sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ODE AOS MARCIANOS!



O RÁDIO COMO CONTADOR DE ESTÓRIAS


Há exatos 70 anos, no ano de 1938, para ser ainda mais preciso, no dia 30 de outubro daquele ano, um americano qualquer que se dignasse a sintonizar o seu aparelho de rádio no dial da estação CBS tomaria um grande susto: um ataque marciano a terra estava em curso. Em pleno dia das bruxas – e na efervescência da expectativa pelo início da 2ª guerra mundial - entrava no ar a dramatização radiofônica do romance "A Guerra dos Mundos" de H.G. Wells, feita pela equipe do ator e diretor Orson Welles. A brincadeira era precedida por um aviso de que os fatos narrados não passavam de mera ficção mas, como era de se esperar, nem todos os ouvintes tiveram o espírito de ligar seus aparelhos de rádio a tempo de filtrar aquilo que ouviam de notícia por faz-de-conta. O resultado da galhofa radiofônica iria superar por muito o cenário imaginado pelos mais ambiciosos diretores dos blockbusters de ação do futuro: centenas de milhares de americanos desesperados com a invasão dos alienígenas verdes sairiam as ruas. Estradas lotadas de motoristas em fuga, corajosos fazendeiros empunhando suas escopetas terrenas, legiões de famílias em busca de esconderijos formariam o cast de figurantes dessa poderosa encenação levada a cabo unicamente pelas ondas do rádio.

Deixando de lado as implicações éticas da empreitada tragicômica de Welles, o exemplo nos oferece uma idéia magnífica do poder das sugestões sonoras como estímulo à imaginação. Cada ouvinte pintou para si um exército de cavalaria-verde e por ele se deixou impressionar, mesmo sem nunca o ter visto reproduzido por qualquer imagem. A imagem, porém, não deixou de existir – ela foi concebida e idealizada individualmente por cada ouvinte. É o que poderíamos chamar de um verdadeiro exercício autoral de criação.

E hoje? Será que o rádio dos tempos atuais mantém a mesma força de persuasão à imaginação? Difícil. Quem sintoniza o rádio nas grandes metrópoles não foge às toneladas de informações jornalísticas sobre trânsito, política e economia. O ouvinte de Welles que imaginara acompanhar uma cobertura jornalística da invasão marciana em Nova Iorque hoje não teria dúvidas: o que se ouve perdeu o sentido do mistério, os alienígenas estão todos domesticados, pintados da mesma forma e prontos para tomar o chá da tarde educadamente em nossa companhia. E mais, que efeito teria uma "Guerra dos Mundos" moderna? Caso um radialista espirituoso tomasse os microfones de uma grande emissora e anunciasse enfaticamente que ao planeta terra restaria apenas algumas horas de existência.... quem acreditaria? Para desmentir o delírio bastaria ao ouvinte abrir o flip do seu celular e conectá-lo às informações on-line, ou então levantar a tela do seu lap-top, quem sabe acionar o controle remoto da televisão... enfim, os marcianos estão em baixa. Nem mesmo o que é reconhecidamente ficção - novelas, filmes, seriados – consegue, na maioria das vezes, abrir espaço para um espectador criativo que se dá ao direito de imaginar a sua própria versão individual da aberração extraterrestre. A imagem, da maneira como ela é pensada nos meios de comunicação de massa, parece sepultar com pá de cal o mistério da incompletude do som.

Pensando em devolver à linguagem radiofônica um pouco do mistério perdido em favor da clarividência informativa, um grupo de radialistas recém formados resolveu unir esforços e seguir na tentativa de estruturar, adaptar e criar estórias a partir do som – voz, música, ruídos. A Boneco de Olinda Produções surge da vontade comum de elaborar uma dramaturgia sonora para incluir o ouvinte como parte ativa dentro do processo criativo. A nós cabe a monumental tarefa de oferecer novamente a possibilidade do assombrar-se com algo desconhecido e obscuro (o som) e deixar a seu cargo, caro ouvinte, o desafio de enfrentar a sua própria imaginação. Sejam bem-vindos todos os extraterrestres verdes... azuis, rosas, roxos, brancos, pretos, amarelos....

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

COMPAREÇAM!

***ESTRÉIA***

"RÉQUIEM" - De Hanoch Levin

de 27 de Janeiro a 5 de Março - Centro Cultural São Paulo.

Um conto de fadas sobre a morte. Baseado em três contos do autor russo Anton Tchekhov, narra encontros e desencontros de diversos personagens em busca da felicidade, da cura ou do tempo perdido. Terça a quinta, às 21h - R$10,00 (a bilheteria será aberta com uma hora de antecedência) - preço popular: dia 3/2 (R$2,00) - Sala Jardel Filho (324 lugares).

direção: Francisco Medeiros

tradução: Priscila Herrerias, com a colaboração de Dinah Feldman,Francisco Medeiros, Lílian Froiman e Pablo Ferreira -

elenco: André Blumenschein, Chico Carvalho, Dinah Feldman, Fabrício Licursi, Felipe Schermann, Fernanda Viacava e Priscilla Herrerias.

POR QUE CAPITU NÃO ME TRAIU?


Agora virou regra... se bem que, confesso, posso estar equivocado ou mesmo ligeiramente embriagado, culpa, talvez, da névoa festiva que nessa época natalina mistura champagne com uva passa. Esteja eu ébrio ou sóbrio, não importa, o fato parece-me repetir aos olhos: todo ano tem o seu Janeiro marcado pela estréia glamurosa do Big Brother Brasil enquanto a saideira do mesmo período, lá pelas bandas de dezembro, eis que surge Luiz Fernando Carvalho com mais uma de suas minisséries-cabeça. Como um corpo que inicia pela ponta dos cabelos e termina na unha do dedão do pé, ambos os extremos, BBB e Capitu, desfilam tão desconexos que não fosse o recheio dos órgãos para uní-los diria que são tão estrangeiros quanto o calendário chinês que não fala a mesma língua do nosso companheiro Gregoriano.

Capitu estreou e com ela a doce sensação de que a dramaturgia brasileira ganha um respiro de poesia pelas mãos habilidosas de Carvalho. Somente a premissa de adaptar obras literárias para as telas globais, já tão modorrentas pela velha e moribunda ladainha folhetinesca, mereceria louvores do Olimpo. Zeus está feliz e eu também estou. Para aqueles que avaliam o esforço de Carvalho como hermético e distante da compreensão da grande massa, saibam que essa é, ao meu ver, uma das maiores qualidades desse grande artista contador-de-estórias. Isso porque o sentido da criação não vem antes das tabulações estatísticas que garantem o que o grande povo quer ver e, portanto, vai consumir. Consumo, eis a moeda de barganha que Luiz Fernando Carvalho faz questão de se distanciar. Capitu não existe para ser comprada, mastigada, deglutida e defecada como a grande parte dos pacotes-laxante da dramaturgia brasileira.

O exercício para acompanhar Capitu é maior, exige tempo, tempo para contemplar. E quando esse estágio de fruição é alcançado – não sem uma certa dose de sensibilidade – a menina de olhos oblíquos e dissimulados não se apaga da nossa mente como acontece na maioria das experiências “pseudo-estéticas” de hoje. Capitu permanece e junto com ela o maravilhoso tratamento cenográfico e musical de toda a minissérie. Isso sem contar a performance dos atores. A poesia aqui ganha pelo ritmo da montagem, pelas sombras impressas no rosto das personagens, pela combinação de um texto magistral com a ousadia de torná-lo audível em um suporte inimaginável pelo nosso Bruxo maior do Cosme Velho. Capitu é difícil? Claro que é... e quem disse que a poesia tem de ser fácil? Mais um de nossos bichinhos de estimação devidamente tosados e comportados? “Dê a pata!” Luiz não dá! “Rola no chão” Capitu, galhofeira, ri com o canto da boca. Não, a preguiça da obediência não faz parte do universo da arte, muito menos é materia prima da poesia. Carvalho acerta pelo incômodo e ganha pela clareza do que quer: contar uma estória, tão somente.

Janeiro está aí e na rabeira dele eis que vem o BBB. Reparem! Um celeiro de novos talentos para as novelas televisivas. Uma indústria da repetição de padrões eleitos pelos publicitários marketeiros. A ordem é reverter em dinheiro o sotaque caipira das modelos de talento dramático. E que drama! Como a linda Grazi Massafera sabe chorar! O público, narcotizado, mal se dá conta de que dá a volta em círculos em um roteiro que prima pelo conforto: “sinta-se em casa e espie a vontade”. O mundo é belo e cheio de alegrias, para que escurecer o cenário? Misturar rock com Villa-Lobos? Qual o sentido disso? Linguagem empolada, difícil... ai que preguiça!

Capitu já passou mas ficou na lembrança. Imprimir memória, estimular experiências... eu prefiro o complicado dos olhos dissimulados e oblíquos do que a torrente de lágrimas verborrágicas e fáceis. Viva Luiz Fernando Carvalho!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

(RE)CONEXÃO

O homem mais forte é aquele que está mais só.

Começo pelo fim, pela última frase proferida pelo Dr Sotckman, personagem criado por Henrik Ibsen (1828 – 1906) em sua obra prima da dramaturgia universal, O Inimigo do Povo. O desligar dos refletores combinado com o movimento final da cortina decretam o encerramento do espetáculo. A frase decisiva, no entanto, permanece a ecoar pelo espaço, agora preenchido pelas luzes frias da platéia. Enquanto o público caminha calmamente em direção a porta de saída, recobrando a cada passo a inelutável consciência da realidade, o palco mergulha na penumbra, torna-se vazio e quieto anuncia o término da ilusão. Nos camarins os atores desvestem-se e tornam a vestir, agora aprumados para enfrentar o mesmo cenário em que o espectador atua como protagonista. O teatro permanece no silêncio absoluto e é justamente nesse vácuo de estímulos que é preciso fazer retornar o homem, não o ator travestido de personagem, mas o espectador, aquele que de forma intuitiva procurou as luzes da realidade enquanto dava as costas para o palco já sem vida. Posicioná-lo sob o tablado, sozinho, sem disfarces ou máscaras e confrontá-lo com uma imensidão de fileiras de cadeiras vazias, eis o desafio.

O que é mais angustiante, ver-se sozinho defronte um espaço absolutamente desabitado ou notar-se como o centro das atenções de uma platéia repleta de semelhantes? A solidão parece mais convidativa em um primeiro momento já que a dúvida de o que fazer? causada pelo embaraço de ser apontado estaria eliminada. Atuar como protagonista nunca é fácil, melhor seria optar por compor como mais um rosto na platéia – aquele que sequer necessita ser notado – e se o destaque fosse algo inevitável que coubesse ao menos um papel menor, um coadjuvante, talvez um figurante. O ideal seria permanecer só, livre dos olhares alheios. Voltamos então a primeira opção.

Ficar a sós é perceber a si próprio como possibilidade, como potência. Antes, no entanto, faz-se necessário se conhecer e, para tal, não há outra alternativa a não ser colocar-se em experiência, em ação. O espectador abandonado sobre o tablado experimenta, longe dos olhares curiosos, a angústia que figura como matéria prima do trabalho do ator: a dúvida, o vazio. O ensaio funciona para o ator como um laboratório de experimentos em que o saber racional deve ser necessariamente convertido em saber sensível, em pulsação em forma de matéria. Aquilo que se sabe não é suficiente para tornar vivo algo que se queira expressar e, portanto, é imprescindível que o conhecimento acumulado seja desprezado em favor da dúvida, da insegurança de tentar traduzi-lo através de um mecanismo físico-corporal. O corpo deve ser colocado a prova para que o conhecimento se transforme em sensação e a partir daí conferir legitimidade aquilo que antes se apresentava como hipótese. Esse processo, experimental por excelência, contesta permanentemente os resultados alcançados e os força a serem colocados a prova tantas vezes quanto o ator decidir apresentá-los ao espectador. O ator não pensa em cena, o ator age. O que o espectador observa não é senão o ator em ação. O pensamento, as abstrações, as conjecturas, as elucubrações são todas ferramentas importantes, mas não para o ator que posta-se defronte ao público. O pensar do ator se faz em movimento, em gesto e por isso mesmo seu ato não resume-se as fronteiras do intelecto, mais do que isso, o ator pensa com (e para) o corpo. A palavra, veículo da idéia, não reina soberana através da articulação verbal mas, ao contrário, prescinde de todo o organismo corporal – mãos, braços, tronco, ventre, etc – para que o que é dito se torne plausível e verdadeiro aos olhos de quem vê. Um simples tonos muscular desatento ao conteúdo de uma frase seria suficiente para destruir toda a tese de uma idéia e levar o espectador a duvidar da personagem. Nesse caso o ator falha por desconsiderar o corpo como canal e veículo de construção de significados. Não é portanto falso afirmar que o dedo do ator estava em concordância com o rosto ou que, infelizmente, os joelhos não souberam transmitir corretamente a mensagem tão bem articulada pelo direcionamento do olhar. O organismo é quem pensa e quando é possível identificá-lo como agente expressivo naturalmente desviamos o olhar daquele ator verborrágico que ainda defende seu lugar ao púlpito da oratória. Uma vez que a palavra complementa o corporal ela própria se torna corpo, transformando a idéia em matéria visível aos olhos. Por conseguinte, o corpo vivo aproveita a idéia proferida pelo intelecto como combustível para fazer da imaterialidade algo possível de ser compreendido pelos sentidos. A razão do artista, dessa forma, não está condicionada a um forçoso exercício conceitual que esgota-se em seu próprio ofício de pensar. O ator, assim como todo e qualquer verdadeiro artista, transmite e constrói seus pensamentos pelo sensível – através do corpo – que torna-se visível no espaço, a disposição de todo aquele que esteja disponível para absorvê-lo. O conceito, a idéia, a atividade intelectual pura e simples não pode ser descartada porém esse departamento só poderá ser trabalhado enquanto tal pelo espectador na platéia. Enquanto o ator pensa agindo o espectador processa tais movimentos para construir o seu pensamento racional, aquele que não pressupõe o levantar da cadeira para ser viabilizado. Façamos, pois, uma pequena consideração. Na medida em que somos inevitavelmente indivíduos diferentes – a própria palavra indivíduo já denota a especificidade do sentido de único – diferença essa que pode ser confirmada simplesmente através da análise da superfície corporal que atua como impressão distinta de pessoa para pessoa, seria de se esperar que o processamento racional também resultasse em um produto autêntico e distinto. Uma vez que o intelecto é parte integrante do corpo, não há porque duvidar de tal assertiva. Assim como o desempenho de dois atores levará ao espectador duas versões diferentes de Hamlet, visto que o trabalho corporal de cada um delimitará a maneira como a interpretação e o entendimento serão conduzidos, os diferentes espectadores também farão uso de suas especificidades como filtro de suas respectivas ponderações racionais. Essa teoria é pressuposto básico quando tratamos do campo da arte. Compete-nos, no entanto, evitar adentrar no estudo semiótico das significações, o que nos levaria a outros horizontes para somente identificar que a arte, enquanto expressão e também terreno de construção de conhecimentos, trabalha com o instrumental sensível (o que inclui o raciocinar como parte integrante do sentir) para produzir diversas leituras únicas de um mesmo tema abordado. Porém, o que funciona dentro do âmbito artístico parece não fazer efeito em grande parte do contexto da vida cotidiana.

No distante século XVII, período em que os atores ainda eram parcamente iluminados pelas chamas de velas, um distinto espectador de nome René Descartes (1596-1650) levantou-se de sua poltrona interrompendo o espetáculo e bradou em alto e bom som: liberdade ao intelecto. Dito e feito. O argumento era simples e, de certa forma, coadunava-se com o princípio por ele encampado: a idéia deve prevalecer como método para que o corpo responda de forma eficaz e única ao seu estímulo. O restante do público passou, então, a receber cartilhas explicativas que traçavam o percurso dos atores que, agora, já não mostravam-se tão surpreendentes em suas performances. O mistério fora solucionado e bastava um treinamento racional para antecipar as surpresas do acaso e, sobretudo, eliminá-las em função da precisão do raciocínio. As diferenças de interpretações não importavam mais já que o urgente estava em uma compreensão unívoca do que ocorria em cima do palco, recurso esse que possibilitava uma unidade sólida de sentidos. As especificidades abriam caminho para a totalidade que, quando originada a partir de um argumento preciso, não deixava margens para contestações. Deste momento em diante o corpo desligou-se do intelecto que sem cerimônias passou a figurar como único protagonista. A platéia transformou-se em claque, as sensações tornaram-se previsíveis e o ator desvestiu sua máscara para palestrar aos novos pupilos de rosto nu, sem disfarces. Ele próprio, o artista, elevou o verbo como instrumento pregador de teorias e disciplinas. Todos entendiam tudo graças a fórmulas e procedimentos anteriormente elaborados. Estava oficialmente inaugurada a ciência moderna, espetáculo que ainda hoje em cartaz arrebata multidões para as salas de apresentação.

Tal mudança de eixos é justificada a partir do desejo incontrolável de se alcançar a verdade dos fatos. Chegar até a verdade pressupõe a instauração de consensos que, por sua vez, possibilitaria a união de forças em uma direção já programada. O terreno fértil das abstrações ganhou força sob os auspícios do progresso culminando com o império glorioso da tecnologia. Não vamos pois, com o perdão da semântica, negar os inegáveis benefícios da ciência. Imaginemos que para empurrar um caminhão pesado sejam necessárias várias mãos. O importante é levá-lo até o topo da colina e, para isso, nenhum sacrifício deve ser poupado sob pena de a recusa implicar a privação dos benefícios provenientes do usufruto da carga do veículo. Acontece que, por alguma ironia do destino, as mãos que empurram o caminhão não conhecem ou não fazem a menor idéia do que consiste o conteúdo dessa carga que tanto peso produz. O motorista, porém, de posse de uma retórica afiada consegue incutir na consciência daqueles ignorantes que o peso que ajudam a empurrar será de grande valia para suas vidas. Está formado o consenso: é necessário empregar uma certa quantidade de força física em uma mesma direção para que o objetivo seja alcançado. Simples e dirteto, sem margens para contestações. A idéia e o raciocínio sobrepõem o esforço brutal que o organismo é obrigado a fazer com vistas a uma recompensa futura. Ocorre que, de fato, o produto dessa carga, depois de distribuído aos operários braçais, transmite um certo alívio no que se refere ao custo benefício de tê-la empurrado por horas a fio mas, por outro lado, ninguém cogita o porquê de o caminhão não ter feito uso de seus motores para que o trajeto até a colina poupasse o suor dos homens. Talvez o real sentido de todo esse esforço não estivesse na distribuição da carga para aqueles que a ajudaram a empurrar mas sim na sagacidade do motorista que precisava economizar combustível – e que dispunha de uma carga dispensável unicamente como subterfúgio para alcançar o seu intento. A esperteza do condutor está em submeter o músculo dos trabalhadores a uma recompensa forjada pela idéia de seu valor. Enquanto o corpo padece, mesmo com todos os sinais visíveis de que o peso supera a possibilidade de transpô-lo, o sentido último da recompensa faz anestesiar as respostas corporais. A viagem segue tranqüila e todos, aparentemente, satisfazem-se com o que receberam.

A dominação sobre o homem se dá pela consciência. O corpo não é capaz de mentir porque ele próprio reconhece antes mesmo de a razão querer compreender que aquilo que o faz mal deve ser evitado. Não é preciso submetê-lo a cartilhas explicativas para que o corpo entenda que a aproximação da mão ao fogo pressupõe um prejuízo certo. O domínio racional, por outro lado, uma vez separado das conexões nervosas que o compõem como saber sensível sabota a si próprio na crença de que o seu exercício intelectivo pode superar as aflições da carne ou, ainda pior, justificá-las. Aquilo que é estritamente conceitual, ou seja, formulado a partir de mecanismos argumentativos encerrados no campo da abstração, consegue mais facilmente obter consensos porque no instante em que a razão abandona sua necessidade de se espelhar no espaço como matéria sensível ela própria passa a se auto intitular como verdade única. Uma verdade, diga-se de passagem, relativa e tendenciosa, normalmente justificável apenas como desejo pessoal de quem a formulou. E quando a referência passa a ser aquilo que é dito e não vivido qualquer um com alguma habilidade discursiva está apto a reunir ao seu redor legiões e mais legiões de trabalhadores braçais que, por alguma defasagem de conhecimento sensível, cedem as tentações do discurso. O que é tido como absoluto, incontestável, irrevogável só adquire esse status de inviolabilidade dentro da esfera das idéias já que a consistência da matéria é por natureza transitória. E a vida, enquanto resultado de um ciclo contínuo de movimentos, se dá a partir e através da matéria. O corpo – representante supremo da vida em forma de matéria, por obediência as conjecturas conclusivas da razão instrumental, atrofia seu registro sensível em função de estímulos mecânicos que processam tecnicamente as mensagens do intelecto. O organismo deixa de pensar para simplesmente responder. Corpo e mente separados tendem a afastar o sujeito de sua própria essência, aquela que não pode ser compreendida senão pela multiplicidade de fatores que a fazem funcionar. A especialização técnica decreta a morte do sapateiro que antes detinha a sabedoria e a sensibilidade para produzir sapatos, respeitando todas as etapas de seu ofício – desde o recorte do couro até a amarração dos cadarços – como estágios complementares de uma criação única. A produção em série, mascarada em forma de progresso, eleva ao palco o ator falastrão que julga-se no poder de arrebatar multidões pelo intermédio de números pré fabricados. E o seu sucesso é a prova de que o espectador também perdeu a referência de como reconhecer e reagir como organismo vivo. É preciso tomar o caminho de volta e, para tanto, a arte e a educação aparecem como trilhas indispensáveis em direção ao destino de (re)conexão entre corpo-mente.

Arte e educação, ambos departamentos supremos da expressão humana, levada a cabo através da construção de conhecimentos, tem como importante qualidade a inclusão do indivíduo como elemento primordial dentro do seu processo de funcionamento. O trabalhador braçal, aquele que responde anestesiado ao apelo sedutor da abstração, é pinçado para fora de seu torpor inconsciente e, através da recusa ao consenso, principia uma jornada solitária em busca dos sentidos e significados individuais que o fazem reconhecer humano. Esse percurso, no entanto, só encontra terreno fértil caso o pensar seja viabilizado a partir de uma perspectiva sensível em que aquele que se dispõe a jornada possa trilhar ele próprio o seu caminho, experenciando em cada paragem a aplicação prática daquilo que lhe é oferecido como disciplina em sua própria trajetória de vida. Dessa maneira, a arte e a educação transformam-se em ferramentas emancipadoras para que o indivíduo prevaleça sobre qualquer tipo de consenso abstrato, normalmente sob a forma de teorias ou leis universais. O indivíduo emancipado não acumula conclusões e muito menos intenta divulgá-las como fórmulas da verdade, ao contrário, verifica a procedência do que é dito para que uma idéia só faça sentido quando engendrada dentro de um universo particular. Tem-se, portanto, um indivíduo na verdadeira acepção da palavra que, ao inverso do que se possa imaginar, não recolhe-se em suas convicções mas abre-se para o mundo através do que ele pode lhe oferecer enquanto possibilidades. Retornamos a Ibsen:

O homem mais forte é aquele que está mais só.

Porém, ao mesmo tempo em que uma vacina tem a propriedade de proteger o organismo das mazelas da doença, uma dose desmedida de seu conteúdo pode produzir o efeito contrário e causar os prejuízos a que se propunha evitar. A palavra grega “Pharmacon”, seguindo o mesmo raciocínio, reúne na mesma raiz semântica dois significados possíveis e distintos: antídoto e veneno. Arte e a educação apresentam-se como ferramentas capazes de impedir o embrutecimento do homem através do resgate entre o vínculo lógico-abstrato dos conceitos gerais e o universo material-sensível particular. O perigo não está na “dose” de arte administrada ou na quantidade de exposição a que o indivíduo se submete aos métodos de ensino. A bem da verdade, por influência de um mercado capitalista que enxerga o dinheiro como fim último de qualquer esforço plausível, artistas e educadores podem facilmente mascarar a urgência de satisfazer vaidades pessoais através de uma pretensa forma de expressão orgânica e viva. Ao seguir por essa via de conduta, arte e educação reforçam a clausura do corpo em um invólucro sensório, mas não sensível, que não faz outra coisa a não ser reverenciar conceitos abstratos da moda contemporânea, tais como, dinheiro, fama, sucesso, destaque, beleza física, etc. Professores transformam as cátedras em consultório de terapia na tentativa, sempre frustrada, de reverterem a falta de auto estima roubada pelo mercado. Os alunos, por sua vez, mergulham na anestesia de um ambiente destituído de interesse para somente cumprir etapas até recolherem suas recompensas em forma de diplomas. O ator desfila em cima do palco o seu virtuosismo técnico que, ao fim, serve tão somente para fazer ressoar os aplausos dos espectadores, já há muito distantes de qualquer aproximação sensível com o que é visto. Enquanto os aparatos de malabarismo são guardados no camarim, o público retorna para casa satisfeito por ter consumido cultura. A medida em que a arte e a educação adquirem o status de moeda de troca todo o esforço por incluir o indivíduo dentro de um ambiente de (re)conexão com o seu universo de conhecimento sensível é desperdiçado.

A arte, por princípio, não segue os preceitos da utilidade. A expressão artística não deve ser justificada por outra coisa senão por ela própria. O ator que arrebata a platéia com sua emoção só alcança esse estado de comunhão porque o que importa para ele é o momento da criação, o instante da entrega que eleva sua arte como expressão suprema. Questionamentos tais como, para quê? Como? Por intermédio de que? desmancham-se em razão da presentificação de um corpo repleto de sentidos que faz-se compreender por si só, em movimento. O saber sensível, instrumento básico do ator vivo, não precisa de ponderações externas que o regule em suas ações porque o motivo de sua aplicação é particular e torna-se presente a cada instante, sem tabulações programáticas. A regra, o modelo, a técnica conceitual não servem como verdades em um terreno em que as decisões são tomadas em movimento e a partir da ocorrência dos acontecimentos. O esforço é contrário ao de estabelecer princípios gerais norteadores da conduta humana, prefere, por sua vez, destacar a singularidade do efêmero e, a partir dele, quem sabe, chegar a identificar algo de semelhante que componha a essência do humano. O ator orgânico é aquele que convida o espectador a jogar o seu jogo mostrando-o como elemento semelhante a partir do que ele lhe oferece como íntimo e particular. O processo de produção de conhecimentos se dá em ação, em experiência e o que é absorvido passa a figurar para cada espectador como possibilidade de relação com o seu universo individual. O ator, em contrapartida, recebe do espectador a sua resposta instantânea que, ainda em ação, é aproveitada como matéria prima para a continuidade de sua performance. O que é construído entre artista e público torna-se sagrado porque figura-se como único, impossível de ser reproduzido nos mesmos moldes. O tempo, ao invés de cristalizar verdades e servir como parâmetro para repetições de caminhos já percorridos, reinventa-se para acolher novos personagens dispostos a jogar com sua própria precariedade. O verdadeiro mestre é aquele que, tal como o ator, não teme adentrar o terreno do desconhecido e abre espaço para que o estudante também experimente vestir o papel de professor. O exercício da instrução, da doutrinação é o que leva a morte do espírito de ambos, aluno e professor, transformando-os em operários do saber técnico, abstrato.

Ator e professor são agentes de discursos que fazem uso da palavra, do verbo, enquanto instrumento de comunicação. A linguagem é por natureza um conjunto de vocábulos que tem na abstração seu ponto de sustentação para tornar mais próximo o homem do mundo que o cerca. A idéia, o conceito, só faz sentido quando verificada e colocada a prova e, para tanto, não há outra alternativa a não ser transportar a erudição elucubrativa (o primeiro passo pode ser perder o receio de inventar palavras extravagantes que não figuram nos dicionários oficiais da língua portuguesa) para o mundo dos sentidos. Antes do cerrar das cortinas, observemos o espectador corajoso que subiu ao palco. Tudo em silêncio, nenhum refletor em funcionamento. Os atores já desceram ao camarim e o restante do público já se foi. O olhar percorre as fileiras desocupadas e depois aponta para o cenário que a instantes atrás acolhia um universo inteiro. Cada respiração expande e dilata o corpo e o faz perceber vivo, cada movimento ganha proporções enormes. O que fazer agora? Ele não sabe, mas não há problemas em não saber, muito pelo contrário, basta prosseguir.



Francisco Carvalho. Dezembro / 2007.

domingo, 11 de novembro de 2007

QUANDO UM DIPLOMA VIRA UM ATESTADO DE DEMÊNCIA VOLUNTÁRIA!


E lá foram-se 4 anos!

"Caros alunos do 4°RTV-A e 4°RTV-C,


O Setor de Operações da TV Gazeta está oferecendo vagas para alunos de Rádio e Televisão da Cásper Líbero que estiverem se formando em 2007. Não se trata de estágio! São vagas com carteira assinada e benefícios para atividades nas áreas:

· Operador de VT, Editor de VT (linear e não linear), Operador de Câmera (de estúdio e de externa), Auxiliar de Câmera de (de estúdio e de externa), Iluminador


Será feita uma apresentação dessa proposta nos dias:

P/ 4°RTVA: 13/11- (terça-feira- período da manhã)- às 09h30

e

P/4°RTVC: - 14/11- (Quarta-feira-período da noite) - às 20h30


A apresentação será na própria sala de aula (sala 4 do 3°Andar) com a presença do Gerente deOperações da TV Gazeta, Fábio Rolfo, o professor Marco Vale e um representante do R.H. da Fundação.

Não percam! Trata-se de uma excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que vocês se prepararam por quase 4 anos.
Atenciosamente,


Prof. Marco Vale
Coordenador de Ensino do Curso de Rádio e Televisão"

URGENTE! FUTURO PROFISSIONAL EM JOGO!


Para a Coordenadoria de RTv e ao nosso Orientador do Curso,

Gostaria de saber se mesmo eu, que faltei nas aulas de como segurar cabo - ofício de cabo-man, poderia me candidatar a vaga de auxiliar de câmera anunciada pelo nosso orientador do curso. Sei que terei de demonstrar talento, perícia e, principalmente preparo intelectual (criativo e artístico) para desempenhar a função mas, acredito, mesmo que deficiente na técnica, tenho todo respaldo acumulado pela bagagem cultural oferecida pela nossa faculdade. Acho que dou conta. Caso não possa me candidatar a esse emprego em específico, gostaria de saber se tenho direito a concorrer aquela vaga de camera-man. Não me lembro de ter frequentado a disciplina: "Ei, como faz pra ligar a câmera aí"? mas também acho que posso oferecer um trabalho qualificado - de um quase recém-formado em um curso superior, basta que alguém me ensine onde é que fica o "REC" do aparelho. Quanto ao resto, se me contratarem para ser o câmera-man do programa "Mulheres", acho que não terei problemas com a minha tremedeira congênita, fiquei sabendo que lá eles usam tripé para segurar a câmera, é verdade? Isso me tranquiliza mas, ao mesmo tempo, fico com medo de que o câmera-man que faça uso do tripé necessite de um curso de extensão (ou mesmo de mestrado) para exercer o ofício. Nesse caso eu não estou qualificado, infelizmente. Enfim, me respondam por favor. Eu garanto que sou o profissional ideal para a filosofia da empresa: tenho vontade, dedicação e, um dia, quero chegar ao topo: ainda vou curar os erros de concordância da Palmirinha.

Grato.

Francisco Carvalho, o quase-recém formado em busca de uma "excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que EU ME PREPAREI por quase 4 anos".

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Tropa de Elite

mais um ótimo artigo de Bernardo Carvalho.

Fracasso do pensamento

Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia, é lógico que o bom senso não tem vez.

UM MUNDO sem reflexão, onde a violência da realidade obriga o sujeito a deixar de pensar para agir, cedendo ao senso comum, ao simplismo e ao pragmatismo cínico, recorrendo ao preconceito e a ações impensadas que antes ele condenava, quando essa mesma realidade ainda não o atingia diretamente e ele podia repetir belas teorias da boca para fora, não é um mundo menos hipócrita (como alguns gostariam), é um mundo pior. Um mundo sem arte (no qual a arte, aceitando a pecha de ilusão e perfumaria, cede ao consenso da realidade e passa a funcionar como jornalismo e sociologia) também.É nesse mundo desiludido que a representação de jovens tolos e inconseqüentes, repetindo Foucault da boca para fora, para acabar quebrando a cara na prática contraditória do trato direto com a realidade nua e crua, passa a ter um efeito catártico junto a platéias em busca de um bode expiatório.É desse mundo (o do fracasso do pensamento) que trata "Tropa de Elite": onde só é permitido escapar à violência (e deixar de ser violento) fora da realidade -tudo o que o capitão Nascimento quer, ou diz querer, é sair desse mundo (onde quem pára para pensar morre), para poder cuidar em paz do filho e da família.Gostei do filme, embora tivesse preferido o longa-metragem anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus 174". Não acho o filme fascista. Mas é inegável que, como qualquer representação da realidade, ele tem um discurso (que não é exatamente o mesmo do capitão Nascimento), a despeito de dizer que se limita a mostrar a realidade. E não é um discurso novo. É o discurso de um realismo funcional que volta e meia reaparece para dizer que a realidade é o que é. E que só os fatos (ali representados) contam.Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia (e em que a arte se esconde como discurso para se apresentar como espelho de uma realidade unívoca), é lógico que o bom senso não tem vez. A demagogia e a ira, sim. É preto no branco. Produção de subjetividade é coisa de elite irresponsável. Aqui, nós tratamos de fatos objetivos.Com o desbaratamento das idéias, este passa a ser um mundo de polarizações em torno de questões simplistas e indiscutíveis. Não se produz pensamento; tomam-se partidos. Vozes da ponderação e do conhecimento de causa -como a de Alba Zaluar, que exercita o bom senso semanalmente e sem maiores alardes nas páginas deste jornal- vão se tornando inaudíveis em meio ao bruaá dos lugares-comuns estridentes. O bom senso não aparece, porque não tem graça nem dá manchete. As idéias foram reduzidas a representações sociais. Basta que cada um fale e seja reconhecido como representante do seu grupo social (e que muitas vezes se aproveite disso para respaldar a banalidade ou a demagogia do que diz). O que conta não é o teor das idéias (em geral, as mais simplistas), mas que sirvam para identificar o lugar social de quem as manifesta no campo de batalha. Essa aparente desordem apenas encobre uma ordem geral, o consenso em torno da realidade como um campo de forças autônomo, um teatro de ação e reação, imune à reflexão e à inteligência.Foi em meio a esse contexto que bati com os olhos na recém-publicada edição espanhola dos artigos e palestras do dramaturgo francês Enzo Cormann: "Para que Serve o Teatro?" (Universidade de Valência). Na conferência de 2001 que dá título à coletânea, o autor diz que o teatro (e de resto toda arte que se preze), por ser reflexão, "consiste em reinjetar subjetividade num corpo social entrevado pelo uniforme demasiado estreito do pragmatismo econômico" -ou (por que não?) do realismo oportunista que reivindica para si uma pretensa objetividade, condenando ao mesmo tempo toda produção subjetiva à impotência e ao ridículo, como se dela não fizesse parte.Em nome de uma representação unívoca da realidade, o discurso embutido em "Tropa de Elite" (que não se assume como discurso) limita a própria possibilidade de produção de subjetividade a quem está fora desse mundo, ao diletantismo ridicularizado de estudantes inconseqüentes. Ao associar a produção de subjetividade aos ricos, aos tolos e aos irresponsáveis, como se tampouco estivesse produzindo subjetividade, o filme acaba, provavelmente sem perceber, dando um tiro no próprio pé, pois contribui para estreitar o entendimento do que num passado não muito remoto, e graças ao esforço e à resistência de grandes cineastas, garantiu ao cinema um lugar entre as artes, justamente como produção de subjetividade.

Folha - ilustrada - 6/11