Sabe-se que as coisas andam tão absurdamente subvertidas
nessa vida, os baixos subindo aos ombros dos altos para angariar horizontes
antes cegos, cegos enxergando mais do que os que enxergam, mortos que vivem
mais do que os vivos que deveriam por direito adquirido viver antes de morrer,
os mestres pleiteando o diploma da mentecapice em favor dos pupilos que,
sabidamente burros, viram catedráticos respeitadíssimos e de toga, enfim, é um
tal de azul virar verde e verde virar amarelo, tudo sem aviso prévio, que não
surpreende o fato de Olívia das Hortências, a assinante de concertos da
Orquestra do Estado, agir dessa forma, como se ela fosse o centro das atenções,
mui vezes mais interessada em monologar no silêncio do que assistir ao pobre do
spalla regurgitar escalas dificílimas, e assim marcar presença como regente de
um naipe só dela, todo coordenado pelos seus gestos de virar de olhos, torcer
dos lábios, amassar o papelzinho de bala, breves ruminações intestinais
habilmente liberadas em tempo de sincopa, enfim, todo um repertório de
grunhidos e tiques milimetricamente ensaiados, havendo por fazer dela, enfim,
dona Olívia das Hortências, uma enorme e gorda batuta de carne e banha, levando
atrás de si toda uma plateia que de interessada nos músicos não tinha
absolutamente nada, antes marcando encontros para seguir as ordens dela, Olivia
das Hortências, essa senhora que um dia encantou-se em saber que a Orquestra do
Estado abriria uma série de assinaturas para que o público pudesse tornar-se
fiel e ainda mais próximo desse que é considerado um dos conjuntos mais
notáveis do mundo orquestral contemporâneo. E dito e feito. Com salas cada vez
mais abarrotadas de séquitos de dona Olívia das Hortências, senhoras e senhores
na sua maioria surdos, gagás e ricamente populosos nas ancas já atacadas pela
osteoporose, não foi pouca a repercussão do sucesso empreendido pela Orquestra
do Estado no intuito de ampliar seus programas sinfônicos e apresentações de
câmara e, embora quase ninguém estivesse interessado em ouvir patavinas do que
Mozart, Beethoven ou seja lá quem quisesse dizer, a plateia, toda ela
partidária de dona Olívia das Hortências, fazia cara de absoluta comoção,
reagindo a cada respiração mais grossa de dona Olívia das Hortências, sempre
atenta para gritar ‘Bravo!’ ou ‘Viva!’, mesmo que, imaginemos o fato, a Orquestra
do Estado resolvesse amassar e jogar fora toda a sua erudição construída por
anos a fio, e saísse a interpretar a La Cucaracha, com violoncelistas trajando
enormes sombreiros a rodopiar palco afora. Enfim, cabe dizer que houve um
instante de absoluta sensibilidade por parte de Sir Marlon Oilsip, maestro
titular da Orquestra do Estado, obrigando todos os seus músicos a interromper o
matraquear afinado dos seus instrumentos no auge do último movimento de Mahler,
para virar-se em direção à plateia, terreno onde um adagietto em ronco maior se
dava em pleno chilrear de beiços moles, e cujo centro respiratório
encontrava-se justamente na goela da dona Olívia das Hortências. Desde então, e
concluímos por aqui, as coisas trocaram de lado, a plateia subia ao palco, e os
músicos sentavam-se nas cadeiras do público, executando trechos muito breves de
alguma peça ligeira e sem profundidade alguma, toda vez em que o tédio da massa
velha e sem interesse permitia um entreato.
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