sexta-feira, 8 de junho de 2007

TEXTO MARAVILHOSO! ARTE - FÉ - CRENÇA - ESPIRITUALIDADE!

Texto publicado por Bernardo Carvalho no caderno "Ilustrada" do jornal "A Folha de SP" na terça feira, dia 10 de junho do ano de 2003.

“Noli me tangere” (“Não me toques” ou “Não me retenhas”, dependendo da tradução da Bíblia que você tiver em mãos) é o título de um pequeno livro que o filósofo Jean-Luc Nancy acaba de lançar na França (ed. Bayard). Nancy se detém sobre uma célebre cena do Novo Testamento descrita no Evangelho segundo São João: o instante em que, diante do sepulcro vazio, Maria Madalena reconhece Jesus na figura de um jardineiro e, ao estender a mão na direção dele, é logo alertada: “Não me toques”. A cena foi motivo para inúmeros pintores, de Giotto a Rembrandt. E são essas várias representações que servem de base para as elocubrações do filósofo.

Maria Madalena chora diante do túmulo aberto e vazio. Um jardineiro aparece e pergunta porque ela está chorando. Ela diz que levaram o corpo de Jesus; pergunta ao jardineiro se foi ele. E é só quando o jardineiro diz: “Maria!” que ela por fim o reconhece. Estendo o braço para tocá-lo, mas é impedida: “Não me toques porque ainda não subi ao Pai”. E em seguida é enviada aos discípulos para lhes anunciar a novidade.

Na tarde do mesmo dia, Jesus aparece aos discípulos. Tomé, que não está entre eles, não acredita quando lhe contam. Diz que só acredita vendo (o corpo ferido pelos cravos na cruz). Oito dias depois, Jesus volta e manda Tomé pôr o dedo nas feridas. Tomé enfim acredita. Então, Jesus lhe diz: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram”.

Jean-Luc Nancy usa a parábola para fazer uma distinção entre crença e fé e aproveita para insinuar uma ligação essencial entre a cena do sepulcro e a arte e a literatura modernas. É a especulação mais surpreendente e provocativa do livro.

A crença é uma busca de segurança. O crente precisa de segurança para acreditar e acredita para ter segurança, como no caso de São Tomé. É ver (e tocar) para crer. Na fé não. Não há nenhuma segurança. É uma aposta no vazio. A fé faz ver no banal o que os olhos banais não podem ver. Maria Madalena reconhecendo o Cristo num jardineiro, por exemplo. Não tocar, nesse caso, é condição para atingir o intocável e ver o invisível. Tocar seria permanecer na ilusão do presente e das aparências. “A crença espera o espetacular e o inventa conforme a necessidade. A fé consiste em ver e em ouvir onde nada é excepcional aos olhos e aos ouvidos comuns”, escreve Nancy.

A fé de Maria Madalena é fidelidade ao vazio, à ausência (como no amor). Quanto mais as pessoas tentam possuir o que amam, mais o amor lhes escapa. O amor é inatingível. É o que se faz sentir pela distância e pela indisponibilidade. O que aparece para Maria Madalena e que ela não pode tocar é a presença da ausência. O ressuscitado só existe pelo desaparecimento. Ao desaparecer, o morto passa a existir para sempre, e é isso o que ela vê diante do sepulcro. A aparição do ressuscitado é, na verdade, a aparição da sua ausência. A arte moderna também é isso. O principal não está lá. Tudo depende do espectador. Tudo está no seu olhar.

Para Nancy, arte e religião são coisas distintas. Na arte não pode haver crença. Há fé, no mesmo sentido exposto pela parábola do sepulcro: ver a ausência. Não há mensagem, mas um eco que nos faz “ouvir nosso próprio ouvido ouvindo e ver nossos próprio olhos olhando aquilo que os abre e que se oculta nessa mesma abertura”. Para Nancy, representar na arte é “tornar intensa a presença de uma ausência, enquanto ausência”.

Daí a desconfiança e a reação que a arte e a literatura modernas provocam nos que pretendem enterrá-las sob o pretexto de que são arbitrárias. Se por um lado a fé necessária à compreensão da representação da ausência permitiu um monte de imposturas e cabotinismos, por outro levou até as últimas conseqüências a idéia de uma verdade da arte. Os que se incomodam com a ausência na arte moderna agem como crentes, precisam ver para crer, precisam do espetáculo, o que explica em parte o advento nas últimas décadas de mensagens e sentidos exteriores à obra, mas que lhe deram uma presença tangível, reassegurando ao espectador um tipo fácil de reconhecimento e assombro.

É em grande parte uma arte alegórica, que tenta forjar o seu significado à força como forma de evitar encarar a ausência. É uma arte que tem horror do vazio e que tenta criar uma presença seja como espetáculo sensacionalista, seja por expressões narcisistas ligadas à biografia ou à sexualidade do artista, seja por remeter a um engajamento qualquer que dê ao espectador a ilusão de uma utilidade quase jornalística do trabalho. É uma arte de certa maneira infantil, que se recusa a encarar a morte, mesmo quando pretende estar falando dela.

Na literatura é a mesma coisa. A ausência alusiva tão marcante nos textos de Beckett, para citar o exemplo mais evidente, deu lugar a um novo naturalismo, em que o principal volta a ser a idéia de representação da realidade, seja no retrato da sociedade, seja na construção psicológica dos personagens. Entre outras conseqüências, essa tendência faz o leitor esquecer que a arte é o que não está lá. E se perder na busca de alguma segurança superficial, na ilusão do reconhecimento de alguma realidade, como um crente”.

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