Fui acometido por uma síncope,
uma espécie de constipação das vias morais... estava eu a mofar no meu sofá,
velho companheiro de suporte glúteo, quando de repente e sem qualquer anúncio
prévio percebi-me tapado... mais do que tapado, uma toupeira de sangue puro,
daquelas toupeiras que nasceram privilegiadas pelo pedigree dos idiotas. Pobre
das almofadas coloridas, primas-irmãs do Atlas-dos-Traseiros, que no instante
decisivo da minha transformação de filósofo-do-espírito-elevado para um
moribundo-de-orelhas-de-abano, foram agarradas por essas mãos trêmulas, ávidas
na desesperada tentativa de sustentar o último fio de inteligência que me
restava. Pensei em alcançar o interfone e pedir ao porteiro alguma providencial
ajuda, mas interrompi o ímpeto ao tomar consciência de que o funcionário-das-grades-eletrônicas
não poderia fazer muita coisa a não ser rir da minha cara de anta recém
graduada. Que desgraça é não haver um kit de primeiros socorros para ataques
convulsivos de burrice, caixinha médica cujo desenho de um cérebro estaria incrustado
numa face visível a todos os necessitados de uma injeção de massa cinzenta, e
que contivesse uma espécie de desfibrilador neural capaz de chacoalhar os
neurônios, fazendo-os retornar das suas férias no litoral baiano. Sozinho e
desamparado, resignado pelo carimbo na minha passagem só de ida ao país dos
cabeças-de-vento, resolvi, como última estratégia, sair à varanda e gritar a
plenos pulmões a minha sentença funesta, na esperança de que alguém devolvesse uma
palavra amiga ou de consolo, algo do tipo ‘Já vai tarde, seu acéfalo
quadrúpede!’. Debrucei-me no parapeito da sacada ao lado da minha amiga
samambaia, e antes de gritar qualquer coisa, abençoei a sorte daquela planta
que viera ao mundo sem as estruturas formadoras da caixa craniana, esse cofre
de osso que faz de todo mundo que o carrega um potencial aspirante à burrice. ‘Sou
uma antaaaaaaaaaa!!!’, foi o teor inteligentíssimo do meu epitáfio gutural,
mensagem sem criatividade alguma e respondida com um retumbante silêncio
plácido dos eruditos, fatia humana que tem mais o que fazer do que prestar
exéquias fúnebres ao único idiota que se descobre imbecil. Voltei para dentro
da minha choupana elevada, nome carinhoso a que foi batizado o meu apartamento
ainda nos dias áureos da minha atividade mental, e decidi tocar a campainha do
vizinho, rosto cujas feições me eram tão conhecidas quanto às de qualquer
desgraçado que atravessa à rua para comprar mamão na feira. Quer ocasião mais
propícia para se conhecer um vizinho do que essa? Um pedido de ajuda regado a chá com biscoitos
em virtude da minha revoada forçada de ideias sapientes, conferindo ao
interlocutor do lado de lá a fundamental tarefa de me botar dentro de uma
ambulância para delegar a especialistas do reduto medicinal à cura da triste
falência moral do qual virei portador. Eu ficaria contente com tal previsão da
sequência dos acontecimentos caso não tivesse novamente um vislumbre do absurdo
que seria a minha chegada numa triagem de emergência, deitado numa maca, cheio
de convulsões e coágulos invisíveis, tentando convencer o Dr. Fulano de Tal de
que o meu caso era realmente grave, gravíssimo, forte concorrente a um leito na
UTI-dos-Asnos. Pobre de mim, quem disse que os hospitais estão preparados para tratar
de tal enfermidade? Porque o que manda nesses prédios com cheiro de éter e de
corredores que servem de desfile para a eterna moda Branco-Amém, é remendar as
feridas do corpo, sendo razão suficiente para se lançar fogos de artifício
quando um desvalido que entra em cadeira de rodas sai andando, dando piruetas
para trás. Ora veja, erguer um sujeito nas suas duas pernas é um negócio pra lá
de simples! Quero ver tratar do meu caso, perscrutar os interstícios
misteriosos das proteínas formadoras desse vírus ou ameba da mentecapice que
uma vez instalado no organismo suga o fluído do QI para níveis baixíssimos! Socorro!
Eu exijo cuidados! Onde está a junta de pesquisadores altamente renomada no
fenômeno instantâneo de perda absoluta da inteligência? Alguns poderiam dizer
que estou maluco, receitando-me o mais conceituado dos psiquiatras para tentar
restaurar a química dos miolos derretidos... vão lamber sabão, eu responderia!
Eu não estou louco, aliás, muito pelo contrário: estou absolutamente são, tão
equilibrado que não tenho problema algum em admitir que virei uma toupeira!
Mais doentes do que eu são esses acadêmicos de terno e gravata que adoram sair
por aí a divulgar diagnóstico do que acontece na soleira das suas portas para
fora, já que quando o assunto é olhar no espelho, tratam logo de fazer uma
careta de ‘ué’ para em seguida aplicar um desses cremes faciais
anti-envelhecimento! Desisti do vizinho, enfiei-me debaixo do cobertor e peguei
da minha estante o primeiro livro que o destino me fez escolher: ‘A
Metamorfose’, a história de Gregor Samsa que acorda uma barata depois de uma
boa noite de sono. Que coisa é a vida... enquanto o protagonista de Kafka se
transforma numa barata-filosófica, porque a despeito da sua nova forma física o
pensamento é preservado, eu, por minha vez, perco qualquer filosofia, mas não
abandono o mesmo rebolado de antes, quando parecia inteligente. O saldo final
de tudo isso é incerto, só sei que dormi... e acordei um gênio, afiadíssimo
para lhes relatar essa história de falsa modéstia, de alguém que finge perder a
razão para chegar à conclusão de que a razão sempre esteve com ele. E que razão
magnífica! Bravo! Minha próxima reflexão será sobre a modéstia... e eu mal vejo
à hora de aplaudir de pé o que eu próprio irei escrever. Quanto a vocês do
outro lado da página... vão todos lamber sabão!
Uau! o.o Você escreve muito! =) Adorei
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