sábado, 28 de março de 2015

Fábulas: # O filtro de verbos...



Descobriram um filtro que seleciona o dito daquilo que vale a pena ser dito em paralelo ao que é simplesmente dito sem que se diga coisa alguma. E como é praxe não se dizer nada, ou quase nada, e no meio do tanto que se diz sem que se saiba o que se disse, o tal do filtro acabou virando uma espécie de oráculo disputadíssimo onde todos acorriam com sua bagagem de verbos-jorrantes aos borbotões, e cuja principal palavra brotada das engrenagens acionadas, ou expressão revelada, ou verdade inalienável nascida, fruto de repetições quase que recorrentes e infinitas, era, enfim, somente um curto e incisivo, e não menos sábio, NÃO...

- E o mundo, e os que nele habitam em palavrórios, finalmente estancou, estacionou, numa imprevista e celebrada felicidade de recusa, e devolvendo os pensamentos ao seu lugar de pertencimento, ou seja, ao misterioso e inaudito silêncio da consciência de cada um.


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quarta-feira, 25 de março de 2015

Obituários Exemplares: # Cornélio Clemente


Depois de mui meditar sobre o método que o levaria aos umbrais da eternidade - fosse aquela do subterrâneo sulfuroso, ou a do refrigerado teto celestial, tanto fazia -, Cornélio Clemente optou pela estricnina (havia gasto outro tanto bom tempo na pendenga em que o cianureto, de um lado, disputava sua preferência com a estricnina, do outro [tinha uma evidente queda por fármacos, herança dos tempos de leitura dos romances da famosa dama inglesa do crime]. Venceu a última, a estricnina, mas não por nocaute, e sim por pontos!) Mas que pudesse, ao menos, mirar o horizonte de sua abnegada varanda elevada pelos dois dígitos de andares! Era sua única exigência para consigo: morrer com os olhos lá adiante, afinal, se o gesto era deveras egoísta, que ao menos o foco estivesse em outra coisa senão em seu umbigo, equalizando assim a equação a que estava decidido por passar um traço. Levou, pois, o chá de camomila onde já havia ministrado o alvo pó, arauto do nunca-mais, ou do para-sempre, a depender do ponto de vista. Pois antes de sorver o cálido líquido envenenado, e radiante pela brisa fresca que lhe beliscava as bochechas, encostou-se tão precariamente na balaustrada que, não houve como impedir, desequilibrou-se e despencou. Uma verdadeira tragédia. Não deixa filhos, tampouco esposa. Somente uma xícara de chá envenenada e ainda fumegante, que, esperemos, evapore-se silenciosamente até que a fumaça se perca no fatídico horizonte, o mesmo cruel horizonte que matou desavisadamente esse que um dia fora Cornélio Clemente. Já não mais

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segunda-feira, 16 de março de 2015

Fábulas: # A convocação para que ninguém fosse...

Havia sido marcado um ato público convocando toda a população a não comparecer. Que ninguém fosse, porque ninguém indo, e somente dessa forma, a pressão ao governo seria deveras incisiva, obrigando-o finalmente a ouvir os clamores populares, naquela altura já nos limites da goela revoltada. E ninguém foi. E por ninguém ter ido - o vazio das ruas chegou a ser comparado às cercanias da usina nuclear de Chernobil -,  o sucesso fora retumbante, avassalador. Que lindo de ver! Não se via ninguém, nenhuma viva alma! E mediante a tamanha adesão em massa seguiu-se a mais óbvia conclusão: o orgulho patriótico havia atingido o cume estratosférico daquilo que se esperava de uma nação democrática, espargiu por cada esquina desértica, amalgamando à todos nessa curiosa ciranda da solidariedade que só brota naqueles instantes de crise suprema onde o ser humano, piedoso ao seu irmão de augúrio, oferece ajuda ao vizinho de infortúnio. 'Não esmoreceremos' - era o grito que ninguém gritava! 'Viva o Povo' - era a faixa que não se via! Que lindo tudo aquilo! Um verdadeiro hino calado em louvor coletivo! Pois ninguém foi. E não havendo ninguém, nada fora discutido, nenhum carro de som com ninguém em cima a gritar palavras de ordem, um tapa na cara do partido da situação, e, decisivamente, a arrancada da oposição. E como nada se discutiu - um alfinete derrubado no piche do asfalto chegou produzir um eco de ferir os tímpanos -, e não havendo debate algum, não se chegou, portanto, a nenhuma conclusão, o que já era, efetivamente, a melhor das conclusões a que se poderia esperar chegar num evento dessa magnitude. E como resultado de nada, nada foi feito. E o governo capitulou - o clamor não aclamado surtiu seu efeito. E ninguém comemorou. E as ruas já voltam agora a abarrotarem-se. Mas só até a próxima convocação pública. Que orgulho desses meus pares! Que orgulho de meu país! Gente honesta e de compromissos de princípios ilibados e irrevogáveis! 


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Fui tantos
Quantos
Não pude
Sê-los

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Na impossibilidade de ser
Fui
Muitos
E por sê-los tantos
Dei por mim
Esse um de quem despeço-me 
Por carência absoluta
De substância 

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quarta-feira, 11 de março de 2015

Fábulas # O dente extra


A firma de implante de próteses dentárias cujo destaque do mês deitava louros na funcionária Margareth Cunha por haver ela vendido tamanha quantidade de caninos postiços aparafusados diretamente na mandíbula daqueles que por distração ou imperícia desperdiçaram os originais de fábrica prometeu para breve o lançamento de um novo modelo de molar lapidado numa cerâmica cujo esmalte prometia competir em longevidade com a arcada dentária das múmias egípcias e que não viria para substituir nenhum dos outros molares originais senão para adicionar um novo e originalíssimo dente àqueles que já existiam por força da providência divina e assim publicou enfim nos jornais a novidade o que fisgou de imediato toda uma clientela que mesmo portadora de uma mastigação perfeita creditou futuro na promessa de poder mastigar melhor bem como falar melhor e por que não pensar melhor...


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quarta-feira, 4 de março de 2015

Fábulas: # O escritor e os escritores


Era uma vez um escritor que, diferentemente dos escritores de seu tempo, sabia que era ele um escritor condenado a viver nos piores tempos imagináveis para que um escritor, como ele efetivamente o era, desse o azar de viver. Morreu. E muito tempo depois apareceu outro escritor que, convicto que estava de ser ele o mais azarado dos escritores, e entendendo, diferentemente dos escritores de seu tempo e dos tempos já passados ou futuros, que aqueles tempos que corriam agora eram, sem dúvida nenhuma, os piores possíveis para que um escritor, como ele efetivamente o era, praticasse a arte da escrita. Morreu. Outro escritor veio e, numa geração seguinte de escritores que enchiam laudas de papel impunemente, nutriu-se ele próprio dessa convicção que era, para sua desgraça e infortúnio, a sua triste maldição: ser ele o escritor que teria de lidar com a mais nefasta época que se poderia imaginar para que se viesse ao mundo e fizesse dele algum possível argumento de escrita. Morreu. E assim, por capricho do destino e sorte do acaso, a mesma história vem acontecendo repetidamente: vez ou outra o mundo dá a sorte de abrigar entre os seus aquela ovelha negra que, diferentemente das outras de lã alva e fofinha e que se empanturram de capim até embalofarem, mastiga com amargor o produto da abundância dos dias...

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