sexta-feira, 10 de maio de 2013

OBITUÁRIOS EXEMPLARES # O fim do ex-enlatador de sardinhas norueguesas...



O enlatador de sardinhas norueguesas, depois de uma vida inteira enlatando sardinhas da Noruega numa embalagem e num território não noruegueses, decidiu, após aposentar-se, sair de onde estava e viajar para a Noruega a fim de, como gesto de gratidão às sardinhas há tanto tempo enlatadas por suas mãos, visitar os mares cujas águas abrigavam as tais sardinhas. Ao chegar à Noruega descobriu que nenhuma sardinha habitava nenhum dos mares da Noruega, e, não só a Noruega eximia-se de abrigar sardinhas em seu litoral gelado, como tampouco toda a região dos mares do norte, mais afeita ao bacalhau do que aos peixes de porte pequeno, conhecia a existência de sardinhas, norueguesas ou não, nas suas águas, fossem elas águas rasas ou profundas. Incapaz de processar tal informação, e, acreditando-se enganado por uma espécie de conspiração contra, ou melhor, a favor da preservação das sardinhas norueguesas – fato que explicava a hipotética, porém quase certa, mentira sobre a real situação das sardinhas, fazendo-nos crer que elas não existiam por lá, enquanto a verdade crua e nua dizia que as tais sardinhas não só nadavam em cardumes caudalosos nos mares da Noruega como também fervilhavam por toda a costa dos mares do norte -, ele, o enlatador de sardinhas norueguesas, depois de aposentado, e, portanto, agora ex-enlatador de sardinhas norueguesas, decidiu ele próprio mergulhar nas águas geladas da Noruega para comprovar que as sardinhas lá estavam, a espera ou não de serem enlatadas por algum outro enlatador na ativa, estivesse ele na Noruega ou não. Morreu afogado porque nunca na vida aprendera a nadar. Na ocasião do enterro, o ex-enlatador de sardinhas norueguesas teve o caixão coberto com a bandeira da Noruega. Também foi tocado o hino da Noruega. E o mistério sobre as sardinhas, se são norueguesas ou não, continua...

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quarta-feira, 8 de maio de 2013

HAJA HUMOR...



O humor é
Matéria de dor.
Rir é
Ferir.
Não se mostra os dentes
Impunemente
Quem o faz humor não faz
Faz é festinha 
Coisa de amigo para amigo
Celebrando os anos
Do próprio umbigo...

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ARTE E LEGITIMIDADE = PERIGO...


Quando a arte se institucionaliza
Se marginaliza
E se antes era marginal
Era porque era natural
Faz parte do sentido da arte não existir como sentido dentro das indumentárias legitimadas
É pela sua ilegitimidade que ganha alguma identidade
O rosto do novo empregado do serviço público não cabe ao artista
Não há outra coisa que sentencie mais rápido a sua ruína senão uma carteira de trabalho
E é nisso que pode trabalhar
Na não existência de vínculos
Como o viajante solitário
Viajando sem visto de entrada
Passaporte ou
Papelada...
Viaja e pronto
É na incerteza de voltar
Que faz sua jornada...
Há uma contradição nisso tudo
Afinal
A arte há que ser respeitada
Mas tornando-a oficial
Com direito a toda burocracia
E tal
Um passo decisivo seria dado
Rumo a sua derrocada final...
O artista é esse ser que nada tem
Devendo a nada reportar
Senão ao direito de falar
Aos que quiserem ouvir...
Não há o que duvidar
Quando a arte começa a ser desejável
Amparada pelos meios legais
Um sinal de perigo aponta no horizonte
Arte e política nunca foram parceiros
Ao contrário, são de famílias rivais
Enquanto uma diagnostica sem almejar meios de curar
A outra só existe para emendar.
A política é causa e efeito
A arte é desejo sem freios
Tirar a sua inconsequência, e, portanto, a rebeldia do artista
É mata-lá por completo
Ainda que esteja elegantemente paramentada
Pelos trajes da decência...

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domingo, 5 de maio de 2013

UMA ODE AO SANTA ISABEL...



Gosto do teatro pelo teatro. Gosto tanto do teatro que às vezes penso que o ator, que foi moldado para no palco do teatro pisar, é desnecessário, ou, quando necessário se torna é porque ao seu dispor está justo ele, o teatro, pronto a lhe servir como terreno de eloquências variadas. Melhor dizendo, é o ator que serve ao teatro, não o teatro que serve ao ator, porque o primeiro (o teatro) sempre será maior que o segundo (o ator). Ainda que o ator seja grande, será sempre menor que a imponência de um teatro, haja vista que o teatro carrega consigo todas as idiossincrasias das mágicas irreveladas, povoado por cantos e becos escuros que no passado serviram de esconderijo para figurinos e trecos cenográficos, acessórios sumidos, é verdade, mas vivos na pele dos fantasmas que habitam a sua história. Um teatro bom é um teatro repleto de fantasmas. Um teatro genuinamente bom é um teatro necessariamente antigo, velho, de séculos e séculos de jornadas, teatro onde gerações e mais gerações interpretaram nos seus tablados toda a sorte de textos dramáticos, das farsas mais rasgadas às tragédias mais sangrentas. Quando se pisa num teatro dessas proporções sente-se imediatamente o seu silêncio, uma espécie de respiração suspensa, uma sincopa no meio da sinfonia, pausa em que quem lá está se sabe observado pela plateia de artistas ancestrais, atentos por avaliar em quem chega a responsabilidade de levar adiante toda uma tradição, dignificando aquela mesma cortina de veludo vermelho gasto que não sei quantas vezes subiu e desceu, iniciando e terminando não sei quantos espetáculos lá atrás, tempos nos quais esses que agora chegam nem bem nascidos eram. Um ator é capaz de naufragar mediante à beleza de um teatro, tornando-se pequeno, menor, pouco atraente, mas, o teatro em si, esse nunca se rende, resiste bravamente dentro das suas fronteiras misteriosas, jamais sucumbindo às intercorrências de ânimo do melhor dos atores. Um teatro dessa magnitude já é o espetáculo. Deveria haver espetáculos nesses palcos sem que houvesse a presença de ator nenhum. A cortina subiria no meio da escuridão da sala, o palco seria revelado, todo ele vazio e sem presença humana, apenas banhado por luz. A isso, depois de nada acontecer, um ato inteiro poderia transcorrer, um ato todo mudo, mergulhado no mais abissal silêncio. A bem da verdade, não precisaríamos também de espectadores. Teatros dessa qualidade não precisam de ninguém. Teatros dessa dimensão são monumentos pulsantes que não pulsam com a mesma dinâmica do sangue que por nosso corpo circula. Esses teatros sobrevivem a despeito de nós, e, quando muito, somos nós que não compreendemos a magnitude de tais edifícios, denegrindo-os com essa nossa pequena soberba congênita, coisa típica que adoramos carregar como truque na manga. Eu presto minha reverência a esses teatros. E já falei muito. Se quiser entender o que digo, pise sozinho num desses palcos grandiosos. O resto é silêncio, o mais puro e espectral silêncio.

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OS IDIOTAS HILÁRIOS...


Idiotas hilários, é o que somos. Idiotas que riem de si, rindo e querendo com o riso fazer os outros, os tapados da plateia, rirem também. Rimos! Rimos desenfreadamente. E nessa audiência de gargantas gargalhantes, gargantas que gargalham como gralhas altissonantes, esperamos cumprir com essa máxima espetacular dos tempos que se seguem: estar vivo é estar pronto para se mostrar os dentes, esticando os lábios até limites extremos. Justo. Num mundo de tédio supremo, com gente tediosa a escoar pelo ralo, permeado por assuntos dos mais tediosos e desinteressantes, é justo imaginar que para se continuar a suportar a existência tal qual a construímos é urgente conseguir tremelicar de tanto rir. O entretenimento, no pior nível possível, é o que nos move. E nessa ribanceira das piadas sem graça despencam também os palhaços, ainda mais desprezíveis que aqueles a quem dirigem seus gracejos infantilóides. É a geração dos comediantes em pé, dos que se apresentam como comediantes, dos que se auto-intitulam ‘engraçados’ desse mundo para lá de sem graça, são os arautos da mediocridade institucionalizada, e, acreditem, são eles os responsáveis por lotar os teatros, por produzir uma legião aberrante de gralhas grasnantes, todas prontas para entregarem-se a esse exercício supremo de esvaziar a inteligência para preenchê-la com espasmos viris do baixo ventre. Ora pois! O que fizemos com a comédia? O que fizemos com esse gênero teatral que desde os primórdios andou de braços atados com a máscara triste da tragédia? Os palhaços de outrora eram os verdadeiros palhaços, os que faziam rir sem que rissem primeiro, deixando ao público a tarefa de processar o fino fio melancólico vertido por suas patéticas figuras. Chaplin era triste, o Gordo e o Magro eram tristes, até os Três Patetas carregavam suas lágrimas acumuladas... o que dizer então de Buster Keaton, sujeito que não esboçava uma única risada sequer? Todos comediantes, supremos e irresistíveis comediantes! Há um teor de absoluta potência na introspecção desses antigos palhaços. Há uma compreensão profunda do abismo humano ao qual nos metemos sem que houvesse contrato algum para ser assinado, e, nessa relação de assombro, é que o palhaço veste o seu nariz vermelho, como metáfora ao último grau de desespero ao qual a consciência pôde alcançar. Hoje rimos ao inverso, sem sentir peso algum, sem consciência de nada. Rimos irresponsavelmente, exatamente na mesma medida do vazio em que viramos.

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sexta-feira, 3 de maio de 2013

A ONDA...



A onda quebra agora
Espraiando sua crista de espuma branca
A mesma onda quebrava
Salpicando de sal os ares
Quando por esses mesmos mares
Primeira vista puseram os navegantes...
Hoje como antes
A mesma onda quebra
Espraiando de espuma branca o tempo
Ele que como o mar
Vai e vem
Custando a acabar
Varrendo e voltando
Para sempre a durar...
Ficando ficamos nós
Que da espuma branca levamos
No máximo ou apenas
Um singelo olhar...
Quantos não a viram,
E agora ver não podem mais?
E ela continua lá
A despeito de nós
Espumando a mesma espuma
Dos nossos ancestrais...

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UM DELITO DE VARANDA...



Se dessa varanda de mar houvesse jeito de roubar
Roubaria
Não a varanda
Quiçá o dia
Só com o mar, digo
É que ficaria
Ou melhor
Ele tampouco surrupiaria...
Essa coisa de maré-vem maré-vai
Entendia
É com a vista que me prendo
Com o horizonte sem prédio, gente, morro
Ou monte
De monte só o vento -
Esse sim deixo passar
E passando vou adiante
No crime que ainda não cometi
Eu
Prometido futuro meliante...
Se dessa varanda de mar houvesse jeito de roubar
Roubaria
Eu
Larápio de molduras ventantes
Em fuga alquebrado
Dono de um tesouro desenformado
No alto reinado desse meu
Flutuante
Mirante...

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