sexta-feira, 9 de maio de 2014

# Os Bulhões e o farol...


As Ilhas Rochosas eram na verdade uma só, um único promontório de granito escarpado cinza-chumbo que figurava ao longe, bastante visível aos que apertavam os olhos da praia em direção ao horizonte. Servia basicamente de poleiro para uma espécie de ave migratória, não havendo nenhuma abundância em matéria de flora ou fauna. Nada de especial poderia ser destacado desse pedaço de rebentação naufragado, praticamente um erro de fácil esquecimento por parte do arquiteto responsável pelo desenho daquela fatia geológica. Havia, porém, um farol no topo das Rochosas, edificação construída em tempos remotos para orientar as embarcações que atravessavam o mar de uma ponta a outra. Quem operava a sua lâmpada era um tal de senhor Bulhões, há anos recluso com sua mulher e filhos na ilha. Rejeitado pela totalidade da população, o emprego de faroleiro das Rochosas fora logo aceito por este homem de compleições tímidas, nada afeito ao burburinho do continente. No início, ainda solteiro, um barco ficara responsável por lhe enviar mantimentos da terra firme, mas que acabou por encerrar seu itinerário por ordem do próprio senhor Bulhões, que dizia já bastante adaptado ao lugar para poder se virar por conta própria. Pescava para sobreviver. Até mesmo o querosene, combustível que fazia girar o mecanismo do farol, deixou de ser um problema para a paz do senhor Bulhões – uma nova tecnologia solar por ele mesmo desenvolvida evitava o desconforto de acionar todo mês o continente para o envio do fluído em tonéis pesados. Vivia em silêncio o senhor Bulhões, vida cuja única tarefa útil era a de manter acesa a lâmpada do farol. Muitos anos se passaram sem que o senhor Bulhões voltasse ao continente ou dele recebesse visitas. Quem se arriscasse a levar uma luneta para a beira da praia poderia com sorte enxergar o senhor Bulhões pescando, descansando estirado em alguma pedra ao sol, ou até mesmo cantando em direção ao céu, cena que fazia lembrar um monólogo sem plateia de um triste louco misantropo. Sua solidão fora interrompida pelo ímpeto de Lucrécia, uma jovem rendeira que a exemplo do senhor Bulhões um dia manifestou publicamente o seu desconforto com as pessoas do mundo. Foi-se embora numa canoa ao encontro do senhor Bulhões. Ele a acolheu e, surpreendentemente, ambos geraram filhos sem qualquer ajuda dos que aqui por terra ficaram. Eram aparentemente dois meninos, vez por outra vistos ao longe a colher conchas. Nunca se soube o nome deles. Nunca se soube onde é que moravam. Fora o próprio farol, não era possível reconhecer nenhuma edificação naquele pedaço de rocha abandonado por Deus, supondo que o lado oculto de quem o via da terra era suficientemente plano para que uma casa pudesse ser erguida – coisa evidentemente provável, já que o farol não era amplo o suficiente para abrigar mais de uma pessoa. Os anos se passavam. Um dia a lâmpada do farol parou de funcionar, apagou repentinamente e sem qualquer indicação prévia de perda de potência. Simplesmente escureceu de uma hora para outra. É bem verdade que já fazia tempo que ninguém avistava os Bulhões da praia, mas isso não virou matéria de espanto, já que a lâmpada estava plena em sua atividade, também os Bulhões deveriam estar bem. Uma comitiva partiu do continente para averiguar a situação. Chegando ao topo do farol, um recado escrito à mão pendia sobre uma velha mesa de carvalho carcomida pela maresia:
"Fomos embora já há bastante tempo. O equipamento deve ter funcionado por cerca de cinco anos desde a última vez em que estivemos por aqui. Um breve ajuste será o máximo a ser feito, possivelmente, para que volte à ativa. Deixo a vocês essa incumbência.”
Mais tarde, decorridos meses da leitura da carta, uma garrafa de vidro vazia e arrolhada chegou boiando à praia do continente. Acreditou-se haver uma mensagem dentro, talvez notícias dos Bulhões. De fato havia um papel no seu interior, mas a água do mar deu conta de penetrar pelos poros esponjosos da rolha, apagando toda e qualquer escrita que pudesse haver.
O tempo passou. Nunca se soube se a garrafa era de fato uma tentativa de contado da família Bulhões. Nunca se soube do paradeiro da família Bulhões, se ainda hoje estão vivos ou não mais.
O farol foi definitivamente desativado.
Na escuridão das Ilhas Rochosas, que na verdade são uma só, o mar continua rebentando suas cristas de onda como sempre o fez, e como sempre o fará.

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