Será que o absurdo é haver absurdo
Ou sou eu
Que incapaz de suportar o doce murmúrio das folhas nas árvores
Invento barulho
E torno-me surdo?
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sábado, 7 de junho de 2014
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Tragédias inesperadas: # O fim precoce do tragediógrado Sófilus Antónius.
Sobre a morte precoce do promissor tragediógrafo Sófilus Antónius
muito se conjecturou; alguns metidos a filósofos diziam que a alma de Sófilus
Antónius não era afeita a grandes emoções e por isso traindo o próprio dono ao
surrupiar-lhe a flor da existência antes mesmo dos beija-flores sorverem seu
necessário néctar bastante raro nesse mundo atual de zangões da arte; outros
associavam a uma grave constipação intestinal seguida por uma irreversível
hemorragia do trato excretor a moléstia que levou Sófilus Antónius a evacuar
cedo demais para o anonimato privilegiado dos defuntos; enfim, tanto fazendo
uma quanto outra hipótese – deixando a nós a imaginação de considerar outras
tantas – o fato mesmo é que o tragediógrafo Sófilus Antónius morreu antes
disso, e foi mesmo de desgosto profundo, isso porque logo na sua peça de estréia,
cujo destino quis que fosse também a última, Sófilus Antónius capturou um único
embora grave erro do protagonista que ao invés de urrar o típico ‘Ai de mim’
das personagens já a beira do abismo fatal incluiu um ‘s’ inexistente, talvez
por uma sibilação involuntária em razão do cansaço bastante compreensível de
quem já por tantas horas carregava nas costas o piano das dores metafísicas, soltando
um curioso ‘Sai de mim!’ e dando a entender, embora o texto de Sófilus Antónius,
jamais quisesse dizer isso, que houvesse um encosto a grudar na alma da
personagem sendo justamente ele (ou ela), esse tal encosto invisível, o responsável
por todas as agruras que originalmente encosto nenhum, senão o destino, era
responsável por causar. Imediatamente, ao ouvir a evocação demoníaca do pobre
protagonista, Sófilus Antónius, devidamente postado em seu camarote no teatro,
soltou uma tremenda gargalhada interrompendo imediatamente o espetáculo até o
instante em que o autor da interferência fosse retirado a força da sala para a
continuidade da encenação, terminando ela sem maiores intercorrências e
tampouco sem a percepção do público para aquilo que só o tragediógrafo Sófilus
Antónius pôde notar, a tal da sibilação criminosa que fizera toda sua peça
naufragar, pelo menos para ele, num único estalo de dedos. Nunca mais conseguiu
escrever texto dramático algum, e nas vezes em que ia ao teatro para procurar
inspiração em peças de autores diversos inevitavelmente rompia em risadas
extravagantes em momentos nada risíveis, lembrando do evento fatídico responsável
por arruinar toda uma primavera promissora.
Obs: o ator autor do sibilo involuntário continua sua profícua
carreira nos palcos.
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quarta-feira, 4 de junho de 2014
Destinos recusados por aventuras frustrantes: # A personagem voluntariosa.
Triste esse episódio em que uma personagem qualquer de um conto de gramática realista (e por demais descritiva) resolveu renunciar ao excesso de detalhes e minúcias sem importância para, uma vez longe das páginas, aportar no palco dramático imaginando lá colher alguma liberdade que lhe faltava pelas andanças dos mudos parágrafos. Arrependeu-se como arrepende-se quem não consegue reconhecer as benesses da própria morada indo despejar no vizinho a solução das frustrações que dependem menos da grama do quintal estrangeiro do que do cuidado com as ervas daninhas alimentadas no próprio coração. Tendo de repetir-se diariamente e ao menos durante quatro vezes por semana, e ainda refém de um ator nada talentoso que fazia questão de inventar sentido onde não havia, condenado ficou ao exercício infinito de convencer a plateia de que ele não era aquele que lhe pintavam ser, mas outro muito mais digno, exatamente como o era na literatura, tarde percebia ele, ainda que pequeno e cercado por fronteiras bastante sufocadoras.
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Premiações exemplares: # A cerimônia de entrega do troféu ao ator virtuose Alaor Coimbra.
Logo após derramar lágrimas em seu discurso de agradecimento
pela conquista do cobiçado troféu dos melhores do ano, o ator virtuose Alaor
Coimbra fora conduzido ainda emocionado ao patíbulo que ficava a poucos passos
do palco principal e, sem maiores cerimônias, enforcado aos olhos da numerosa
plateia. Os aplausos e assobios ressoaram ainda mais estridentes. A vaidade
escondida sob o falso véu da competência, segundo a lei da pequena cidade de
Monte-Sábios, era crime capital punido com o exemplo da invisibilidade eterna.
O troféu agora sem dono novamente pendia no púlpido dos agraciados e a espera
do ano seguinte quando um novo eleito receberia a graça do mesmo prêmio que por
rápidos instantes pertencera ao ator virtuose, hoje finado por méritos inegáveis,
Alaor Coimbra.
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terça-feira, 3 de junho de 2014
Práticas altruístas de egoísmos elementares: # O ator de plateias vazias.
Quando Archimedes da Ribalta morreu ninguém o tinha visto,
não naquilo que concerne a sua pessoa física, isso não! – Archimedes da Ribalta
era um homem simples de hábitos regulares e quem o quisesse acompanhar em seu
escrutínio diário e meticuloso que se colocasse como espectador na rua em que o
velho ator morava, todos os dias palco anônimo de suas idas e vindas, ainda que
sem aquele recurso dramático das cortinas caindo ao final sob o ressoar dos aplausos.
O que se sabe era que Archimedes da Ribalta era um excelente ator, mas isso só
ele sabia, mantendo em recluso segredo as suas habilidades histriônicas ao
recusar peremptoriamente receber plateia em seu pequeno teatro, tampouco
admitindo dividir o palco com companheiros de labuta. Só a ele e somente a ele,
Archimedes da Ribalta, era permitido habitar em seu recanto de imaginação
teatral. Em dias de espetáculo, as ruas adjacentes ao pequeno edifício de
esquina permaneciam lotadas de curiosos, todos do lado de fora como formigas
diminutas tremendo ao frio, esperando o momento exato em que as luzes se apagariam
para ver sair de seu interior aquele homem já prostrado em anos e todo enrolado
em seu cachecol, compelido a seguir em silêncio até sua casa. O cortejo o
acompanhava, imaginando qual tragédia acabara de interpretar. Quando finalmente
morreu, uma lápide em mármore raro foi erigida em sua homenagem, superfície
cujas linhas inscritas assim proclamavam em mudo lamento:
‘Aqui jaz Archimedes da Ribalta, tão bom ator que conseguiu
preservar o mistério de seu talento até o infinito das sombras poéticas. O que
importa que nunca o tenhamos visto?’
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Situações de crise: # O personagem em greve não anunciada.
Soube-se por fontes escusas que um determinado personagem de
uma tragédia encenada nalgum teatro da cidade do interior entrara em greve,
recusando-se a continuar servindo de plataforma às lágrimas melodramáticas do
ator responsável por lhe dar vida no palco. E tudo isso repentinamente, as vésperas
de uma nova sessão. Acusando todos os atores de formarem uma raça de completos
falastrões mentirosos, arrumou então as malas e munido daquela dignidade
invejada só possível às figuras invisíveis, foi-se embora ainda debaixo do
ressoar do terceiro sinal. Como não havia maneiras de cancelar o espetáculo
daquela fatídica noite, o ator órfão, apartado definitivamente de seu colega fictício,
entrou aos empurrões em cena, dessa vez completamente vazio de sentimentos e a
exemplo de um equilibrista que vê durante seu número a rede de segurança ser
retirada do fundo infinito dos seus pés. Os aplausos foram estrondosos. E ao
final do espetáculo constatou-se obter o melhor dos desempenhos possíveis,
chegando inclusive a angariar o principal troféu que era distribuído anualmente
aos intérpretes dramáticos mais competentes do interior.
Quanto ao personagem desertor, pouco se sabe de seu destino.
Sumiu.
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Histórias Jurídicas # O imbróglio entre biógrafo e biografado.
Ao receber em mãos a sua própria biografia escrita pelo biógrafo
Prachedes dos Campos Neves o cantor de baladas e xaxados românticos Roberval
Carloto exigiu imediata retratação do autor justificando que a sua vida íntima
ou pública não era matéria de retratos melosos ou libidinosos ao que Prachedes
dos Campos Neves respondeu elegantemente dizendo que melosa era exatamente a
qualidade das canções que ele o cantor de baladas e xaxados românticos Roberval
Carloto cantara durante toda a sua extensa e melodramática vida e libidinoso
seria proibir todo o qualquer curioso de perscrutar as entranhas íntimas e públicas
daquele que ficara na história como o mais importante cantor de baladas e
xaxados românticos de todos os tempos. Munido de toda uma junta composta de
advogados e estudiosos da lei o cantor de baladas e xaxados românticos deu
conta de retirar das livrarias a sua biografia não autorizada e processar o seu
biógrafo o senhor Prachedes dos campos Neves por injúria e difamação uma vez
que um cantor de baladas e xaxados românticos – como o próprio termo denota - não
tem como obrigação outra senão a de cantar baladas e xaxados românticos a quem
os queira ouvir adquirindo ele todo e qualquer direito de sumir aos olhos
alheios preservando a sua mais total intimidade seja ela melodramática ou não
ao que o biógrafo respondeu indignado dizendo que faria da sua própria história
de recusa um baita melodrama sendo ele próprio o biógrafo de si mesmo nessa
biografia mais do que autorizada a respeito do biografado que injuriado pelo biógrafo
fez dele o senhor Prachedes dos Campos Neves uma perfeita personagem romântica
dançando num xaxado de baladas censuradas.
O livro foi lançado e acredita-se que venderá mais do que a
biografia recusada e proibida, para a graça do senhor Prachedes dos Campos Neves, que a partir
de agora só aceita biografar a si próprio, ainda que não saiba - e nunca tenha sabido - cantar baladas
ou xaxados românticos.
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