domingo, 11 de novembro de 2007

QUANDO UM DIPLOMA VIRA UM ATESTADO DE DEMÊNCIA VOLUNTÁRIA!


E lá foram-se 4 anos!

"Caros alunos do 4°RTV-A e 4°RTV-C,


O Setor de Operações da TV Gazeta está oferecendo vagas para alunos de Rádio e Televisão da Cásper Líbero que estiverem se formando em 2007. Não se trata de estágio! São vagas com carteira assinada e benefícios para atividades nas áreas:

· Operador de VT, Editor de VT (linear e não linear), Operador de Câmera (de estúdio e de externa), Auxiliar de Câmera de (de estúdio e de externa), Iluminador


Será feita uma apresentação dessa proposta nos dias:

P/ 4°RTVA: 13/11- (terça-feira- período da manhã)- às 09h30

e

P/4°RTVC: - 14/11- (Quarta-feira-período da noite) - às 20h30


A apresentação será na própria sala de aula (sala 4 do 3°Andar) com a presença do Gerente deOperações da TV Gazeta, Fábio Rolfo, o professor Marco Vale e um representante do R.H. da Fundação.

Não percam! Trata-se de uma excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que vocês se prepararam por quase 4 anos.
Atenciosamente,


Prof. Marco Vale
Coordenador de Ensino do Curso de Rádio e Televisão"

URGENTE! FUTURO PROFISSIONAL EM JOGO!


Para a Coordenadoria de RTv e ao nosso Orientador do Curso,

Gostaria de saber se mesmo eu, que faltei nas aulas de como segurar cabo - ofício de cabo-man, poderia me candidatar a vaga de auxiliar de câmera anunciada pelo nosso orientador do curso. Sei que terei de demonstrar talento, perícia e, principalmente preparo intelectual (criativo e artístico) para desempenhar a função mas, acredito, mesmo que deficiente na técnica, tenho todo respaldo acumulado pela bagagem cultural oferecida pela nossa faculdade. Acho que dou conta. Caso não possa me candidatar a esse emprego em específico, gostaria de saber se tenho direito a concorrer aquela vaga de camera-man. Não me lembro de ter frequentado a disciplina: "Ei, como faz pra ligar a câmera aí"? mas também acho que posso oferecer um trabalho qualificado - de um quase recém-formado em um curso superior, basta que alguém me ensine onde é que fica o "REC" do aparelho. Quanto ao resto, se me contratarem para ser o câmera-man do programa "Mulheres", acho que não terei problemas com a minha tremedeira congênita, fiquei sabendo que lá eles usam tripé para segurar a câmera, é verdade? Isso me tranquiliza mas, ao mesmo tempo, fico com medo de que o câmera-man que faça uso do tripé necessite de um curso de extensão (ou mesmo de mestrado) para exercer o ofício. Nesse caso eu não estou qualificado, infelizmente. Enfim, me respondam por favor. Eu garanto que sou o profissional ideal para a filosofia da empresa: tenho vontade, dedicação e, um dia, quero chegar ao topo: ainda vou curar os erros de concordância da Palmirinha.

Grato.

Francisco Carvalho, o quase-recém formado em busca de uma "excelente e efetiva oportunidade de terminar a faculdade com um emprego garantido na área que EU ME PREPAREI por quase 4 anos".

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Tropa de Elite

mais um ótimo artigo de Bernardo Carvalho.

Fracasso do pensamento

Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia, é lógico que o bom senso não tem vez.

UM MUNDO sem reflexão, onde a violência da realidade obriga o sujeito a deixar de pensar para agir, cedendo ao senso comum, ao simplismo e ao pragmatismo cínico, recorrendo ao preconceito e a ações impensadas que antes ele condenava, quando essa mesma realidade ainda não o atingia diretamente e ele podia repetir belas teorias da boca para fora, não é um mundo menos hipócrita (como alguns gostariam), é um mundo pior. Um mundo sem arte (no qual a arte, aceitando a pecha de ilusão e perfumaria, cede ao consenso da realidade e passa a funcionar como jornalismo e sociologia) também.É nesse mundo desiludido que a representação de jovens tolos e inconseqüentes, repetindo Foucault da boca para fora, para acabar quebrando a cara na prática contraditória do trato direto com a realidade nua e crua, passa a ter um efeito catártico junto a platéias em busca de um bode expiatório.É desse mundo (o do fracasso do pensamento) que trata "Tropa de Elite": onde só é permitido escapar à violência (e deixar de ser violento) fora da realidade -tudo o que o capitão Nascimento quer, ou diz querer, é sair desse mundo (onde quem pára para pensar morre), para poder cuidar em paz do filho e da família.Gostei do filme, embora tivesse preferido o longa-metragem anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus 174". Não acho o filme fascista. Mas é inegável que, como qualquer representação da realidade, ele tem um discurso (que não é exatamente o mesmo do capitão Nascimento), a despeito de dizer que se limita a mostrar a realidade. E não é um discurso novo. É o discurso de um realismo funcional que volta e meia reaparece para dizer que a realidade é o que é. E que só os fatos (ali representados) contam.Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia (e em que a arte se esconde como discurso para se apresentar como espelho de uma realidade unívoca), é lógico que o bom senso não tem vez. A demagogia e a ira, sim. É preto no branco. Produção de subjetividade é coisa de elite irresponsável. Aqui, nós tratamos de fatos objetivos.Com o desbaratamento das idéias, este passa a ser um mundo de polarizações em torno de questões simplistas e indiscutíveis. Não se produz pensamento; tomam-se partidos. Vozes da ponderação e do conhecimento de causa -como a de Alba Zaluar, que exercita o bom senso semanalmente e sem maiores alardes nas páginas deste jornal- vão se tornando inaudíveis em meio ao bruaá dos lugares-comuns estridentes. O bom senso não aparece, porque não tem graça nem dá manchete. As idéias foram reduzidas a representações sociais. Basta que cada um fale e seja reconhecido como representante do seu grupo social (e que muitas vezes se aproveite disso para respaldar a banalidade ou a demagogia do que diz). O que conta não é o teor das idéias (em geral, as mais simplistas), mas que sirvam para identificar o lugar social de quem as manifesta no campo de batalha. Essa aparente desordem apenas encobre uma ordem geral, o consenso em torno da realidade como um campo de forças autônomo, um teatro de ação e reação, imune à reflexão e à inteligência.Foi em meio a esse contexto que bati com os olhos na recém-publicada edição espanhola dos artigos e palestras do dramaturgo francês Enzo Cormann: "Para que Serve o Teatro?" (Universidade de Valência). Na conferência de 2001 que dá título à coletânea, o autor diz que o teatro (e de resto toda arte que se preze), por ser reflexão, "consiste em reinjetar subjetividade num corpo social entrevado pelo uniforme demasiado estreito do pragmatismo econômico" -ou (por que não?) do realismo oportunista que reivindica para si uma pretensa objetividade, condenando ao mesmo tempo toda produção subjetiva à impotência e ao ridículo, como se dela não fizesse parte.Em nome de uma representação unívoca da realidade, o discurso embutido em "Tropa de Elite" (que não se assume como discurso) limita a própria possibilidade de produção de subjetividade a quem está fora desse mundo, ao diletantismo ridicularizado de estudantes inconseqüentes. Ao associar a produção de subjetividade aos ricos, aos tolos e aos irresponsáveis, como se tampouco estivesse produzindo subjetividade, o filme acaba, provavelmente sem perceber, dando um tiro no próprio pé, pois contribui para estreitar o entendimento do que num passado não muito remoto, e graças ao esforço e à resistência de grandes cineastas, garantiu ao cinema um lugar entre as artes, justamente como produção de subjetividade.

Folha - ilustrada - 6/11

domingo, 21 de outubro de 2007

Isso + Aquilo = não sei o quê!

Uma vez alguém, não lembro quem, me disse: "Você trabalha com teatro, com arte. Cultura é muito importante para todos nós mas não vejo teatro como cultura, teatro é mais uma diversão, a gente vai para se divertir, não para pensar".

Essa frase tem uma afirmação muito perigosa que não é tão exclusiva dessa tal pessoa a quem não recordo o nome. Lê-se nas entrelinhas que o teatro, sendo uma arte que prima pelo divertimento - o que eu concordo plenamente (se algum dia uma peça de teatro lhe oferecer uma sessão de sofrimento ou queimação de neurônios tal e qual acontece na sua vida cotidiana, fuja!) - não combina com reflexão. Ainda pode-se afirmar, pela frase de autoria desconhecida, que Cultura para ser definida como Cultura deve necessariamente rimar com tédio, suor na testa (neurônios queimando!!!), sofrimento (aí sim!). Isso porque, nesse caso, a arte é vista como mais uma ferramenta utilitária a disposição daquele que, não sem antes fazer por merecer, conquista seu direito de utilizá-la para tornar-se um homem melhor.

Sem dúvida que o acesso a Cultura torna o homem melhor ou, pelo menos, mais sensível em relação a sua inevitável condição de agente social, mas, é justamente na contra mão da "utilidade" que a arte encontra seu caminho para tocar seus espectadores.

Arte é contra qualquer tipo de "utilidade" porque por "util" entende-se aquilo que deve servir a um determinado fim. Arte não busca "fins" mas sim "meios" de estimular cada espectador a descobrir soluções individuais, mesmo que para tal a compreensão de um tema único seja necessário. A riqueza da arte, e, por conseguinte, a do teatro, está em não querer exigir nada de quem a aprecia e através desse descompromisso colher as reações mais sinceras que surgem de forma natural. É por isso que o teatro, e as demais manifestações artísticas, deve manter-se sempre na via do divertimento. As reações mais sinceras, autênticas e, por isso mesmo, mais aptas a provocar reflexão são aquelas que são resultado de um estímulo não impositivo. Quem se diverte (não apenas o "divertir" que é revelado pelo riso, mas toda e qualquer reação que faz com que o espectador mergulhe na obra fruída) relaxa e se abre para pensar sem ter que dar satisfações a nenhum modelo de pensamento - sem ter que responder a nenhum "fim" específico.

É por isso que arte é essencial e não apenas brincadeira de passatempo. Quem acha que o teatro é irrelevante incorre no mesmo equívoco daqueles que pensam que o homem só encontra meios de evoluir através de mecanismos pragmáticos, normalmente traduzidos pelos avanços da ciência e tecnologia.

Francisco Carvalho. 2006

A PAISAGEM DA ALMA



A paisagem da alma.
Análise da tela "Drinkstone Park", de Thomas Gainsborough


Misturando-se aos tons escuros da grama verde, um homem estendido ao chão, vencido pelo sono profundo, apequena-se diante das proporções majestosas de uma paisagem campestre. O contraste entre as sombras produzidas pelas portentosas árvores e o céu vespertino, embora tomado parcialmente por nuvens carregadas, compõem um jogo de opostos entre luz e penumbra, traduzindo o diálogo da natureza como o grande protagonista do discurso pictórico. Sob olhares menos atentos, a figura humana, provavelmente um camponês que estendera involuntariamente o seu breve cochilo, poderia passar desapercebida. A sua importância, porém, é fundamental tanto para valorizar de forma mais explícita as dimensões do ambiente ao seu redor, como também para descortinar o sentido metafórico presente na composição.


Tomemos como parâmetro o ponto de vista do observador da obra. O quadro compreende basicamente duas partes, tendo a linha do horizonte como marco divisório. O quadrante superior, embora invadido pela copa de algumas árvores à direita e à esquerda, é ocupado na sua maioria pelo céu nebuloso. Já o quadrante inferior apresenta como destaque um sinuoso tronco seco ainda postado verticalmente. Apenas alguns ramos com folhas verdes indicam o que um dia fora, talvez, a maior das árvores da paisagem. Entre o homem que dorme e o tronco seco, um caminho de terra conduz a três destinos diversos: um à esquerda, o outro para o lado oposto, ambos distantes e encobertos pelas folhagens de outras árvores e, finalmente, o terceiro destino, que parece vir de encontro ao observador da obra. Na porção central, nem tão próximo ao limite inferior da tela, nem tão colado a linha do horizonte, um lago raso de proporções médias serve de bebedouro para cinco vacas e três bezerros. Ao lado do tronco seco, colado às suas raízes, um pequeno riacho faz circular uma quantidade tímida de água sobre algumas pedras. Ainda, ao lado do homem que dorme, um cão observa curioso os animais no lago a saciar a sede.


A paisagem retratada por Thomas Gainsborough é um convite ao exercício dos sentidos. O cheiro é de terra e grama molhadas, a textura das cores e as nuvens no céu indicam que a estação das chuvas já se instalara. Quase é possível sentir por entre as mãos a consistência do barro ou imaginar o desconforto, ignorado pelo homem, de deitar-se sob uma relva ainda úmida. O quadro é regido por uma sinfonia quase silenciosa, quebrada pelo ruído distante dos trovões, anunciando a tempestade. Os passos dos animais no lago raso e a pequena correnteza do riacho embalam o sono do homem tal qual a melodia serena do final de um terceiro movimento Andantino maestoso. No momento seguinte, o ribombar dos raios e trovões, através da energia dos tímpanos de uma percussão, darão início ao Allegro prestíssimo, fazendo o homem despertar à força e livrando-o dos devaneios melódicos aos quais estava até então entregue. O observador parece testemunhar exatamente este momento de expectativa da transição, e, em uma atitude solidária, anseia por prevenir o homem do risco que corre de ser desperto por uma torrente de água. Esse é o gosto que vem à boca: água fresca.


A composição trabalha com três dimensões diferentes de tempo. Primeiro o tempo da própria natureza que combina a representação do passado distante, através do tronco seco, ao vigor das cores verdes das demais árvores (tempo atual). A própria iminência da chuva configura-se como um signo de renovação, de reciclagem da vida e, portanto, de prosseguimento ao tempo presente. O homem que dorme está imerso em um passado próximo, suficiente para transformar o seu breve cochilo em um sono profundo. Já o cão identifica uma noção temporal semelhante a da apresentada pelo observador da obra. Deitado e ao lado de seu dono, ele olha interessado para os animais no lago, evidenciando um tempo de ação corrente. O observador, ao desvendar os detalhes da obra, compactua com a mesma curiosidade momentânea do cão.


Thomas Gainsborough faz uso de sua técnica para reproduzir um cenário de poesia idílica. Nesse sentido, foge da arte como um instrumento de afirmação política ou de status social. A bem da verdade, Gainsborough era um exímio retratista, fato que o atava a uma elite intelectual ávida por ver-se reproduzida em cenas cotidianas. A sua opção pela paisagem campestre e pelo desprendimento às tradições da pintura, indicam, ainda que prematuramente, a célula original do que mais tarde iria se configurar como o movimento de revolução na estética das artes (principalmente na poesia e na música): o romantismo. Gainsborough não direciona seus esforços para reproduzir o homem como o senhor da razão, ao contrário, ele o joga em cenários naturais repletos de aromas e sensações físicas. O homem, agora, está imerso na poesia da natureza, entregue às forças primitivas. Nesse contexto, ao desprezar a razão como tema, o artista foca sua temática na relação do espírito humano com as experiências físicas que o meio natural lhe oferece. Ao abandonar os gabinetes embolorados e transferir o cenário para o ar livre, o artista estimula o resgate do homem com a sua própria essência criativa, devolvendo-o a um estado original de busca pelos sentidos da vida.


O homem que dorme profundamente está mergulhado em seu universo subjetivo, admitindo sua vulnerabilidade frente a algo maior do que a sua capacidade de raciocinar: o próprio universo. O tronco seco e quase morto é a representação metafórica da razão, agora envolta por forças antes desprezadas. Ao lado do homem inconsciente é possível identificar um cajado. Esse elemento, respeitando essa mesma linha de análise, também é um signo representativo do ser humano que abandona o controle (o cajado é um instrumento de guia) e entrega-se ao desconhecido. A natureza, importante que se diga, não é retratada como ameaçadora, mas toda a sua imponência e força, bem como sua beleza, parecem reivindicar ao homem a sua postura de protagonista. A tempestade que se arma no céu é, talvez, a reprodução metafórica do próprio inconsciente do ser humano que revisita lugares nebulosos e sombrios em busca de um novo despertar.


"Drinkstone Park", obra do artista inglês Thomas Gainsborough, foi composta em 1747. Dois anos mais tarde nascia na Alemanha o poeta e dramaturgo Johann Wolfgang von Goethe, ícone do movimento romântico nas artes. O homem que dorme em meio à natureza é a representação pictórica do personagem clássico da dramaturgia de Goethe: Fausto. Fausto abandona a cátedra da universidade em busca do verdadeiro sentido da vida. O pacto com Mephistópheles, o demônio, nada mais é do que o mergulho particular nas forças do inconsciente sombrio e a permissão para jogar-se nas experiências físicas da natureza. Esse processo evidencia que o conhecimento e a sabedoria estão além dos métodos racionais de compreender o universo. O próprio universo, quando vivenciado sem a pretensão de querer classificá-lo ou qualificá-lo, representa toda a fonte do saber. O homem de Thomas Gainsborough rende-se à poesia natural que o envolve. Essa renúncia o inclui como parte constituinte das forças naturais, o que o torna, também, um agente criador e criativo. Muito mais do que uma paisagem, "Drinkstone Park" pode ser lida como um verdadeiro tratado sobre a condição humana.

Francisco Egydio de Carvalho. 2005

sábado, 22 de setembro de 2007

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica de minha autoria.

Caro colega ouvinte. Peço a sua licença para lhe contar como me tornei um imbecil. Se prestar um pouco de atenção verá que a minha história não difere muito da sua, o que me leva a concluir que tanto eu como você formamos, juntos, dois dos legítimos representantes da raça dos imbecis. Não sou seu colega e muito menos imbecil, você responderá. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto. Eu era, assim como você, um daqueles que levantava a voz contra o poder. Refutar uma voz de comando não era difícil, confortável até certo ponto, e fazia render saborosos tapinhas nas costas. A proporção era simples: a medida em que a coragem crescia o fã-clube aumentava. Não, definitivamente não foi essa atitude que nos privou de adentrar para o rol dos imbecis. Assumir a figura do explorado, do pobre funcionário resignado pelo berro da injustiça, é o extremo oposto e o passo decisivo para alcançar o estado da imbecilidade plena. Não é preciso dizer que ambos, eu e você, demos as mãos também nesse quesito. É verdade que há aqueles que mal percebem tudo isso e que fazem questão, seja por qual razão for, de postarem-se bem debaixo dos impropérios dos arrogantes. Estes também são imbecis mas pelo menos não sabem que o são – sei que você há de concordar que a ignorância a respeito da própria imbecilidade é uma benção. Não é o nosso caso. Se você continua comigo até esse instante é porque ambos, eu e você, compartilhamos do grupo que carrega a consciência como um fardo. Sempre fui correto, exemplar até. Aluno de excelentes notas, desde cedo aprendi a cumprir da melhor forma possível o que me era solicitado. Os bons empregos no tão sonhado mercado de trabalho foram conseqüência, encher os bolsos de dinheiro uma questão de tempo. É verdade também que aquela centelha de bravura, típica dos espíritos juvenis e inconseqüentes, as vezes insistia em arder silenciosa no meu peito como uma advertência surda de que “aquilo não estava certo”. Rapidamente notei que bater de frente com os burocratas imbecis era o mesmo que assinar o meu diploma de perdedor. Como, nessa altura do campeonato, já não podia me dar ao luxo de encarar a vida como um artista que depois do fechar das cortinas não sabe se no dia seguinte haverá espetáculo, resolvi fazer uso da minha formação imbecil para tornar-me o quanto antes um verdadeiro imbecil de carteirinha. E eis que aqui estou, respirando o mesmo ar que você, enxergando as mesmas coisas que você, ouvindo as mesmas coisas que você. Como é gratificante repousar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila de que os cadarços percorreram corretamente os furinhos do sapato. Que sapato é esse? Não me pergunte, eu apenas passo os cadarços pelos furinhos, essa é a minha função. Depois de um tempo com o carimbo oficial de imbecil estampado na testa notei que não havia vergonha ou mal algum em ser imbecil. Afinal, em alguma medida todos o são. Talvez você me compreenda melhor porque a sua imbecilidade é semelhante a minha mas, acredite, há tanta imbecilidade no mundo que ser imbecil já não é privilégio para poucos. Tornou-se comum, nada surpreendente. E aí é que está o perigo. Eu e você não somos desequilibrados. Desequilibrados sempre existiram e estão por toda a parte. Nossos subúrbios tranqüilos pululam de pastores, reitores e catedráticos dispostos a disseminar suas sandices para cinqüenta, duzentas, mil pessoas – depois esse mesmo Estado que se serviria deles sem pestanejar como forma de se auto suster os esmaga como mosquitos empapados de sangue. Esses homens doentes não são nada, e se deixam seus nomes marcados na história não é por mérito próprio. Nós somos os responsáveis, os amarradores de cadarços, pessoas comuns, pessoas ingênuas de caráter e imbecis por falta de opção. Homens imbecis como eu e como você, eis o verdadeiro perigo, funcionários silenciosos da indústria da mediocridade. Sem o nosso exército dos imbecis, esses loucos dissonantes não seriam mais do que fantoches desarticulados. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você. E, se não está convencido, inútil prosseguir. Você não entenderia nada e se aborreceria, sem lucro nem para você nem para mim. Como a maioria, eu nunca pedi para me tornar um imbecil. Se pudesse, teria optado por algo sublime, algo que engrandecesse meu espírito, talvez a música. Sim! A música!*

Prólogo de "A Valsa dos Porcos", peça radiofônica escrita por mim e inspirada na obra "A Revolução dos Bichos", de G. Orwell. Há no texto algumas pequenas transcrições de trechos da obra "As Benevolentes", de J. Littell.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Quando o "Isso" não vem depois do "Aquilo".

Transcrevo abaixo um trecho maravilhoso de um dramaturgo contemporâneo francês, Michel Vinaver, que acaba de ter duas de suas peças editadas no Brasil pela EDUSP. Penso que o conteúdo é bem apropriado para nós, humanóides modernos que ansiamos desesperadamente por buscar as razões (começos / meios / fins) de qualquer coisa que passe pelo campo esclarecedor (será?) do intelecto. Aí vai:

"Não se preocupe nada por baixo das superfícies; são elas o segredo. Não há não-dito: tudo é dito. Sobretudo nos intervalos, no espaço entre objetos da fala - palavras, frases, réplicas -, que não são vazios, mas o branco nas telas de Cézanne. E nada de ponto de vista globalizador, redução do texto a uma moral ou mensagem. Todos os pontos de vista são válidos, sem hierarquização, sem julgamento. Não há denúncia do sistema, há desmonte. Há ironia; como decalagem entre aquilo que se espera e aquilo que realmente vem, num encadeamento inesperado das réplicas, ou das situações, no plano molecular da conversação banal do dia-a-dia. Não se cave uma profundidade, nem mesmo psicológica. Pois não há um antes e um depois. Vale o presente imediato e urgente. São peças-paisagem, sem o encadeamento causa-efeito das peças-máquina, sem progressão cronológica visando ao desenlace. Sem desenlace no sentido convencional, a peça tem que parar, eis tudo; o último instante não vai se suceder de um outro. Trata-se de uma estrutura musical de temas e suas variações, num ir e vir rítmicos. Para a captação do instante em sua fulgurância desnorteante numa realidade mutante. Uma sucessão de instantes em conexão, mas não subordinados, que desautoriza os termos "cena" ou "ato"; temos peças em pedaços, em fragmentos. É a realidade fragmentada da vida em estado bruto, como se dá no cotidiano".*


*Prefácio de "Dissidente / O Programa de Televisão" - duas peças de M. Vinaver. EDUSP, 2007. Tradução de Catarina Sant'Anna.