domingo, 30 de junho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim de ‘A’ que brigou com ‘C’ exigindo que ‘B’ ficasse no meio para intermediar a contenda que nunca acabou, acabando antes com quem dela tomava parte...

A brigou com C - briga cujas razões há muito o tempo deu de apagar por completo -, exigindo que B, naturalmente um intermediário em questões relacionadas a A e C, ocupasse a posição de juiz da disputa, mas, antes que a tal rixa fosse colocada à prova, a notícia de seu acontecimento levou todo o alfabeto a se separar em duas turmas, uma fiel a A, a outra fiel a C, movimentação que também chamou a atenção dos números, todos eles imbuídos em tomar partido por um ou outro lado, de forma que o anúncio da briga iminente virou notícia de tal magnitude que também as cores não conseguiram manter-se ausentes de uma posição política em relação aos adversários, levando as cores escuras e densas a apoiar as razões de A, enquanto as tonalidades claras e celestes compraram prontamente os motivos de C, sempre com B a tentar manter a tensão equilibrada para ambos os extremos, coisa já bastante instável, uma vez que as expectativas de triunfo cresciam nas duas direções a ponto de a qualquer momento haver uma ruptura na calmaria para, enfim, eclodir em ação. Dito e feito. A guerra começou, primeiramente envolvendo somente as letras, cores e números, mas, com o decorrer das agressões, tudo - desde o que tinha forma e contornos, bem como conceitos e significações múltiplas e abstratas -, tudo que tivesse algum sentido de existência nesse mundo foi obrigado a se armar segundo os princípios de A ou os de C, que já não mais podiam ser identificados no meio de tantas bombas e farpas trocadas por seus aliados. O tempo passou e sabe-se que a guerra ainda continua, com mortos e feridos a multiplicarem-se a cada dia, e, após anos de derramamento de sangue, fomos encontrar A e C ainda vivos, a conviverem harmoniosamente já havia décadas desde o início de toda a confusão, ambos já bastante idosos e companheiros do mesmo asilo, local de onde agora chega-nos a triste notícia: acabam de falecer, um ao lado do outro, de braços atados numa clara mensagem de amizade eterna. Lá fora, enquanto isso, a guerra soma novos personagens, todos lutando por suas vidas, ainda que os motivos do início de tudo, bem como os que deram sua origem, há muito foram apagados ou esquecidos simplesmente pela ação da passagem do tempo.

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OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do suicida que nunca se suicidava...

Ele parou em cima da ponte, olhando o tráfego que lá embaixo corria ligeiro. De repente resolveu estacionar a sua vida, que há muito já estacionara numa rotina tediosa de acordar e voltar a dormir, e novamente acordar e voltar a dormir, nada fazendo senão isso: acordar e dormir, sempre com a justa consciência de que nada demais aconteceria se ele parasse com esse movimento pendular e inútil: acordar e voltar a dormir. Não acordaria mais, decidiu, não acordaria mais e também não dormiria mais... já que era indiferente para a vida que ele continuasse vivo, seria ele agora a assisti-la passar, ao invés de persistir nessa função de náufrago arrebatado pela correnteza dos dias, afundando sob as ondas das horas, minutos e segundos. Parou em cima da ponte e só isso fazia: olhava para o tráfego que lá embaixo nunca deixava de correr ligeiro. A quem o perguntasse o que lá fazia, respondia simplesmente que sua hora havia chegado, que a vida não lhe tinha mais sentido algum. Por algum tempo uma multidão se adensou debaixo do viaduto somente à espera de um salto seu para a morte, coisa que não ocorreu. Até emissoras de televisão e agentes sociais o interpelaram para que desistisse dessa empreitada maluca de acabar com aquilo que Deus havia lhe presenteado, o que ele devolvia dizendo que presente como aquele ele recusava sem cerimônias ou regateios mentirosos, preferindo afirmar sem medo: a vida é um tremendo equívoco, basta olhar lá para baixo para entender que ninguém dela faz questão, indo e voltando de lugar algum para lugar nenhum unicamente para satisfazer as idiossincrasias do hábito. O tempo passou e desistiram dele, do suicida que nunca se suicidava – apelido que lhe deram -, e ele insistia em lá ficar, só assistindo a vida passar depois de ele ter tanto passado por ela, incólume. Quem passasse de carro ou a pé perto da ponte podia avistar ele, como uma estátua, olhando para o mesmo ponto, só desviando sua atenção quando o tiravam da sua concentração filosófica, mas que prontamente retomava depois do inquérito forçado. Num determinado dia, desapareceu. Sumiu. Pensaram que ele tinha se jogado, mas corpo nenhum foi encontrado. Pesquisaram para saber para onde teria ido, mas não houve quem desse uma resposta que sugerisse alguma pista. Ele havia sumido do mapa simplesmente. Ou a vida o tinha finalmente levado, ou ele levou-se dali escondido para nunca mais ser encontrado. Nem quando seu retrato foi colocado no jornal a título de recompensa por alguma informação de seu paradeiro o mistério pôde ser solucionado. A cidade voltou a sua rotina, e a vida continuou com o seu vai e vem.

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quinta-feira, 27 de junho de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES #O fim daquele que não vivia, só lia...



Ele lia. Tudo para ele era motivo de se folhear, dos clássicos até o que era reconhecidamente porcaria, para ele, era assunto para estacionar os passos e botar os olhos para trabalhar. Lia tanto que deixou de viver, ou, se vivia, só as olheiras é que sabiam, tanto de roxas que ficavam na medida em que funcionavam. E assim foi, ficando escuro pelas beiradas, emudecendo para as demandas diárias, só vivendo para não viver, senão para ler. Outro dia, disse a mim todo contente: ‘Está tudo aqui! O segredo de todas as coisas está escrito bem aqui!’, e chacoalhava um enciclopédia antiga, de páginas já amareladas. O tempo passou e ele lá, acumulando não só leituras como também livros, dos pesados aos mais leves, os livros é que se multiplicavam, cada um deles abarrotando os poucos vãos livres da sua já lotada estante. Pois ocorreu que, numa ocasião, foi trepar-se num banquinho para apanhar não sei qual leitura que equilibrava-se lá no último andar da tal estante. No movimento de apanhar o livro, desequilibrou-se, e, caindo ao chão, caíram por cima dele todos os livros do mundo, dos russos aos espanhóis, dos nacionais aos de idioma mais esquisitos, os livros sobre ele caíram sem parar. Já completamente morto, fruto provavelmente do golpe fatal de uma lombada de Dostoiévski, um último volume foi abrir-se em sua última página e exatamente por cima do monte onde seu corpo jazia. Era Machado de Assis na voz de seu Brás Cubas, que assim dizia: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da minha miséria’.  Foi seu epitáfio.

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# Café com formiga...

No meu café havia uma formiga.
Tomei meu café.
Se engoli a tal da formiga que havia no meu café,
Cá estou eu:
Alimentado por um café tomado e por uma formiga digerida
Ou, se não a engoli junto com meu café
Continuo aqui
Alimentado por um café, e sem saber qual é o gosto de uma formiga.

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O mundo e eu...

Tem gente tão certa sobre o que acontece com o mundo, elaborando teorias a respeito de como torná-lo melhor...
E eu aqui, sem saber o que acontece comigo, sem uma pista ao menos de como proceder com o que vejo de mim...
Penso, às vezes, que é tarefa de uma vida olhar-se no espelho e ser capaz de dizer: esse sou eu
Ou então é coisa menor saber quem se é
Antes querendo dos outros o que não se conseguiu achar dentro de si...

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# Filosofias...

São muitas as filosofias
E a melhor delas assim dizia:
Chega de filosofias!

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De qual jeito movimento-me?

Se subíssemos pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! -, seríamos mais magros. Decidido a engordar – porque já sou demasiado magro de compleições, resolvi prontamente abandonar as subidas pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! – mas, convencido de que não tenho talento ou genética alguma para engordar – haja vista que já faz mais de um ano que abandonei as escadas – as de degraus – não as rolantes! – e nada de adicionar uma única grama a minha esquelética compostura, decidi voltar a subir pelas escadas – as de degraus, uma vez que as rolante fizeram-me estufar demasiadamente - senão nas ancas, nos poros entupidos da preguiça, e, sabendo que seríamos mais magros se subíssemos pelas escadas, as de degraus – não as rolantes! – agora posso atestar por experiência própria, que seríamos também, menos eu que magro já sou, além de mais magros, menos preguiçosos. Hoje procuro um meio de transporte que, além de fazer engordar, possa prevenir-me da apatia do tédio.

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