quarta-feira, 30 de julho de 2014

Fábulas: # O sucesso merecido do ator-sensação-do-momento...


A quem se prestar ao movimento de estender o dedo indicador para acionar o controle remoto e ligar o aparelho de televisão nas coordenadas digitais da emissora oficial, lá verá, em olhos arregalados e claros, o ator-sensação do momento sendo sabatinado por colegas dos mais diversos ramos do entretenimento e sobre temas do mais variado escopo das importâncias contemporâneas, desde um escrutínio detalhado da sua vida íntima, sexual e profissional, assunto que inexplicavelmente pairava até então desconhecido por parte do público pensante, até, e aquilo que mais nos interessa saber, como é que ele, o ator-sensação do momento, consegue arregalar aqueles olhos redondos e claros de um jeito tão cativante que muitos de nós, aposto, não conseguiria sequer simular, ainda que treinássemos à frente do espelho por horas a fio. E assim sucessivamente e ao longo do dia: pela manhã, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação, então, aparecerá tomando café com a apresentadora para efemérides matinais que, dona de um topete de proporções tibetanas, conversa diariamente com um papagaio feito de espuma verde e acionado por braços, mãos e dedos, esses últimos, ao contrário do exemplo do controle remoto, invisíveis, e sempre de olhos arregalados, os do ator e também os do papagaio, ainda que este último os tenha como duas bolotas de acrílico coladas com cola quente diretamente na espuma verde. Já no período vespertino, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá dançando e cantando no palco do programa de variedades do mundo artístico e cujo apresentador é tão extrovertido, simpático e adulador, que até mesmo os olhos já arregalados e claros do ator-sensação do momento arregalam-se um tiquinho a mais, ainda que disséssemos a nós mesmos ser impossível aqueles olhos belíssimos, claros e arregalados, arregalarem-se um tiquinho a mais, e tudo como conseqüência dos elogios, preces e bênçãos que o apresentador vespertino em seu talento adulador e simpático conseguiu despertar. Enfim, pensando em acionar o controle remoto a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial no período noturno, o ator-sensação do momento, então, aparecerá na bancada do programa de jornalismo descrevendo de forma absolutamente imparcial os mecanismos técnicos e operacionais que se utiliza para proceder a esse arregalar de olhos belíssimos, verdes e amendoados, que o levou a esse posto-sensação de vir a ser, hoje e agora, o ator sensação do momento. Enfim, logo após o jornalístico e finalmente e definitivamente, caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá na posse absoluta do seu desempenho dramático quando encantará a todos nós, aposto, ao arregalar os seus belíssimos, verdes-claros-amendoados, olhos já naturalmente arregalados durante as cenas dramáticas da novela em que desponta como o ator-sensação do momento. E como bis que não poderia faltar, caso esteja insone pela madrugada adentro e caso o controle remoto seja acionado a partir do movimento descrito acima e nas coordenadas digitais da emissora oficial, o ator-sensação do momento, então, aparecerá no programa de auditório daquele velho apresentador que se faz de jovem para animar as plateias jovens com temas caros à juventude para explicar, definitivamente e finalmente, que conseguiu o posto de ator-sensação-do-momento justamente ao arregalar os olhos no teste para o papel da novela quando, naquele exato instante, as duas produtoras de elenco trocaram um olhar nada arregalado entre si e cochicharam uma no ouvido da outra em uma mistura de êxtase e tesão contidos: olha só que beleza como ele arregala os olhos!


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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Fábulas: # O Arremedo de Democracia...



Convencido de que era perseguido ou perseguido o era, tanto faz - nas duas formas gramaticais a única evidência clara e inequívoca é a que se verifica por fontes seguras: a de que caía sobre si o manto opressor da perseguição -, acordou e bateu os olhos nos jornais e enfim, eureca!, a prova que faltava - não para ele que se convencia perseguido há tempos imemoriais mas para todo e qualquer alienado que teimava em duvidar das armadilhas nefandas do poder repressor travestido de democracia -, as notícias, enfim, estampavam ali para corroborar em letras angulares e típicas dos manipuladores da opinião pública a mais pura e grosseira falácia forjada para que causasse uma falsa impressão de imparcialidade para que ele, perseguido que era ou o sendo perseguido, tanto faz, fosse acusado de crime contra o governo, esse sim o agente perseguidor daqueles que pelo simples ato de acordar um dia veem-se condenados à perseguição implacável. Convencido de que estava ou estando convencido desde então, tanto faz, de que era preciso fugir, fugiu, escapulindo pela janela e evocando os poucos aliados em quem podia confiar para que se aglutinassem como formigas operárias em greve e notassem o quão perseguido era ou perseguido estava sendo, tanto faz, para que, mediante a apresentação de provas cabais e irresolutas de sua condição de ovelha frágil sob os olhares vorazes do lobo faminto pudesse, enfim, atrair a opinião dos poucos elementos confiáveis da imprensa que estivessem dispostos finalmente a transparecer a única verdade límpida e cristalina que ali naquele instante se fazia luzir: a de que ele sendo perseguido ou alvo de perseguição, tanto faz, era a vítima evidente do circo que lhe era armado por órgãos herdeiros do holocausto, e que, vírgula, se coubesse a ele o papel de mártir denunciador do quão falaz e agourento é essa instituição chamada governo, berço de águias de rapina sedentas por pingar sua baba de predador por sobre a moela do cocuruto dos cidadãos comuns e inocentes – alvo preferido dos perseguidores -, então, enfim, por que não? – seria ele sim, liberte-igualitê-fraternitê, o soldado do front a sacrificar-se como um cordeiro no altar para que o rebanho que viesse em tempos vindouros pudesse usufruir daquilo que ele, infelizmente, hoje fora privado e, por isso, condenado a sumir: o direito, enfim, de não ser perseguido ou vir a ser alvo de perseguição, tanto faz.


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sábado, 26 de julho de 2014

Fábulas: # A pomba que se sabia pomba...


Certa vez uma pomba que tinha por hábito revoar o mesmo mastro que servia de suporte para a bandeira flamejar suas odes nacionalistas ao horizonte resolveu, por quebra de rotina, pousar lá em cima, aterrissando suas finas perninhas de pomba na pequena bolota escorregadia pintada a ouro que fazia as vezes de limite do obelisco, e, enquanto que os debaixo seguiam a vida no seu costumeiro e tedioso galopar sem motivo algum para suspeitar do que viria a seguir, ela, a tal pomba, acometida por uma indisposição qualquer, eriçou as penas, estufou o peito, abriu o bico e soltou a goela em firme e retumbante voz: EU SOU UMA POMBA! Todos que caminhavam pela praça central, vizinhos ao mastro da bandeira flamejante e agora poleiro da pomba falante, interromperam sua marcha e olharam para cima num misto curioso de sensações que combinava primeiro um assombro por ouvir pela primeira vez um testemunho tão consciente vindo de uma pomba, em seguida sobreveio o entusiasmo pela pomba ter rompido a tradição muda de suas companheiras de infortúnio, acompanhado por certa dose de inveja, afinal, antes fossem eles, enfincados que eram na proporção bamba de duas pernas, a ter asas, para, lá de cima, gritar alguma coisa que fizesse eco tal como a corajosa pomba conseguira realizar, e, por fim, uma avassaladora melancolia se abateu por todos os da praça, piedosos pela tal pomba finalmente saber que era uma pomba e, enfim, ter de lidar com esse fardo de consciência absoluta até o fim de seus dias... agora dias, como bem sabia, de pomba...



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Há quem escreva para ser lido
Eu escrevo para escrever

Há quem seja ator para ser querido
Eu o sou porque é preciso ser

Há quem busque plateias
Eu que tantos sou em um -
Ou não sendo nenhum porque não sei quem sou -,
Já basto

Há quem veja no destino um sentido
Eu caminho

A ideia de chegar
Me cansa

Antes caminhar
Sem esperança



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sexta-feira, 25 de julho de 2014

Fábulas: # Culpado!



Entrou esbaforido meio desajeitado meio desmilinguido com a língua de fora implorando por algo que a enrolasse para dentro novamente ao prometer que o medo que fazia os cabelos agora empinar era passado e antes que aquele que sentado e escondido por trás do jornal do dia só denunciado pelo filete de fumacinha que subia do seu cachimbo de madeira de carvalho antigo pudesse esboçar qualquer mínima reação à figura daquele que acabara de entrar, disse:

-        O leão (pausa) fugiu (pausa) do circo...


Lentamente fechou o jornal numa coreografia quase farsesca de ambas as mãos e com o cachimbo a periclitar por entre os finos lábios entreabertos voltou-se ao esbaforido recém chegado balbuciando na posse absoluta da calma de sua cavernosa voz:

-       Algum ferido?

Não ainda. Como não ainda? O leão fugira do circo mas nenhum ataque fora ainda registrado. Mas como ainda não fora registrado nenhum ataque? Simplesmente fugiu, só isso. Ainda...

Mas já era tarde demais. Aquele ‘ainda‘ era definitivo. Denunciava que o denunciante da fuga o leão tinha culpa no cartório uma vez que esperava que o leão atacasse e em ele atacando suas expectativas seriam cumpridas e tudo isso sem nada revelar das suas íntimas e maléficas intenções senão pela ligeireza da pronúncia de uma simples e aparentemente inofensiva palavra:

-      Ainda.

Levantou-se da poltrona. Foi até o telefone. Chamou a polícia.

O outro, estático, já menos esbaforido mas não menos assustado, ouviu:

-       Delegado? Quero denunciar um sujeito maluco que acaba de entrar na minha casa. É ele o responsável direto pela fuga do leão do circo.



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quinta-feira, 24 de julho de 2014

Fábulas: # O cinema (primo rico) e o teatro (primo pobre)


Bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade jazia uma fachada de luzes cintilantes a se escorar poucos metros adentro da calçada. Era um cinema. E acabara de ser reaberto. Multidões em romaria testavam penitências várias esperando a vez de entrar para ver um filminho clássico, um possível reencontro com Marlon Brando em plena e vigorosa forma, e depois de tanto tempo de breu misturado ao silêncio das telas. Sim, porque essa era uma praxe recorrente do tal cinema: a de tempos em tempos entrar em crise para morrer, baixando as portas para nunca mais. Mas nunca mais é sempre muito tempo, então lá vinha uma nova procissão de fiéis devedores à sétima arte fazer pressão para que as dívidas fossem saldadas e o tal cinema voltasse a respirar com sua fachada de luzes cintilantes bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade. E assim se dava, e o cinema reabria. E Marlon Brando, Bette Davis, Kubrick e outros tantos voltavam também. Mas só para sumir de novo lá na frente em um quando que ninguém sabia. A data original da inauguração do cinema era matéria de mistério absoluto, só se tinha em conta que era lá pelos anos distantes embalados pela certeza de que os que hoje vivem ainda não viviam. Não tão distante dali, recostado em outra fachada, dessa vez de categoria suspeita por não haver sequer uma única luz faiscante a convidar o interesse do mais atento dos transeuntes, o ator Norberto Quadros fumava um cigarro antes do início do espetáculo. O teatro era coisa ainda mais antiga que o vizinho cinema, e se nunca havia imitado a via crúcis de exéquias fúnebres do companheiro ao lado para depois e em seguida ressuscitar glorioso aos olhos do público, era porque morria todo santo dia, sem direito a festas ou lamentações de qualquer ordem. Morria e pronto. Sem direito também a Marlon Brando, Bette Davis ou quem quer que seja. Junto com o teatro morriam os atores, espectadores, e todo o contingente de dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, sonoplastas, maquiadores e iluminadores. Talvez seja por isso que o teatro mereça sempre um pouco menos de atenção, porque as suas mortes não são estratégia de propaganda, e sim destino constante... e mais do que obrigatório.

 Bem lá, perto do entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade, e quase ao lado da fachada de luzes cintilantes, jazia quieto um teatro, que morrendo todo dia, não morria nunca.

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quarta-feira, 23 de julho de 2014

Fábulas: # O emprego do século: Produtores de Casting...


Bom dia, como representante dos Estúdios Filming & Filmes e ocupando o cargo de produtor da novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes requisito à minha rede de contatos alguém que por ventura possa indicar-me um anão cego para interpretar a personagem curiosamente de requisitos semelhantes à pessoa que procuramos, ou seja, a de um personagem anão... e cego; caso o anão – é imprescindível que seja um anão! – não seja exatamente um anão cego, mas caolho, ainda assim requisito à minha rede de contatos alguém que por ventura possa conhecer tal candidato à novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes que entre em contato comigo, representante que sou dos Estúdios Filming & Filmes no cargo que ocupo como produtor da novíssima produção, já que, informa-nos o diretor geral da novíssima produção, um anão caolho com algum talento acumulado e mediante a um rígido trabalho de preparação dramática sob a tutela do nosso exclusivo coach especializado em fomentar a verdade cênica, poderia, não sem algum sacrifício, preencher os requisitos originais pedidos, ou seja, forjar tão convincentemente uma cegueira inexistente, haja vista que trabalhamos agora com a hipótese de o anão em questão não ser exatamente um anão completamente cego, mas caolho, a ponto de convencer os espectadores - e, sobretudo, o cliente! - de que, de fato, ele, o anão, é cego, ainda que de mentirinha. Por outro lado, caso algum de vocês, formadores da minha rede de contatos, venha por ventura a conhecer um anão que não seja nem completamente cego e tampouco caolho mas dotado de um olho de vidro, peço que não repassem-me tal contado, haja vista que um anão portador de olho de vidro, informa-nos o diretor geral da novíssima produção e assessorado pelo coach, foge completamente do perfil buscado pela novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes onde ocupo o cargo de produtor da novíssima produção; e ainda que o olho de vidro seja o olho esquerdo – reparem que o que procuramos é efetivamente um anão, e fugir desse perfil está completamente fora de cogitação – não altera em nada as condições já expostas, a de que anões portadores de olhos de vidro não preenchem os requisitos mínimos para fazer parte da novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes no papel de anão completamente cego (ainda que, novamente, os caolho-anões possam surpreender, e mesmo não sendo cegos, preencher os requisitos). Inútil reforçar que caso o olho de vidro do suposto anão cego seja o olho direito pouco ou nada altera o combinado, mas, enfim, é bom deixar claro ainda assim: caso algum de vocês, formadores da minha rede de contatos, venha por ventura a conhecer um anão que não seja nem completamente cego e tampouco caolho mas dotado de um olho de vidro, o da direita o da esquerda ou ainda ambos, peço que não me repassem tal contado, haja vista que nem mesmo nosso coach, embora tarimbado nos mais exclusivos workshops da fé cênica aplicada à emoção, daria conta de preparar tal candidato para representar um anão cego na novíssima produção dos Estúdios Filming & Filmes onde ocupo o cargo de produtor da novíssima produção.


Grato e muito obrigado.

Conto com o apoio dos meus amigos, sejam eles anões ou não.


Obs: Aliás, algum de vocês, amigos, por ventura e azar do destino, é anão?


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