quarta-feira, 9 de julho de 2014

Fábulas: # Aposentadoria precoce.



Estava decidido, iria parar de escrever, bastaria para tanto uma despedida simples, algumas poucas palavras, as últimas e definitivas como um bom epitáfio literário que diz: o que tinha de fazer já fiz, agora é com vocês, e como precisasse algum tempo para praticar e encontrá-las, passou a vida inteira escrevendo sem parar, e quando finalmente conseguiu refrear seu ímpeto de busca não foi por haver encontrado frase ou expressão alguma, mas porque morreu, antes mesmo de vangloriar-se pelo ponto final que nunca soube onde e como pingar...


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Fábulas # O Martírio do Cavalinho...


Apareceu uma charrete puxada por um cavalinho esguio descendo a rua em velocidade alucinante. No dia seguinte, lá estava ela, a mesma charrete puxada pelo mesmo cavalinho esguio e descendo a rua a galopes furiosos. Perguntados se não era injusto submeter aquele cavalinho a corridas tão velozes e num chão tão duro como era o de asfalto, os adolescentes que ocupavam os assentos da charrete disseram que de forma alguma o cavalinho se importava, gostando mesmo era disso, de alongar as pernas e bater os cascos com força no chão, e além disso, se tivesse dúvidas sobre a opinião do cavalinho, que fosse ele a responder a bendita pergunta, e morreram de rir, os adolescentes da charrete. Semana após semana lá estava a mesma charrete com os mesmos adolescentes a escoicear com as rédeas de corda o mesmo cavalinho esguio, bufando em disparada através da rua asfaltada. Quando não muito tempo depois os dois adolescentes apareceram andando pela rua e perguntados onde é que estava a charrete puxada pelo cavalinho esguio, disseram que a charrete havia sido vendida naquela mesma manhã, e quanto ao cavalinho? O cavalinho havia morrido naquela mesma noite, amanheceu com a língua de fora e já completamente entregue ao além, disseram os adolescentes sem maiores constrangimentos e até com certa dose de ironia, e como isso foi acontecer? Nova pergunta, tudo morre nessa vida, e quase tudo o que morre não tem muita justificativa para morrer, morre-se e pronto, e, além disso, se quiser mesmo saber o motivo que levou o bendito cavalinho a empacotar, que vá você até onde o cavalinho estiver e faça a ele a bendita pergunta. E nunca mais se soube desses dois adolescentes que durante tanto tempo desceram aquela mesma rua puxados pelo esforço voraz daquele nobre cavalinho esguio, já desaparecido para sempre.


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domingo, 6 de julho de 2014

Somente as dores de amor valem o esforço de jamais serem curadas

Onde há saúde não há coração 


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Às vezes colecionamos pedaços esquecidos
Daquilo que por tanto tempo sem saber
E por inteiro
Havíamos sido

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sábado, 5 de julho de 2014

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Soubera que no teatro os crimes eram de mentira, que vilões só o eram na aparência, em nada acarretando prejuízos para suas vítimas, que se pareciam agonizar aos olhos públicos, recuperavam-se do golpe fictício quando as cortinas cerravam a ponto de recobrarem o sorriso no instante seguinte ao banho de sangue. Até mesmo os mártires, alguém o avisou, eram produtos de uma falsa orquestração cujo objetivo não era outro  senão o de ludibriar os crédulos – Édipo furava os próprios olhos mas não furava de verdade. E quem haveria de permanecer calado frente a tamanha fraude espetacular?, ponderou consigo. Correu aos bastidores para exigir ressarcimento de suas angústias vividas, mas quando lá chegou teve que se deparar com um velhinho prostrado que há poucos instantes erguia-se heroicamente em sua compostura de protagonista. Era frágil, quase um fio de existência prestes a fugir com o primeiro soprar de vento que adentrasse pela janela. Inquirido, o velho ator respondeu: tens razão, é tudo falso: a roupa, o cenário, a maquiagem, eu sou falso bem como todo o resto é falso em igual medida... Somente uma coisa permanece íntegra no meio dessa devassidão toda: o tempo, cruel com tudo o que existe e também carrasco daquilo que se inventa para fugir do que aos olhos se apresenta como verdade. Voltou para a casa satisfeito. Nunca tamanha sinceridade lhe calara assim o coração.


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Viver é muito penoso
Melhor é pensar que vivo
E assim vou vivendo
Um pouco sendo
Outro tanto
Sabendo


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terça-feira, 1 de julho de 2014

Despedaço-me em vozes que sei que não tenho
Componho traços que fogem daqueles que me denunciam 
Aspiro desejos de fuga
Não de encontros
A unidade me é insuportável 
Prefiro antes a doença da desfaçatez, do ludibrio de caráter 
Sou ator porque não me suporto
Quem sou?
Uma mentira

Minha vaidade é gostar do quanto de mim sou capaz
De me afastar

Não sabendo nunca quem sou
Insisto
Em não saber

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