sábado, 22 de fevereiro de 2014

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Ontem disse que eu era assim
Creram! E agora procuram-me o mesmo
Não sou, ou melhor, já fui!
Não mais
E assim segue a vida
Cheia de gente que se veste de véspera
No desejo de eternizar o que por eterno só conseguem ter
Quando um dia deixam de ser...

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Cercam-me tantos exemplos de como não ser
Que no fundo sou isso:
Uma recusa voluntária me oferecida pelos outros.
Só desejo ser como gostaria que fosse
Quando olho para meus cães
Chegando-me em silêncio os motivos que por gestos e palavras nunca conseguiram minha adesão.

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Guilhermina das caixas de ovos...


Consta na lista dos afazeres cotidianos uma atividade cuja recompensa ou é o silêncio de a ter realizado, ou então o evidente desastre de não ter sabido como cumpri-la. Porque paira justamente aí a injustiça humana: quando sabe-se fazer algo, nada ou ninguém presta atenção, ao passo que, uma vez incorrendo em qualquer incompetência digna de nota ou não, haverá sempre um papagaio a lhe repetir publicamente as notas do fracasso. Pois Guilhermina das caixas de ovos testou com galhardia os limites do talento, atravessando a rua a equilibrar umas não sei quantas caixas de ovos, brancos ou laranjas, tanto faz, passando incólume o seu hercúleo esforço por quem fosse que a visse naquela situação: toda ela distribuindo as próprias banhas - porque se uma coisa podemos dizer de dona Guilhermina das caixas de ovos é que, provavelmente, muitos ovos fritos havia ela ingerido ao longo desse tempo todo em que acabara por firmar a sua reputação, nada aplaudida e bastante desprezada, por sinal, de exímia carregadora de caixas de ovos, brancos ou laranjas, tanto faz, cabendo, inclusive, a insinuação nada absurda, por sinal, de que ela, dona Guilhermina das caixas de ovos, incluía também algumas fatias de bacon na sua pesada dieta, fato que explicaria a silhueta assaz avantajada -, e assim dava conta, ainda que inconscientemente, de usar as próprias banhas como contrapeso aos frágeis ovos que empilhava em pilhas de bandejas de isopor. E lá ia dona Guilhermina das caixas de ovos, quase um monumento inteiro e invisível da suprema falta de consideração que prestamos a todos os que dedicam suas vidas a feitos inacreditáveis, mas que pairam no mais espectral anonimato, só valendo atenção no instante em que esparramam sua imperícia aos pés nossos, espectadores ingratos desse mundo em que ovos, tampouco carregadores de ovos, valem nada, ou quase nada, mesmo sendo eles, os ovos, laranjas ou brancos, tanto faz. 

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sábado, 15 de fevereiro de 2014

MOLDURAS IMPROVÁVEIS PARA PERSONAGENS DESPREZÍVEIS: # Olívia das Hortências, regente da plateia...


Sabe-se que as coisas andam tão absurdamente subvertidas nessa vida, os baixos subindo aos ombros dos altos para angariar horizontes antes cegos, cegos enxergando mais do que os que enxergam, mortos que vivem mais do que os vivos que deveriam por direito adquirido viver antes de morrer, os mestres pleiteando o diploma da mentecapice em favor dos pupilos que, sabidamente burros, viram catedráticos respeitadíssimos e de toga, enfim, é um tal de azul virar verde e verde virar amarelo, tudo sem aviso prévio, que não surpreende o fato de Olívia das Hortências, a assinante de concertos da Orquestra do Estado, agir dessa forma, como se ela fosse o centro das atenções, mui vezes mais interessada em monologar no silêncio do que assistir ao pobre do spalla regurgitar escalas dificílimas, e assim marcar presença como regente de um naipe só dela, todo coordenado pelos seus gestos de virar de olhos, torcer dos lábios, amassar o papelzinho de bala, breves ruminações intestinais habilmente liberadas em tempo de sincopa, enfim, todo um repertório de grunhidos e tiques milimetricamente ensaiados, havendo por fazer dela, enfim, dona Olívia das Hortências, uma enorme e gorda batuta de carne e banha, levando atrás de si toda uma plateia que de interessada nos músicos não tinha absolutamente nada, antes marcando encontros para seguir as ordens dela, Olivia das Hortências, essa senhora que um dia encantou-se em saber que a Orquestra do Estado abriria uma série de assinaturas para que o público pudesse tornar-se fiel e ainda mais próximo desse que é considerado um dos conjuntos mais notáveis do mundo orquestral contemporâneo. E dito e feito. Com salas cada vez mais abarrotadas de séquitos de dona Olívia das Hortências, senhoras e senhores na sua maioria surdos, gagás e ricamente populosos nas ancas já atacadas pela osteoporose, não foi pouca a repercussão do sucesso empreendido pela Orquestra do Estado no intuito de ampliar seus programas sinfônicos e apresentações de câmara e, embora quase ninguém estivesse interessado em ouvir patavinas do que Mozart, Beethoven ou seja lá quem quisesse dizer, a plateia, toda ela partidária de dona Olívia das Hortências, fazia cara de absoluta comoção, reagindo a cada respiração mais grossa de dona Olívia das Hortências, sempre atenta para gritar ‘Bravo!’ ou ‘Viva!’, mesmo que, imaginemos o fato, a Orquestra do Estado resolvesse amassar e jogar fora toda a sua erudição construída por anos a fio, e saísse a interpretar a La Cucaracha, com violoncelistas trajando enormes sombreiros a rodopiar palco afora. Enfim, cabe dizer que houve um instante de absoluta sensibilidade por parte de Sir Marlon Oilsip, maestro titular da Orquestra do Estado, obrigando todos os seus músicos a interromper o matraquear afinado dos seus instrumentos no auge do último movimento de Mahler, para virar-se em direção à plateia, terreno onde um adagietto em ronco maior se dava em pleno chilrear de beiços moles, e cujo centro respiratório encontrava-se justamente na goela da dona Olívia das Hortências. Desde então, e concluímos por aqui, as coisas trocaram de lado, a plateia subia ao palco, e os músicos sentavam-se nas cadeiras do público, executando trechos muito breves de alguma peça ligeira e sem profundidade alguma, toda vez em que o tédio da massa velha e sem interesse permitia um entreato.    


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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

(*****)

Esconder, esconder, esconder
Praga essa em que tudo é revelado!
Sabe-se o nome de todos
A política da moda
Os desejos e frustrações do mundo
Tudo quer se reformar pela adesão
Pergunte a qualquer um:
Todos tem opinião!
E juntam-se em bandos de toda a espécie!
A rua virou campo de matraqueadores
Existir é ser visto e ouvido
Achar meios de dizer:
Estou aqui! Estou aqui! Estou aqui!
E nisso depositam a esperança da civilidade...
Será que não veem que movimento algum leva a outro lugar senão ao mesmo ponto em que um dia alguém por teimosia houve por abandonar?
Fico
Enraízo
Mofo
E assim vejo a vida passar com o seu desfile de ideias ocas
Enjeitando bufões esperançosos por chegar ao fim da avenida aos berros de vitória
Eu não
Não berro
Só vejo
E isso mais do que basta
O resto é silêncio...

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

(...)

Que maravilha que é morar e não saber quem mora ao lado
Ter um vizinho e não o conhecer
Saber que alguém mora ali
Alguém cujo rosto eu jamais vi
E tampouco ele de mim faz memória
Somos os dois, no máximo
Uma história
Capítulos nada extensos
Em nada profundos
De enredo rápido e fácil
Só dividimos o que não sabemos
E fim!
Pronto nos entendemos.

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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Se...

Se a vida entendesse que é teatro
Não haveria teatro
Porque a graça do espetáculo é crer-se natural
Ainda que num cenário inteiramente forjado por pantomimas!
Que continuemos ignorantes para esse circo bizarro
Para que a máscara continue a nos caber inteiriça 
Bem no centro do picadeiro da existência...

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