sábado, 22 de setembro de 2007

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica de minha autoria.

Caro colega ouvinte. Peço a sua licença para lhe contar como me tornei um imbecil. Se prestar um pouco de atenção verá que a minha história não difere muito da sua, o que me leva a concluir que tanto eu como você formamos, juntos, dois dos legítimos representantes da raça dos imbecis. Não sou seu colega e muito menos imbecil, você responderá. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto. Eu era, assim como você, um daqueles que levantava a voz contra o poder. Refutar uma voz de comando não era difícil, confortável até certo ponto, e fazia render saborosos tapinhas nas costas. A proporção era simples: a medida em que a coragem crescia o fã-clube aumentava. Não, definitivamente não foi essa atitude que nos privou de adentrar para o rol dos imbecis. Assumir a figura do explorado, do pobre funcionário resignado pelo berro da injustiça, é o extremo oposto e o passo decisivo para alcançar o estado da imbecilidade plena. Não é preciso dizer que ambos, eu e você, demos as mãos também nesse quesito. É verdade que há aqueles que mal percebem tudo isso e que fazem questão, seja por qual razão for, de postarem-se bem debaixo dos impropérios dos arrogantes. Estes também são imbecis mas pelo menos não sabem que o são – sei que você há de concordar que a ignorância a respeito da própria imbecilidade é uma benção. Não é o nosso caso. Se você continua comigo até esse instante é porque ambos, eu e você, compartilhamos do grupo que carrega a consciência como um fardo. Sempre fui correto, exemplar até. Aluno de excelentes notas, desde cedo aprendi a cumprir da melhor forma possível o que me era solicitado. Os bons empregos no tão sonhado mercado de trabalho foram conseqüência, encher os bolsos de dinheiro uma questão de tempo. É verdade também que aquela centelha de bravura, típica dos espíritos juvenis e inconseqüentes, as vezes insistia em arder silenciosa no meu peito como uma advertência surda de que “aquilo não estava certo”. Rapidamente notei que bater de frente com os burocratas imbecis era o mesmo que assinar o meu diploma de perdedor. Como, nessa altura do campeonato, já não podia me dar ao luxo de encarar a vida como um artista que depois do fechar das cortinas não sabe se no dia seguinte haverá espetáculo, resolvi fazer uso da minha formação imbecil para tornar-me o quanto antes um verdadeiro imbecil de carteirinha. E eis que aqui estou, respirando o mesmo ar que você, enxergando as mesmas coisas que você, ouvindo as mesmas coisas que você. Como é gratificante repousar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila de que os cadarços percorreram corretamente os furinhos do sapato. Que sapato é esse? Não me pergunte, eu apenas passo os cadarços pelos furinhos, essa é a minha função. Depois de um tempo com o carimbo oficial de imbecil estampado na testa notei que não havia vergonha ou mal algum em ser imbecil. Afinal, em alguma medida todos o são. Talvez você me compreenda melhor porque a sua imbecilidade é semelhante a minha mas, acredite, há tanta imbecilidade no mundo que ser imbecil já não é privilégio para poucos. Tornou-se comum, nada surpreendente. E aí é que está o perigo. Eu e você não somos desequilibrados. Desequilibrados sempre existiram e estão por toda a parte. Nossos subúrbios tranqüilos pululam de pastores, reitores e catedráticos dispostos a disseminar suas sandices para cinqüenta, duzentas, mil pessoas – depois esse mesmo Estado que se serviria deles sem pestanejar como forma de se auto suster os esmaga como mosquitos empapados de sangue. Esses homens doentes não são nada, e se deixam seus nomes marcados na história não é por mérito próprio. Nós somos os responsáveis, os amarradores de cadarços, pessoas comuns, pessoas ingênuas de caráter e imbecis por falta de opção. Homens imbecis como eu e como você, eis o verdadeiro perigo, funcionários silenciosos da indústria da mediocridade. Sem o nosso exército dos imbecis, esses loucos dissonantes não seriam mais do que fantoches desarticulados. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você. E, se não está convencido, inútil prosseguir. Você não entenderia nada e se aborreceria, sem lucro nem para você nem para mim. Como a maioria, eu nunca pedi para me tornar um imbecil. Se pudesse, teria optado por algo sublime, algo que engrandecesse meu espírito, talvez a música. Sim! A música!*

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica escrita por mim e inspirada na obra "A Revolução dos Bichos", de G. Orwell. Há no texto algumas pequenas transcrições de trechos da obra "As Benevolentes", de J. Littell.

2 comentários:

  1. Chico, recomendo o livro "Como me tornei um estúpido", do francês Martin Page. É bem interessante. E o viéis é humor ácido.

    Paulo, o Manaus.

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  2. Me remeteu mais 1984 que a revolução dos bichos. "Ele amava o grande irmão".

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