quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Fábulas: # A velha e Tchaikovsky...

 

Ainda no meio do primeiro movimento da famosa quinta sinfonia de Tchaikovsky uma velha levantou-se da plateia com a ideia de ir ao banheiro. Mas como não podia se deslocar sem o auxílio de seu andador – uma peça de metal que fazia um barulho enorme toda vez em que era apoiada no chão -, a velha, então, tratou de escolher o tempo forte do compasso da sinfonia para cumprir com o seu desejo, atravessar a sala com o seu andador sem atrapalhar os músicos e os demais espectadores, e, finalmente, chegar até o banheiro. E lá foi a velha. E como foi andando decisiva, marcando esplendorosamente bem o tempo mais forte dos compassos do primeiro movimento da famosa quinta sinfonia de Tchaikovsky, toda a orquestra ganhou em intensidade, dispensando, inclusive, os gestos sonolentos do maestro. Ocorre que na noite seguinte a mesma velha estava presente no mesmo concerto, e ainda no primeiro movimento da famosa quinta sinfonia de Tchaikovsky ela levantou-se com a ideia de ir ao banheiro. E lá foi a velha, tão decidida quanto compenetrada em não falhar na marcação do tempo forte dos compassos. E a orquestra tornou-se radiante. E já ninguém mais se importava com o maestro, ele próprio admirado com a competência rítmica da velha, nessa altura uma velha de ouvido absoluto. Na semana seguinte a orquestra voltou a tocar, mas dessa vez um novo programa, todo ele dedicado aos compositores modernos e dodecafônicos. Incrivelmente a velha estava lá, e ainda no primeiro movimento dessa obra de marcações rítmicas complexas, a velha teve vontade de ir ao banheiro. E a velha foi. E a orquestra, já acostumada com a velha e sua habilidade em peças do repertório erudito tradicional, duvidou de rabo de olho de que ela iria dar conta do novo desafio. E a velha marcou tão bem os tempos dos compassos, martelando com o seu andador de metal os tempos mais esquisitos onde mesmo os maestros mais experientes eram capazes de se embananar, que, enfim, a velha foi finalmente contratada para fazer parte do conjunto sinfônico. E o maestro, obviamente, demitido. Ocorre que a velha, como tudo o que é velho, morreu um dia. Mas já nessa altura, outras velhas haviam sido preparadas para substituir a velha original. E assim se fez, dando continuidade a essa tradição hoje muito divulgada e aceita de se ter uma velha marcando o ritmo das orquestras com um andador de metal no meio das salas de concerto.

A propósito... o leão fugiu do circo!


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Fábulas: # O país dos decapitados


No país dos decapitados ganhava fama quem se decapitava, deixando como prova do sucesso um vídeo gravado contendo a própria decapitação. Funcionava assim: o candidato ao estrelado adquiria uma guilhotina portátil, equipamento facilmente adquirível nas mais frugais lojas de ferramentas e armarinhos das esquinas, armava em sigilo o treco em casa, deitava a cabeça no buraco reservado para as cabeças e, por uma cordinha de náilon com uma bolotinha de acrílico na ponta, acionava o mecanismo que fazia despencar a lâmina afiada, tudo isso, evidentemente, registrado pela câmera de vídeo, que era a primeiríssima coisa que deveria ser preparada e ligada para que todo o ritual fosse devidamente registrado até o instante em que a cabeça rolasse até uma cesta de vime alocada logo abaixo da geringonça, e de forma que a gravidade agisse sobre aquela massa redonda e pensante que, se depois de descolada do tronco não podia pensar em mais nada, havia antes pensado meticulosamente em tudo para que, uma vez transformada em esfera cabeluda (ou esfera careca para o caso dos carecas guilhotinados) pudesse rolar tranquila até a sua morada final, ou seja, exatamente na cesta de vime trançada por palhas secas. Ocorre que, como não havia quem desligasse a câmera depois do ocorrido, o material gravado continha um único instante de clímax, seguido de uma eternidade de vazio sem drama algum, no máximo um espichar de sangue monótono. que mesmo assim durava só até a altura do corpo virar algo parecido com uma boia de piscina vazia. Foi aí, então, que resolveram o problema formando duplas, o segundo auxiliando o aspirante à fama a se guilhotinar. Mas, como o auxiliar da guilhotinação inevitavelmente encantava-se com o sucesso do guilhotinado, editando o vídeo no instante desejado para a produção de um material irretocável, também ele, o auxiliar, acabava desejando guilhotinar-se, resolvendo esse problema ao chamar um terceiro elemento que pudesse, ele também, auxiliar na decapitação e captura do vídeo do segundo, e original auxiliar na decapitação do primeiro. E como o terceiro encantava-se com tudo, um quarto elemento era chamado para que ele também, o terceiro, pudesse guilhotinar-se e se tornar famoso. E um quinto, um sexto, e assim por diante e etc, até que, finalmente, restasse apenas e tão somente uma videoteca gigantesca de decapitações, toda ela à serviço do último de todos, que teria a sorte de só ele assistir a todos se decapitando, e quando bem quisesse, ou até, pelo menos, ele próprio resolver optar pelo mesmo destino, e caso o fizesse, seria a dele a única e inédita decapitação jamais vista, e cujo vídeo rolaria eternamente, ou, assim como era no princípio, até o fim da memória da câmera...


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Fábulas: # Família Vende Tudo

 

Uma família que estava de mudança afixou no portão da casa uma generosa faixa com os dizeres em letras garrafais e coloridas: 'Família Vende Tudo'. E foi um enorme sucesso. O pai e a mãe, ainda em bom estado físico, incluindo arcadas dentárias vigorosas e alvas, foram vendidos juntos para um casal de australianos que por acaso do destino passavam férias no local e não puderam resistir à promoção. O avô, já biruta mas nem por isso imprestável de todo, ou talvez porque fosse biruta mesmo, foi arrematado pelo dono de um circo e logo tornado atração depois do número dos poodles dançantes. Passou-se a chamar Palhaço Dodô. O pequerrucho William, mais mimado que um exército de bonequinhas de cera de bochecha rosa, acabou sendo alvo de uma disputa bélica entre uma senhora que há pouco perdera a companhia de um papagaio que já andava decrépito e gaguejava a sílaba 'ca' todas as vezes em que pedia 'quero café, quero café', e o dono do instituto de soros antiofídicos, doutor BougMarten, bastante necessitado que estava de uma cobaia humana jovem para testar antídotos contra a picada de uma nova espécie de cobra encontrada na ilha de Madagascar. Venceu a dona Leocádia, a senhora do papagaio morto. Corre à boca pequena que o pequerrucho William, ao contrário do finado papagaio, não gagueja, além de pronunciar o erres como ninguém. Enfim, depois de todos vendidos e finda as mudanças, sobrou o cachorro, Zacharias, um perdigueiro marrom de focinho úmido, que hoje toma conta de toda a propriedade, podendo ser visto por quem se debruça na janela do lado de fora fumando seu cachimbo, sentado numa poltrona dentro da biblioteca, lendo 'Crime e Castigo', romance preferido, e de seu autor favorito...

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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Convenhamos
Viver bem é viver 
Em banho-maria
Essa coisa de intensidade
(Dá-lhe saber!)
Só na poesia

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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Fábulas: # Três pombas gordas no parapeito

Ao abrir a janela, três pombas gordas e de pescoço engomado feito colar elisabetano formavam uma linha no parapeito do prédio vizinho a exemplo de três matronas líricas que esperam o subir da cortina para iniciar a arrulhar falsetes. A primeira delas arriscou a Rainha da Noite e foi efusivamente recebida pelo alvoroço de um punhado de maritacas; a segunda, mais humilde, se fez de voz de coro e emendou a melodia dos escravos hebreus da ópera Nabucco. A terceira pomba, a menos dramática de todas, não cantou... contentou-se apenas em rir baixinho das outras - era uma pomba do tipo pomba-existencialista -, e antes de bater asas para o longe pôde-se ouvir dela uma única e sussurrada frase:

- que coisa curiosa são as pombas...

E foi-se.


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domingo, 14 de dezembro de 2014

Fábulas: # A vez dos cachorros...

E de repente descobriu-se que os cachorros tem alma e, portanto, um lugar por direito à direita de Deus Pai, pelo menos os cachorros de alma-boa, porque para tudo o que tem alma há também aqueles que, dotados de almas nada afeitas ao destino da eternidade celeste, padecem por serem maus, e quem há de duvidar de que existem também cachorros maus? Pelo menos cachorros distantes dos ditames do Senhor Todo Poderoso e, portanto, formadores do alvo preferencial a ser convertido para o bem, porque é também da natureza dos que tem almas-más, incluindo aí os cachorros maus, uma certa propensão natural para o bem - sendo maus unicamente por um desvio de caráter bastante compreensível àqueles que, em convívio com más companhias (incluindo aí os maus cachorros) tornam-se, portanto, maus também - e, portanto, havendo isso a que chamamos de trilha do Divino ofertada à todos os que tem alma (cachorros ou não cachorros, bons ou maus) a título de celebrar a salvação junto aos demais de alma comprovadamente boa, incluindo aí os cachorros de alma boa, o que se deu foi a implementação em caráter de urgência da missa-dos-cachorros, e cujo evangelho canino pode ser ouvido em ganidos, uivos e ladros, especialmente daqueles cachorros mais fervorosos - os cachorros postulantes a um lugar à direita de Deus Pai -, guiados pelo cuidado e benevolência da palavra do cachorro-pastor

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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014