condenando o pobre diabo que fugir do combinado a virar
assassino ou cadáver. E se ainda toda essa gincana fosse brincada no
silêncio... mas a regra é estourar o tímpano do vizinho. O que dizer então da
obrigação, tão esquizofrênica quanto às outras, de fingir que cada dia é um dia
diferente? E dá-lhe um repertório incrível de fantasias e argumentos para
convencer o mundo de que as cartas ainda não estão dadas, exigindo que cada um
construa um teatro próprio na intenção de protagonizar uma farsa mesquinha de
expectativas, futricas e vaidades: Fulaninho foi promovido, Sicrano traiu a
esposa, Beltrano está terrivelmente aborrecido com a sua ausência na festa de
aniversário da filha... uff! Não basta simplesmente viver para ser feliz com o
quinhão de felicidade que já está ao alcance das mãos, ou das patas,
considerando o meu caso? É isso mesmo! Sou um cachorro-estátua! Não vou a lugar
nenhum porque aqui já está ótimo. Que fiquem vocês com suas consciências
elevadas, a mim não importa nada disso. [PAUSA] Finalmente o cachorro ajeita-se
dentro da casinha e deita, o focinho virado para dentro... a mensagem é clara:
‘chega! Vocês me cansam com toda essa filosofia chinfrim!’... Mais um suspiro
canino. Dentro da guarita o Guarda prepara-se para o período noturno e acende
uma luz amarela que ilumina precariamente o curto espaço em que habita sentado,
mas o suficiente para provar que ele está lá, pronto para nos proteger de
outros de nós mesmos. Um pássaro solta uma espécie de guincho ao longe e o
cachorro, sábio na literatura dos ruídos, somente amplia um pouquinho mais a
fresta mínima do seu olhar de detetive à paisana num reflexo de quem sabe que
aquilo que está no céu é incapaz de ameaçar aquele que dentro da guarita imita
a mesma postura preguiçosa do seu Sancho Pança de rabo abanante. Se não fosse
pelo meu dono eu desistiria dos humanos, pensaria o cachorro caso pudesse
pensar... O dia cai depressa e a rua sem pressa insiste em prever adiante mais
uma jornada semelhante à anterior - uma sucessão ininterrupta de idas e vindas
de carros e pedestres, às vezes na garupa de uma bicicleta, numa carona de
vigília sem fim, à espreita dos ponteiros que avançam porque foram instruídos a
avançar. E lá fica o cachorro dentro da sua casinha, um totem de bigodes que
tudo vê sem nada interferir, dessa vez deitado, pronto para dormir... e dorme.
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