domingo, 13 de maio de 2012

O que acontece com a arte e com o teatro? Meu humilde diagnóstico...


O único esforço verdadeiro é aquele que é medido pela escala do impossível, que nos exige sacrifícios e caminhadas na beira do abismo, tudo sob o risco de escorregar, despencar e cair. Para encarar tal travessia há, necessariamente, uma seleção dos aventureiros. A solidão é fundamental para o viajante que põe os pés nessa estrada. Antes de alcançá-la, é seu dever provar que reúne qualidades suficientes para enfrentar o desafio. Nem todos estão aptos a acomodar o risco do fracasso dentro da mochila, nem todos sabem que para se colocar em movimento é fundamental desenvolver previamente músculos fortificados, a grande maioria já se apresenta atrofiada na preguiça e sem a ferramenta fundamental para qualquer explorador manter-se vivo: a imaginação. A solidão qualifica o aventureiro, ainda que o mundo tente o convencer a não partir. A dureza dos tempos atuais está na democratização de tudo quanto é passaporte, a onda de excursionistas que invade os territórios antes misteriosos e inatingíveis mata a possibilidade do impossível, esgotando as forças dos poucos aventureiros que ainda restam. As grandes travessias agora perdem para o GPS. A solidão criativa não sobrevive frente ao fuzuê dos grupos de turistas. Ao invés de silêncio, barulho. Antes concentração, agora risos tresloucados. Democratizar o impossível é o passo decisivo para a morte das grandes empreitadas criativas.

domingo, 6 de maio de 2012

O que a música e os músicos me ensinam...



É uma parte, apenas uma parte, pensada e executada na plenitude do seu significado, da sua sensação e importância em relação ao resto. Uma fração que sozinha pode não ganhar a dimensão do que representa, mas quando combinada com as outras vozes que a circundam, aí sim, eis a potência que germina. Uma frase, não uma sentença completa, uma sílaba, talvez apenas uma letra, só o suficiente para deixar espaço para que o diálogo se estabeleça, uma escuta do vazio, da pausa e do silêncio. Silenciar para poder falar, se ausentar para poder estar. Um traço, somente um traço, executado como se fosse a manifestação divina do primeiro sinal de vida no universo. Um batismo que ainda irá eclodir. Não há inteireza no particular, não há universos completos, nunca se chega a apoteose alguma na solidão do íntimo, mas é nesse lugar que é preciso investir, não para se contaminar com a poesia do coração - qualquer coração, por mais especial que seja, nunca estará a frente das forças que movem o universo -, mas para o tornar pulsante, único e atento aos órgãos vizinhos. Busca-se o universal, as grandes instâncias geradoras da vida, ousa-se investigar os campos misteriosos da metafísica, de outra maneira, não valeria a pena investir nos canais da percepção. A vida que conhecemos é por demais sem graça para virar protagonista de qualquer coisa. O particular, entendido como fração, ganha preenchimento e força, é ao mesmo tempo único e global, faz parte e é ao mesmo tempo o organismo que representa. Tudo em um, o um no todo.

sábado, 5 de maio de 2012



Acabo de ver um adestrador de cães em ação. A praça da esquina virou uma sala de aula. Seus alunos eram compostos por três dobermans - desses de focinho sério com cara de executivo-de-firma - dois borders-collie e um pitbull velho, que pelo semblante e posição na grama parecia ter acabado de levar uma bronca e sido sentenciado a não levantar o nariz do chão até segunda ordem. Fiquei admirado. O professor pedia algo e os alunos respondiam, um de cada vez e sob comandos individuais, todos sem coleira ou guia, na maior cartilha britânica... fiquei com a impressão de que se alguém perguntasse qual é a fórmula de báscara, um dos executivos de focinho sério - os mais cdf's da turma - levantaria a pata para responder, piscando o olho zombeteiro pro aluno de castigo: 'tsc, tsc... moleza!'. Eu via tudo isso com a Naomi Campbell, minha labradora-anciã-de-barba-branca que fora educada sob os preceitos libertários da escola construtivista. A cena nos captava a atenção, era realmente um espetáculo da ordem e da disciplina... só fui interrompido do meu transe pela própria Naomi que, esfregando disfarçadamente o focinho na minha perna, soprou a meia voz: 'vâmo embora antes que a carrocinha me confunda com uma delinquente-fugitiva da Febem'.


Popularização da cultura, popularização da educação, popularização dos bons costumes... cota pra isso, cota para aquilo e viva a liberdade, igualdade e fraternidade (parece campanha do Vaticano). Antes que me chamem de nazista, já que quem desconfia do povo só pode ser um carrasco-assassino (a multidão sempre é boa, malvados são os que se acham no direito de se destacar dela - o velho e rentável melodrama de sempre!), e mesmo sabendo que todos os absurdos que a história já registrou tiveram participação direta ou indireta dessa mesma massa humilde e sem rosto, gostaria de dizer que sou totalmente contrário a essa experiência de nivelação generalizada, onde tudo é acessível e ao alcance das mãos - e a ideia de que a prática desse procedimento nos garantiria uma sociedade mais justa e humana. Ao contrário, nos tornaríamos mais mentecaptos e manipuláveis. Deveríamos ter desde sempre o direito à consciência das diferenças e se somos todos iguais em direitos também somos diversos em potencialidades - e não estou advogando à favor dos inteligentes, bonitos e espertalhões em demérito dos fracos e incapazes, estou somente afirmando que somos diversos e há coisas que uns podem fazer e outras coisas que deveríamos saber que não estão disponíveis à nossa competência. Todos tem o direito de buscar a excelência dos seus objetivos, todos tem o direito de emancipar suas inteligências (pra reivindicar a burrice melhor seria ter nascido pombo da Praça da Sé, não?) mas não me venham com a sugestão de implodir com as fronteiras do mundo como se o passaporte livre fosse garantir algum tipo de crescimento intelectual e humano. O teto da Capela Sistina só é o teto da Capela Sistina porque está dentro da Capela Sistina... colocar a obra do Michelangelo exposta num toldo da 25 de Março não trará benefício algum de cultura para os ambulantes, além de desmoronar tudo o que de belo há nessa pintura, projetada para ser experienciada por aqueles que se dispuserem a entrar dentro da tal Capela Sistina. Ufa! Pronto, agora podem me chamar de soldado da SS...

segunda-feira, 30 de abril de 2012



Tenho horror a tudo quanto é comunidade, seja ela para o bem ou para o mal – na verdade, uma comunidade que faz jus ao termo rema sempre para o bem, o que a torna ainda mais maléfica e perniciosa. Desconfio de toda aglomeração de gente que luta por causas “justas”, encampando o discurso de que o homem pode se tornar um ser melhor e escapar da sua sina original de bárbaro-assassino. Todos mentem. Um grupo, por melhor que seja seus atributos, começará a mentir tão logo se sinta ameaçado – e os dois únicos papéis desse enorme teatro são precisamente esses: o do bandido e o da vítima. Um grupo sempre assume o papel da vítima, são canalhas disfarçados. O verdadeiro bandido age sozinho, se tem capangas é para mais tarde os trair. O bandido é o canalha de carteirinha, o canalha verídico, sem medo de ser canalha. Não me chame para nenhuma passeata na Paulista, não vou, acorrento minhas pernas na geladeira e quero ver quem é que me arranca de lá. Nem que a mãe esteja na forca - prefiro eu mesmo colocar um capuz de ninja e com minhas próprias mãos cortar a corda do crime -, saio de casa pra gritar com um bando de gente na rua: “ÃE, ÃE, ÃE, LIBERDADE PARA MINHA MÃE!”.  Mudamos pouquíssimo, ou quase nada, desde os tempos das cavernas – talvez a rede de fast-food nos tenha dado maior facilidade para abocanhar o javali que antes marretávamos com nossas claves de madeira, mas termina por aí. O que corre nas nossas veias é a mesma sede primitiva de vingança, crime, sexo e poder, com a única diferença que agora nos vestimos bem, escrevemos bem e até nos escondemos atrás de computadores para divulgarmos pensamentos lógicos e bem comportados que visam sempre e acima de tudo o bem alheio. Mentira e mentira das grossas. Nunca fomos tão cínicos, os cínicos da autoestima, os cínicos do politicamente-correto. Confesso que pulo de satisfação quando vejo os escândalos de corrupção sendo deflagrados nos noticiários – esses bandidos dignificam nossa natureza, assinam embaixo do nosso contrato e, no fundo, despertam em nós uma admiração homérica, cada um de nós desejando estar no lugar desses facínoras que ousaram mandar uma banana para essa hipocrisia do cidadão-de-bem. Sou um Robson Crusoé perdido no caos das comunidades urbanas, crente de que o homem só pode se salvar na sua solidão de bandido. Prefiro ser sincero comigo e assumir minha canalhice do que me esconder no anonimato da comunidade, exigindo uma pureza que, infelizmente (ou felizmente) ninguém dessa nossa raça possui.

sexta-feira, 27 de abril de 2012



O que é admirável na anta é a sua sinceridade. As antas são sempre sinceras, diria mais, translúcidas, de uma pureza espectral de fazer inveja ao mais fino cristal. As antas nunca dissimulam - não teriam talento algum para serem atrizes! -, antas não são capazes de vestir o bigode de vilão ou saltitar como mocinhas ingênuas pelas pradarias campestres. Não! Antas são antas e continuam antas no mais alto grau de dignidade antal! Ponto final. Tive a oportunidade de conhecer uma genuína anta, era uma anta da espécie anta-secretária que tem por hábito viver na aba do chefe, ele espirrava, lá estava a anta com um pacotinho de lenços perfumados. Um dia, escrevi num bloquinho a palavra 'contemplados', em referência a uma dúzia de ouvintes - eu trabalhava numa emissora de rádio na época -, que haviam sido sorteados com um par de ingressos para um tal concerto na Sala SP. Foi a anta bater o olho na palavra do tal bloquinho para brilhar os olhos e sair trotando feliz pela redação: 'contemplados!', 'contemplados!' 'contemplados!'. Pois é... a anta acabara de conhecer uma palavra de composição ultra-complexa e não economizava circunstâncias para empregar a nova aquisição do seu vasto dicionário mental: 'Por obséquio, o senhor gostaria de ser contemplado com um cafezinho?', 'Perdão, mas a faxineira já contemplou o lavabo com um par de rolos de papel higiênico?'... e por aí vai. Nesse dia, lembro-me de todos os funcionários estáticos, todos plateia daquele espetáculo deslumbrante de sinceridade protagonizado por uma legítima anta, anta que era incapaz de maquiar sua burrice colossal!




O ator mente, o ator é cínico, um canastrão de filme de faroeste, veste bigode de vilão e faz careta de inocente arrependido, contamina os outros e a si próprio com sua canastrice homérica, rola de rir com seu despudor desmedido a ponto de mandar uma banana para a realidade, o ator inventa em escalas exageradas, ultrapassa o limite do bom senso e do verdadeiro para inaugurar seu universo de princípios metafísicos, o ator é um alquimista de cinema-mudo, explode o laboratório e faz criar novos elementos. O ator é um inventor, um explorador que não se contenta com solos já habitados, o ator cria, inaugura, não tem e não deve ter qualquer responsabilidade com o verossímil... o ator é inverossímil, impossível e improvável, tudo isso por principio, desejo, necessidade e urgência!