sábado, 15 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Olívia das Hortências, regente da plateia...


Sabe-se que as coisas andam tão absurdamente subvertidas nessa vida, os baixos subindo aos ombros dos altos para angariar horizontes antes cegos, cegos enxergando mais do que os que enxergam, mortos que vivem mais do que os vivos que deveriam por direito adquirido viver antes de morrer, os mestres pleiteando o diploma da mentecapice em favor dos pupilos que, sabidamente burros, viram catedráticos respeitadíssimos e de toga, enfim, é um tal de azul virar verde e verde virar amarelo, tudo sem aviso prévio, que não surpreende o fato de Olívia das Hortências, a assinante de concertos da Orquestra do Estado, agir dessa forma, como se ela fosse o centro das atenções, mui vezes mais interessada em monologar no silêncio do que assistir ao pobre do spalla regurgitar escalas dificílimas, e assim marcar presença como regente de um naipe só dela, todo coordenado pelos seus gestos de virar de olhos, torcer dos lábios, amassar o papelzinho de bala, breves ruminações intestinais habilmente liberadas em tempo de sincopa, enfim, todo um repertório de grunhidos e tiques milimetricamente ensaiados, havendo por fazer dela, enfim, dona Olívia das Hortências, uma enorme e gorda batuta de carne e banha, levando atrás de si toda uma plateia que de interessada nos músicos não tinha absolutamente nada, antes marcando encontros para seguir as ordens dela, Olivia das Hortências, essa senhora que um dia encantou-se em saber que a Orquestra do Estado abriria uma série de assinaturas para que o público pudesse tornar-se fiel e ainda mais próximo desse que é considerado um dos conjuntos mais notáveis do mundo orquestral contemporâneo. E dito e feito. Com salas cada vez mais abarrotadas de séquitos de dona Olívia das Hortências, senhoras e senhores na sua maioria surdos, gagás e ricamente populosos nas ancas já atacadas pela osteoporose, não foi pouca a repercussão do sucesso empreendido pela Orquestra do Estado no intuito de ampliar seus programas sinfônicos e apresentações de câmara e, embora quase ninguém estivesse interessado em ouvir patavinas do que Mozart, Beethoven ou seja lá quem quisesse dizer, a plateia, toda ela partidária de dona Olívia das Hortências, fazia cara de absoluta comoção, reagindo a cada respiração mais grossa de dona Olívia das Hortências, sempre atenta para gritar ‘Bravo!’ ou ‘Viva!’, mesmo que, imaginemos o fato, a Orquestra do Estado resolvesse amassar e jogar fora toda a sua erudição construída por anos a fio, e saísse a interpretar a La Cucaracha, com violoncelistas trajando enormes sombreiros a rodopiar palco afora. Enfim, cabe dizer que houve um instante de absoluta sensibilidade por parte de Sir Marlon Oilsip, maestro titular da Orquestra do Estado, obrigando todos os seus músicos a interromper o matraquear afinado dos seus instrumentos no auge do último movimento de Mahler, para virar-se em direção à plateia, terreno onde um adagietto em ronco maior se dava em pleno chilrear de beiços moles, e cujo centro respiratório encontrava-se justamente na goela da dona Olívia das Hortências. Desde então, e concluímos por aqui, as coisas trocaram de lado, a plateia subia ao palco, e os músicos sentavam-se nas cadeiras do público, executando trechos muito breves de alguma peça ligeira e sem profundidade alguma, toda vez em que o tédio da massa velha e sem interesse permitia um entreato.    


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