sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Ufa! Asfaltaram a minha rua...



Foram quase trinta anos... – o período de tempo é naturalmente mais extenso, uso aqui a escala dos meus anos vividos somente para me localizar na questão –... trinta anos até que finalmente asfaltaram a minha rua. Muitas tinham sido as ameaças anteriores, sempre frustradas por um rol de preguiças que não sei ao certo elencar. Mas enfim, eis que chega o suntuoso tapete de piche, o arauto escuro da modernidade. O processo não foi de todo abrupto, lembro-me do estágio do cascalho - que vez ou outra era despejado sob a rua poeirenta na esperança de abafar os buracos irregulares, inimigos declarados dos amortecedores alheios. A maquiagem funcionava satisfatoriamente por um tempo, mas bastava uma sequência de chuvas para que as crateras reivindicassem mais uma vez o direito de respirar. Ah! Rua de terra! Quanta desgraça! O cheiro do barro devia causar alergias nas narinas sensíveis dos moradores da João Carlos de Almeida. Quando o sol ardia e a lama secava, o desconforto migrava dos narizes para os olhos. As tormentas carregavam pedras nas exurradas - que se despregavam não sei de onde – para as depositar no meio das vias sujas por um marrom lamacento. Ah! Enfim o asfalto... veio tão rápido quanto a notícia de que um vereador ilustre acabara de desmontar acampamento na minha rua. Na verdade a ordem dos fatores é inversa: primeiro o vereador, depois o asfalto. Quem resistiria a promessa sorridente da modernidade logo na soleira da sua porta? Não resistimos nós e tampouco os buracos que foram calados, dessa vez até não sei quando. Hoje as Grand-Cherokees com tração nas quatro rodas – tração que não traciona mais nada porque não há obstáculos para tracionar – deslizam lépidas pela pista dura.

Os trabalhos duraram poucos dias, o suficiente para terminar tudo antes das eleições e consagrar nosso novo morador como um dos vereadores mais votados. A casa do honorário é uma fortaleza de esquina que poucos afirmam ter vida, eu mesmo nunca vi viva alma entrar ou sair, a única coisa visível, a bem da verdade, são as câmeras que fiscalizam a identidade de quem pisa em cima da sua obra de piche. E quantas são as diferenças entre o barro lamacento e o asfalto asséptico! Quem as notou primeiro foi a Naomy, minha labradora preta, da cor do piche, que ao pisar no novo piso elevou seu focinho na minha direção ao mesmo tempo em que suas patas almofadadas acusavam a frigideira escaldante em que pisavam. Instantes antes de pular no canteiro abençoado pelo frescor da grama verde, Naomy e eu quase não testemunhamos o nosso quase-carrasco que voou em cima de nós com seu veículo, inaugurando o grand-prix de máquinas desejadas.


Ah... o barro lamacento! Foi-se a sujeira úmida, o pó da alergia, os buracos dos mecânicos... e veio a modernidade com seus votos de "votem em mim". E por falar nisso, qual foi a nossa surpresa, minha e da Naomy, depois de escapar do balet da chapa quente e do nosso quase-carrasco, ao nos deparar defronte a uma faixa afixada na praça de baixo com os dizeres:

"Os moradores da Rua João Carlos de Almeida agradecem o vereador Goulart pelas obras de melhoria nas vias do bairro"

Naomy, com seu instinto de dar maior importância ao focinho do que as questões que atormentam o raciocínio, prosseguiu com sua intenção de cheirar o que lhe viesse pela frente. Eu a segui, não sem antes pensar em outra faixa que nunca cheguei a preparar: "Obrigado Goulart por atender ao pedido que nunca pedi".

Ufa! Asfaltaram a minha rua!

Escrito por Francisco Carvalho. 26.12.08

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