quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Fábulas: # Quando os comediantes se suicidam...


O primeiro comediante tratou de ser tradicional e apareceu com o pescoço esganado por uma gravata dentro do armário de roupas, exatamente entre o suéter de lã e a jaqueta de couro. O segundo comediante, dali a alguns dias, tivera o ímpeto bravio dos machões que não medem conversas por meias palavras, estourando os miolos com um tiro seco e sem perdão. O terceiro comediante, aquele que se amarrou à linha do trem, pertencia ao rol dos dramáticos e tentou deixar um bilhete explicando suas medidas desesperadas, mas sem sucesso - a letra tremelicante do condenado na iminência de selar o destino sem volta impediu que houvesse um epílogo formalmente compreendido -, o que o obrigou a entrar para a eternidade assim mesmo: atropelado como tantos outros, sem a alcunha de um monólogo emblemático, na fila dos anônimos, e tampouco merecedor de direitos autorais. Somente quando o quarto comediante desiludido fora flagrado submerso na hidromassagem, já azul e de olhos esbugalhados, foi somente aí, pressionado pela sociedade, que o governo resolveu tomar alguma providência. Uma comissão de especialistas articulou-se para entender o fenômeno até então desconhecido, chegando à conclusão, depois de análise minuciosa do inquérito, que a cada vez que uma piada sem graça era detectada em um lado da cidade, do outro, e imediatamente, um comediante tirava a própria vida. Estava armada a encruzilhada jurídica: sancionar uma lei abolindo o direito dos incapazes de tentar fazer o povo rir, e por isso assassinos indiretos dos capacitados para tal, ou, mantendo as coisas no patamar em que estão, preservar a liberdade de expressão, arcando com a estupidificação geral, já incluindo aí as futuras e novas baixas – não tantas, porque já se faz notar a escassez de indivíduos assaz inteligentes...?


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Fábulas: # A assembléia dos pavões...


Na pequena sociedade rural coube aos pavões letrados a tarefa de representar os demais bichos nas questões referentes ao bem estar social. Uma assembléia de pavões era armada uma vez ao mês para que cada pavão pudesse, cada um em seu tempo, diagnosticar e prever soluções para os entraves éticos e morais da granja. Porém, como é do feitio de todo pavão, em especial dos pavões letrados, mal começavam a falar e já esbanjavam beleza própria ao ostentar suas penas ao vizinho. E como cada vizinho também era um pavão ostentador, e também letrado, ao invés de nutrir inveja pelo espetáculo do concorrente, ao contrário, respondia a ele com outra abertura fulminante, agora do seu próprio leque colorido. Ao cabo de todas as apresentações preliminares, enfim, a assembléia podia ter início, e assim tocar, finalmente, no cerne das angústias referentes ao andamento da granja. Porém, afogados que estavam em seus chumaços enfeitados e nunca recolhidos, já que é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, nunca arrefecer em seus princípios paradigmáticos, ninguém mais se via, cada um refém das plumas alheias, que ao roçarem narinas imprevistas, produziam uma sinfonia esquisita de espirros e interjeições várias. E assim, impossibilitados de resolver qualquer coisa, os pavões letrados, como é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, remarcavam um novo encontro, para dessa vez, e finalmente, tentar resolver alguma coisa concernente aos entraves éticos e morais da granja... Longe um do outro, como é do feitio dos pavões, em especial dos pavões letrados, cada qual recolhia sua cauda espetaculosa, voltando a ser, individualmente e solitários, pouco mais que uma ave semelhante às galinhas D'Angola...

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Fábulas: # A mula que foi vender os miolos pensantes na feira municipal...


Uma anta que atravessou o caminho de uma mula apressada perguntou a ela onde ia com tanta urgência, obtendo como resposta da mula que ela ia para a feira municipal botar à venda os próprios miolos pensantes, mas como, perguntou a anta curiosa, tendo-os tão reduzidos como eu tenho os meus cá comigo, o melhor não seria preservá-los para que assim, confinados, possam preservar um tanto de valor? Nisso a mula retrucou de imediato dizendo que de jeito nenhum, antes ter patas ativas e músculos torneados do que assemelhar-se à coruja, que do alto do galho vê tudo, sabe de tudo, compreende tudo, mas pouco ou quase nada age, valendo pouco ou quase nada o movimento invisível que guarda para si. Mas a coruja não é uma filósofa respeitadíssima, replicou a anta, é sim, rebateu a mula; e também não é a coruja uma reconhecida professora de pupilos que almejam um lugar nas academias, mais uma vez inquiriu a anta, sem dúvida que sim, disse a mula; e também a coruja não escreve lindíssimos artigos nos jornais da cidade versando sobre os mais variados temas da atualidade, insistiu a anta, e como não, arrematou a mula; e por acaso todas essas habilidades não tornam a inteligência da coruja visível aos olhos dos outros, errado, não é a coruja, tampouco a inteligência dela, mas a imagem forjada de si própria que se arvora aos olhos dos outros, já reparou que não é senão para isso que ela vive, para fazer plateias ao redor das asas? Disse isso a mula e já se foi galopando, sumindo das vistas da anta...

Há uma sabedoria especial em suar os músculos, essa sim uma sabedoria nada abstrata e deveras palpável, e se opta por não produzir ecos, é justamente porque as plateias não lhe são necessárias. 


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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Fábulas: # a capciosa arte de se fazer banquinhos de madeira...


Houve um tempo em que fazer banquinhos de madeira consistia em cortar a madeira na medida exata para que, havendo partes distintas de madeira, e uma vez encaixáveis e encaixadas, pudessem, enfim, e com algum esforço, dar forma a um banquinho de madeira. Mas chegou a teoria, e com ela toda uma digressão filosófica sobre o sentido e razão última embutidos no árduo ofício de se fazer banquinhos de madeira. E com a teoria vieram também os teóricos, todos eles compelidos, e preparadíssimos para tal, em convencer-nos de que fazer um banquinho de madeira exigia tais e quais requisitos mínimos, e, uma vez os tendo, fazia-se necessário, antes de fazer o banquinho de madeira, compreender as implicações éticas e morais incrustadas nessa tomada de decisão nada ingênua, e portanto longe de imparcial, que é optar por arregaçar as mãos, apanhar as madeiras, cortá-las em partes encaixáveis, e, encaixando-as, dar forma, finalmente, a essa coisa a que habituamos nomear como banquinho de madeira. Mas para cobrir esse tempo ocioso entre decidir fazer o banquinho de madeira e, de fato, fazê-lo, foi-se necessário o surgimento dos professores, essa espécie abastada que no passado polvilhou o mundo com uma infinidade de banquinhos de madeira, mas que, agora, cônscia da sua cristã tarefa de engolir o peixe para ensinar aos outros o como pescar, empresta-se ao abençoado martírio de esfregar o focinho do pupilo na madeira até que este se convença da necessidade de cortá-la em partes encaixáveis, e, uma vez encaixadas, e com um retumbante esforço, possa, finalmente, fazer um bendito dum banquinho de madeira, ainda que capenga e manco em uma das pernas na primeira tentativa, e feioso e sem charme nas demais. Assim, então, e graças a Deus, as escolas superiores de fazedores de banquinho de madeira foram abertas, todas elas concorridíssimas, formando um precioso elo de interessados em galgar a difícil porém gratificante arte que é a de fazer banquinhos de madeira, e que hoje anda tão relegada, infelizmente, ao segundo plano das urgências terrenas e metafísicas.


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Fábulas: # O tal do senhor Américo que enxergava tudo ao pé da letra...


Era uma vez um tal de senhor Américo que levava tudo ao pé da letra. E tanto passou os seus dias a cheirar o calcanhar das sílabas, lixando as unhas sobressalentes das palavras, assoprando a poeira para que as frases pudessem passar e com isso poder ele, o tal do senhor Américo, olhar em minúcia acurada os parágrafos de baixo para cima exatamente como quem ajoelha-se e pede ao firmamento alguma luz que só cega e nunca abençoa, que, em virtude do nariz sempre prostrado, uma corcunda veio a se instalar bem no cume espinhoso do seu lombo há muito acostumado no dobrar-se, mas, como nunca o via, o cume espinhoso do lombo curvado, e, por conseguinte, a corcunda alojada no lombo curvado e espinhoso, a ela, a corcunda, não rendia homenagens ou reverências. Continuou a viver assim o tal do senhor Américo, mas só até o dia em que a corcunda exigiu a devida atenção que toda corcunda, hora ou outra, há de merecer ter, mas aí já era tarde demais para que o tal do senhor Américo pudesse analisa-la com seus olhinhos apertados e perspicazes. Morreu dando uma cambalhota, fruto do peso acumulado de suas certezas.



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Fábulas: # As feras palitam os dentes...



Não há aqueles ratos alvos e de olhos esbugalhados e vermelhos que são criados especialmente para servirem de iscas vivas às cobras famintas dos institutos de soro antiofídico? Pois então, como recriminar a prática instaurada naquele zoológico do interior que passou a servir crianças serelepes e barulhentas para saciarem os apetites das feras enjauladas? Os pais levavam os próprios rebentos para o parque, instigavam os pimpolhos a pularem a cerca que separava a raça evoluída dos quadrupedes de mandíbulas afiadas, e, uma vez lá dentro, a meninada dava início a um cerimonial de aporrinhação gradual que compreendia desde a execução de danças provocativas, passando a um repertório de línguas a mostra e gestos insinuantes de que os bichos selvagens não eram de nada lá-lá-lá-lá-lá, até chegar ao clímax hediondo de bruxulear com uma pena de ganso atada aos dedos a parte inferior do focinho úmido dos animas cativos. Ainda que nada famintos, talvez por haverem degustado uma turma de quinta série já naquela manhã, e também diferentes de nós que a tudo contemporizamos sob pretexto de manter a dignidade de uma civilização erigida por séculos de labuta intelectual a título de reprimir a selvageria, as feras, feridas na sem paciência, avançavam no agente perturbador para num só golpe acabar com o barato, diferente das cobras, que por uma razão só delas, insistiam em demorar a engolir o rato preso entre as presas peçonhentas. Aos pais que a tudo assistiam, primeiramente esfuziantes e depois afogados em lágrimas, era oferecido um apoio psicológico através de um pacote de sessões de terapia regulares, além de um pequeno diploma que os agradecia pela preciosa ajuda dada em nome da perpetuação das espécies ameaçadas de extinção, e, por isso mesmo, tratadas com tanto esmero por aqueles que decidiram as preservar atrás de grades especialmente construídas.


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sábado, 2 de agosto de 2014

Fábulas: # O bigodão do sr. Dutra


O sr. Dutra acordou com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade. Forçou a memória na tentativa de lembrar se na véspera não havia barbeado a face, mas logo atinou que ainda que o tivesse esquecido, o bigodão agora visto era coisa de semanas, meses, quiçá décadas de semeadura sem poda. Talvez uma piada? Avançou com os dedos para arrancar o bigodão concluindo com um sorriso que algum matreiro fora o autor da travessura, colando o dito cujo cabeludo enquanto dormia. Era verdadeiro. O bigodão lhe pertencia, como também lhe pertencia cada parte do corpo. Desceu as escadas até a cozinha na esperança de que a esposa pudesse encontrar alguma explicação para o curioso fato, e foi quando percebeu que ela própria, Lucrécia, ostentava um bigodão exatamente igual ao seu, toda ela compelida em despejar o café na xícara sem prestar qualquer resistência àquilo que a ele parecia absurdo e sem razão. Atônito, o sr. Dutra sentou-se e esboçou um início de assunto que sugerisse o assombro de encontrar a si próprio e a mulher portando um bigodão peludo feito taturana debaixo do nariz, e foi quando percebeu que a filhinha, Anabela, do outro lado da mesa e até então silenciosa, mirava o pai numa composição de olhos arregalados, bochechinhas roseadas, e... um bigodão bem debaixo do seu narizinho de menina levada. O sr. Dutra, meio tonto meio descrente, saiu para a rua. Cada um que lhe atravessasse o caminho levava junto outro bigodão debaixo do nariz. Fosse uma velha, um executivo, um mendigo ou quem quer que seja, todos, sem exceção, estampavam a mesma marca peluda e indelével pregada ao rosto anônimo. Após um dia de trabalho extenunate, e sempre misturando o seu bigode aos bigodes alheios, o sr. Dutra voltou para casa. A visão da família feliz, brincando enquanto o pai não chegava, amenizou aquela sensação hamletiana de que o mundo está fora dos eixos, e ainda que o bigodão lhe causasse certo incômodo na hora de sorver a sopa, uma certa consciência prática o salvou de entrar em crise completa, ajeitando os lábios para uma melhor embocadura sem mais creditar ao bigodão o motivo central de sua angústia; afinal, qual é o problema de um dia acordar com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade? Chegou mesmo a se divertir com a filhinha Anabela cofiando seus bigodões no instante em que esperava ansiosa pela mãe, outra portadora do suntuoso bigodão, lhe servir uma colherada de doce de abóbora para a sobremesa. E agora, com as horas já avançadas, vemos Lucrécia, esposa do sr. Dutra, que antes de dormir inclui mais uma ação ao seu já demorado ritual de cuidados estéticos noturnos, a saber, um meticuloso desembaraçar de fios negros e grossos, não sem antes ter besuntado de creme hidratante aquela massa polpuda feito taturana, coisa herdada sabe-se lá de quem, e que tampouco importa saber. O sr. Dutra, há tempos entregue ao sono, ronca em plenos pulmões. Parece feliz.


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