segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Cornélius Antônio, o cínico...

Era uma fila. E, sendo uma fila, não há maiores razões para se evitar uma compreensão a fundo a respeito do que essa sequência de homens a espera de algo representa: uma fila e não mais do que isso. Porque motivos outros não podemos aferir acerca do significado vazio disso a que costumamos nos habituar como sendo o exemplo mais cabal do desenvolvimento humano: a religiosa capacidade de mofar atrás de algum pobre diabo até o instante em que alguém venha nos dizer: liberte-se e vá para onde bem lhe aprouver a vontade. Era, portanto, uma fila das mais significativas, tão inútil quanto aquela encontrada no dia anterior, exatamente estacionada no mesmo lugar da véspera, terreno cujos dias iam se sucedendo, cada um deles espectador do mesmo espetáculo patético e mudo, estrelado por faces sonolentas de nomes irrelevantes, todas elas cumprindo seu papel de registro na tábua da posteridade, algo como uma migalha desimportante, mas que com o esforço persistente consegue alçar o sentido daquilo que rodopiamos para dizer e então resumir: era uma fila. E veja que há uma dignidade toda exemplar nisso, afinal, inventando razões para não ter que se justificar como tal, uma fila paira na condição de ser o que é sem necessidade alguma de recorrer a quem quer que seja para legitimar a imprestável serventia que esse enfileiramento de cabeças e pés reivindica por ser. Enquanto tudo o que é nobre e passível de admiração sofre com a urgência de encontrar arautos que saibam encerar a fina camada de poesia de suas rubras faces, a fila, no seu itinerário silencioso e imprestável, mantém solitária a sua grosseira exemplar. Dito isto, Cornélius Antônio, mais um que contribuía para o enfileiramento daquele dia, só esperava a sua chance de travar conversa com o atendente do caixa, diálogo que não deveria fugir de algumas trocas de valores de cifras monetárias referentes ao frugal desjejum que toda manhã era servido naquele lugar muito propício à formação de filas, e que costumeiramente fora batizado de padaria. Pois quando chegou a sua oportunidade de desembolsar seus tostões, Cornélius Antônio, face a face com o atendente de caixa, sujeito de semblante amanteigado, como se houvesse por talento absorver aquela pasta amarela que deitavam nos pãezinhos saídos do forno, enfim, Cornélius Antônio percebeu que os holofotes da existência estavam todos voltados para si, e aquele haveria de ser o seu momento, chance única de fugir do enredo costumeiro e improvisar linhas que, uma vez bem articuladas, poderiam fazer de todos os que o rodeavam meros coadjuvantes. E assim se deu:

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
Tem fogo?

CAIXA AMANTEIGADO:
(risca o fósforo)

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
O senhor fuma?

CAIXA AMANTEIGADO:
(balançar negativo de cabeça)

CORNÉLIUS ANTÔNIO:
(baforejando aos quatro ventos)
Sorte a sua!

E foi embora. E a fila nada entendeu, mantendo sua rígida formação militar, sem sequer se dar conta de que um grandioso ator de nome Cornélius Antônio acabara de sair de cena sem que houvesse o seu talento, por merecido mérito, sido reconhecido.

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