quarta-feira, 6 de junho de 2012

Há um pilantra dentro de nós...



Sou um pilantra. Como prova irrefutável dessa minha qualidade, entrego ao seu conhecimento, caro leitor, as minhas duas nobres ocupações profissionais. Sou ator e professor. Justamente as duas maiores cátedras PhD no exercício da pilantrice aguda. O primeiro finge que acredita para produzir verdade naquilo que não existe. O segundo acredita que ensina o que é impossível conhecer na esperança de que os outros entendam o que ele próprio desconhece. Só sei que nada sei. Depois de Sócrates ninguém mais deveria ter coragem de voltar do recreio para assistir a aula de química! E por falar em química, até hoje não faço a menor ideia do que seja 1 mol! Você sabe o que raios é 1 mol, caro leitor? Quem nunca passou noites em claro a queimar miolos na esperança de entender a maldita fórmula do mol, para ao final da prova continuar na mais profunda ignorância a respeito da utilidade metafísica desse número maçônico? A maçonaria deve ter surgido ao redor desse mistério transcendental. E de dentro da maçonaria apareceu a teoria de que o Ronaldinho Gaúcho joga futebol. Outro mistério insolúvel que nos acompanha até os dias atuais. Tenho a impressão de que o enigma da esfinge é exatamente esse: ‘Para que raios serve um mol, reles mortal? Decifra-me ou devoro-te!’. Quem souber a resposta desbanca o Rei Édipo no comando de Tebas ou então vira imediatamente um Buda iluminado, desses que tomam chá verde no cume de algum morro do Tibete na companhia do Dalai Lama. Antes disso, só fazendo muita aula de ioga para dar conta de equilibrar tamanha carga de ignorância. Quem tenta remar na contramão da ignorância recebe de imediato o diploma de bacharel da cafajestagem. Cafajeste é diferente de pilantra. O cafajeste acredita no sucesso do seu empreendimento. O pilantra constrói o edifício já com o dedo no botão da demolição. No rumo da cafajestagem, ator e o professor andam no sentido contrário. O ator e o professor exercitam a fraude, não o sucesso. Ser ou não ser, eis a questão. Pois é. Sou uma fraude. Mas veja bem, minha fraude é um atributo da minha capacidade de ler o mundo, não uma contingência do meu caráter. Porque pilantragem de caráter não é motivo de orgulho algum. Pilantragem de caráter é moeda comum. No cardápio diário, a pilantragem vem no prato como arroz e feijão. Honestidade é outra coisa. Honestidade é corte nobre. Honestidade é filé mignon. Nem todos são honestos, mas pilantras somos todos, incluindo os poucos honestos. Ninguém nasce livre da pilantragem. É como nascer sem esqueleto. Sem esqueleto não há possibilidade de vida humana. Tirem-me o esqueleto e eu perco num estalo de dedos a capacidade de digitar essas linhas profundamente sábias. Não faça essa cara de quem adoraria ver para crer, caro leitor! Não conspire a favor da fuga repentina do meu fêmur e de seus companheiros ossudos! Quem perderia mais com isso seria você. Você e o mundo. Tudo ficaria mais cinza e mais árido, com menos poesia! Mas eu resisto! Vá desossar o frango do seu almoço e me deixe em paz! Mas, como eu ia dizendo, os alicerces são fundamentais. No nosso caso, a pilantragem é o que nos mantém erguidos. O esqueleto moral. Se nos fosse possível safar dessa triste sina, escolheríamos não abandonar esse resort chamado terra ao cabo de algumas poucas temporadas. Quando a diária chega ao fim não há gerente que apareça para escutar nossos clamorosos pedidos de prorrogação das férias. A vida é uma gincana de pilantrices. A prova disso é que ela não dura. Nesse caso, uma pedra é mais digna e honesta que você, caro leitor. A pedra resiste ao tempo, custe o que custar. Você poderia refutar dizendo que a pedra não filosofa, por isso é infinitamente menos merecedora da dignidade que carregamos. É verdade. Mas filosofar a troco de quê, pode me dizer? Já vimos que a busca sagrada pela resposta do santo-mol não nos leva a lugar algum. Alguma coisa de reconhecida relevância foi descoberta desde que o homem deixou de arrastar sua mulher pelos cabelos para dentro das cavernas? Não estou computando o Steve Jobs nessa parada nem o seu olhar sedento para os mais recentes e notáveis inutensílios tecnológicos. Um ipad ou uma máquina de xerox não aliviam em nada a pilantragem da nossa condição. Ao contrário. Enchem-nos de novos desejos para em seguida ceifá-los sem dó nem piedade. Quanto mais purpurina, maior a ressaca ao final da festa. São por essas razões que um pilantra de ofício se dá bem. O pilantra de ofício tem por princípio desconfiar daquilo que faz, compreendendo a impossibilidade de ter sucesso numa vida fadada ao limbo do esquecimento. Conhecer pressupõe fracassar. Não há outra medida possível senão essa. O pilantra de ofício sabe que suas palavras são como pétalas lançadas ao vento. Podem encantar durante um breve período, mas duram pouco no ar. Acabam despencando ao chão para serem pisoteadas e amassadas pelo exército de distraídos do qual todos nós fazemos parte. Palavras, palavras, palavras! Escrevo toda essa ladainha e me dou conta de que estou remoendo sem perceber as crises de consciência do jovem Hamlet. E essa crise é justamente aquela que faz parte do ofício do ator – como dar conta de ser verdadeiro se a matéria prima da construção do personagem parte sempre da mentira? Sabe qual é a raiz etimológica da palavra ‘ator’, caro leitor? [Rimou]. Respondo: Ator = Hipócrates = Hipócrita = Aquele que finge ser o que não é (tudo no dicionário, confira!) Não é incrível? Para dar conta de uma verdade suprema, a da nossa inconstância e efemeridade, temos que recorrer ao que não existe, a poesia como ferramenta de algo que passa longe da comprovação científica. Enfim, fuja da verdade para que alcance alguma resposta que lhe seja minimamente verossímil no que se refere ao conteúdo concreto da vida. O pilantra é o único que se salva, caro leitor! Sejais vós, leitores, também um bando de pilantras! Nessa aula de filosofia de botequim, acho que acabei falando mais do ator e menos do professor. Gostaria de dedicar mais linhas a essa nobre profissão. Mas deixo para amanhã. Quinta feira é o dia do professor. Não percam a aula! E não terei piedade com quem chegar atrasado! Tenham todos um bom dia. Dispensados!

Nenhum comentário:

Postar um comentário