sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Um velhinho no metrô...


Dentro do metrô e vejo as portas se abrirem para uma enxurrada de novos passageiros tomarem conta do pouco de ar respirável que nos restava. No meio daquela massa amorfa um senhor de seus 80 anos, um velho mirradinho, tão enrugado quanto uma uva passa de ceia de natal, aparece costurando a multidão para alcançar, bufando de raiva e cansaço pelo tamanho jogo de cintura que a situação o impunha, seu lugar numa cadeira reservada aos idosos... e lá fica, em silêncio, contente com o seu papel de coadjuvante naquele palco de rostos jovens e barulhentos. Que coisa incrível é a velhice, se é triste para quem habita esse estado de iminência do colapso, é também surpreendente para os que podem testemunhar de fora os seus contornos de silhuetas únicas. Todo homem velho é único, não havendo dois exemplares de mesma idade que possam rivalizar em semelhança. O tempo funciona como uma espécie de registro de individualidade, estampando na fisionomia de quem o desafia um prêmio de originalidade, um troféu pela perseverança em enfrentar a vida por tantas temporadas seguidas. Nada mais diferente que a juventude, esse barco de cores iguais que carrega um não sei quanto de marujos de mesmo uniforme, todos tagarelas e efusivos. Aquele homem, encostado no seu canto e todo encurvado, não fazia nada... apenas com uma das mãos arrancava alguma coisa da careca já escassa de cabelos - uma casca de ferida cicatrizada, talvez -, e levava o produto do seu achado até a frente do seu nariz, de modo a apertar as vistas por detrás dos óculos de lentes grossas para certificar-se do que havia apanhado. Combinado a esse simples movimento, o velhinho mirradinho feito à imagem e semelhança de uma uva passa de ceia de natal, fazia seu beiço recuar e avançar, como uma alavanca de ajuda providencial a sua dura respiração. E todo ensimesmado e retraído repetia essa ação, repetia e repetia... metodicamente a mesma e cuidadosa ação. E assim ficou até o momento em que tive de sair do trem para seguir meu caminho. Nunca mais o verei, isso sei bem, mas sua imagem ficou gravada em mim como um enorme e demorado aperto de mãos que não chegamos a trocar. Dentro daquele vagão atulhado de maritacas e gralhas barulhentas aquele velhinho reinava absoluto! Que personagem incrível! Silencioso e extraordinariamente potente no seu recolhimento, totalmente indiferente as imagens já gastas de um quadro humano que provavelmente não o interessava em nada. A velhice é sábia... e dramática. Aquele homem em cima de um palco ganharia o posto de protagonista de qualquer espetáculo... ele já seria o próprio espetáculo! Pena que na vida comum as figuras respeitadas se sustentam na base do charme, e a nós, triste plateia desse auditório de belas faces, nos resta torcer para quem sabe um dia nos depararmos com um velhinho mirradinho, tão enrugado como uma uva passa de ceia de natal!

Aqui não se filosofa, aqui só se faz farofa.




Não se reprima, caro leitor, aqui ninguém filosofa, aqui só se faz farofa. Na primeira oportunidade o sujeito dá um jeito de enfiar num tapaware um frango assado na padaria e pé na tábua dentro de uma kombi rumo ao Boqueirão da Praia Grande! Tapaware com frango e farofa, importante frisar. E se no trajeto da farofada litorânea houver um pagodinho para embalar as orelhas, ainda melhor! Porque pagode e farofa são duas metades feitas especialmente uma para a outra, ambas enlaçadas em matrimônio dentro de um Tapaware comprado numa promoção das Casas Bahia, ou mesmo feito à imagem e semelhança de um potão de sorvete napolitano da Kibon. Não é à toa que por essas bandas de cá quem manda é o frango. O frango reina por aqui porque invejamos sua qualidade ciscadora de sacolejar as penas quando lhe dá na telha, e se comemos o pobre do galináceo é menos por uma ideia de matar a fome do que pelo profundo respeito e admiração que nutrimos por sua conduta barulhenta e impertinente! Um verdadeiro ritual de antropofagia-penosa, ou melhor, frangofagia-ciscante! Ave Frango! Muito diferente do peru, sujeito de papo cadenciado que vez ou outra solta um glu-glu e só resolve dar o ar da graça uma vez por ano e olhe lá. O peru é chique demais para nós, quase um intelectual da Academia Brasileira das Penas que vive com seu pincenê a distribuir aforismos eruditos: glu-glu. Clama! Não se reprima, caro leitor, aqui ninguém filosofa, aqui só se faz farofa! E farofa combina também com pagode, haja vista que as duas coisas foram feitas para produzir barulho e esquentar a carne. O bacon tosta no meio da farinha de trigo num chiado de xingar os tímpanos, o lombo glúteo da pagodeira rebola ao som do pandeiro, fazendo suar a testa que já nasceu suada de tudo quanto é conjunto de pagode. Olha o Bóle-Bóle menina! Ah, caro leitor! Aqui tudo é uma homenagem à farofa e aos seus derivados. Veja o que acontece com o semblante dos japoneses ao testemunhar o bando de farofeiros corinthianos que aportaram por lá. Pelos domínios da terra do sol nascente não há olhinho puxado que compreenda como o homem pôde ter chegado a essa condição de ser-farofador que ao menor sinal sai por aí ciscando suas penas em favor de sabe-se lá o que.  A farofa também é prima-irmã do calor, esse parente próximo que impele qualquer diabo a sair por aí cantando o ala-la-ô, arrancando cada palmo de roupa com o fim de mostrar os músculos malhados na academia. Imagine uma farofa sendo preparada no ártico para um almoço com as focas albinas... aposto que não haveria clima algum para um urso polar começar a tremer o gogó na batida do chocalho tocado pela raposa trajada com seu casaco de pele. Não caro leitor, a farofa é patrimônio nosso, desse terreno de seres esfuziantes que antes de filosofar resolvem farofar. Observe a conduta dos que pegam diariamente o nosso abarrotado e irrespirável transporte coletivo. Antes de calar frente a tragédia de virar uma sardinha enlatada, condenada a cheirar o sovaco de bacalhau do vizinho-peixão, todos parecem sacar seus instrumentos de gingado para entoar a sinfonia da fofoca, dos gritinhos, das gargalhadas e de todas as churumelas verbais possíveis e imagináveis... fosse um monge budista (totalmente contrário à dieta do frango) a primeira reação seria recolher-se num mantra silencioso, buscando salvação numa fumacinha de incenso imaginária, restrita a sua charmosa cabeça de ser filosofal! Mas não, caro leitor, aqui não há filosofia que resista ao repique do tamborim. Aqui a coisa se dá na base da malandragem, de quem rebola mais e melhor, conferindo à periferia do charme o sentido de existência... e se a coisa vai mal, antes eu me safar dela com meu gingado de passista do que lhe ensinar a concorrer em simpatia com esse meu sorriso de bronzeado de laje. Imagine um Tsunami devastando a costa brasileira... Agora imagine tentar repetir a mesma cena dos orientais depois da tragédia: todos os tupiniquins enfileirados na porta do único supermercado remanescente, pacientes em esperar a sua vez de receber um único pacotinho de miojo para satisfazer a fome mais imediata. Todos em silêncio, respeitadores da dor e do luto da comunidade... Ah, caro leitor, bora pro Boqueirão! E não vá me esquecer do Tapaware com o frango... e a farofa! ZIRIGUIDUM!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A minúscula parte do pequeno que somos...



Senhoras e senhores, a trama da vida diária é realmente um negócio digno de nota, isso porque a pena com que ela escreve as linhas da novela do cotidiano dá-nos a curiosa chance de testemunhar um desfile de frivolidades e insignificâncias que acabam, por mais paradoxal que possa parecer, conferindo tamanho gigantesco a tudo o que é pequeno – e quando o pequeno diminui até chegar à dimensão do minúsculo, aí sim nos sentimos protagonistas de algo cujo teor dramático ultrapassa as fronteiras do inconfessável particular para galgar a urgência de tornar pública a nossa tragédia. Senhoras e senhores, se o torvelinho de futricas, fatos e boatos, fofocas e diz-que-me-diz, são a matéria fundamental dessa panacéia melodramática, não seria surpresa adequar em igual proporção de importância as personagens que nela flutuam, assim, também não é preciso correr muita sensibilidade por dentro das veias para que o mais distraído dos seres humanos perceba que a sua figura é tão pequenininha quanto a sua função de fuinha que esse teatro maior chamado Vida lhe instruiu praticar. Senhoras e senhores, conheci um fuinha dessa espécie! Um legítimo representante disso que podemos chamar de mediocridade, mas uma qualidade de mediocridade tão sincera e transparente que, embora tenha me causado certo constrangimento no princípio do nosso inesperado encontro, não pude deixar de render homenagens a esse magnífico fantoche que pulou na minha frente sem vergonha alguma de articular seu queixo de ventríloquo de circo. Eis aqui as circunstâncias que me levaram a essa incrível experiência. Acabava eu de pisar minhas magras pernas no saguão do teatro quando o dito cujo alcança-me com o seu olhar vítreo e pronuncia num brado retumbante o meu sagrado nome: ‘Fulano de Tal, é você?’ Sim, era eu... e ainda que eu não me chamasse Fulano de Tal passaria imediatamente a ser o tal Fulano de Tal pelo grau purpúreo de efusividade que a criatura evocava a minha presença. Sim! Aqui estou eu, o digníssimo Fulano de Tal, arrastando meu suntuoso manto do reconhecimento público! Ah, senhoras e senhores, senti-me o Grão-Duque de alguma aldeia medieval, o Czar da Praça Vermelha, o Abade nomeado pelo santo Papa... ou melhor, senti-me o próprio Pontífice da Santa Sé tamanha foi a lambida que recebi na sola do pé daquele pobre servo da insignificância. Senhoras e senhores, por que será que as pessoas se regozijam tanto em servir-nos em bandeja de prata essa sua idiota vacuidade, incrustando no metal pedrinhas de desejos de atenção reprimidos? O que lá tenho eu com isso? A vontade que tive foi de mandar aquele peão-de-xadrez mover suas perninhas curtas em outras casas e me deixasse em paz, mas eu tive o azar de incorrer no maior pecado que um pecador da minha espécie poderia cometer e disse: ‘Olá, como vai?’ Senhoras e senhores, deixem-me lhes dar uma dica preciosíssima: jamais, em hipótese alguma, lancem mão de um simples ‘Olá, como vai?’ numa ocasião semelhante a essa a que eu acabei de reportar, melhor dizendo – jamais abram vossas bocas para articular a língua num frugal ‘Olá’ sem o ‘como vai?’ como sufixo -, porque um simples ‘Olá’ funciona para esses pequerruchos mal amados como a mesma benção divina que fez abrir as águas do Mar Vermelho para Moisés seguir caminho em direção à Canaã, a terra prometida que verte leite e mel nos seus riachos abençoados! Ah, digníssimos de infortúnio, não sabem vocês o quanto tive de adormecer meus ouvidos para suportar o relato de tanto blá-blá-blá sobre a própria vida mesquinha daquele que se dirigia a mim! E por que justamente a mim? O jubiloso Fulano de Tal não teria outras ocupações mais nobres a cumprir - como, por exemplo, assoar o nariz -, do que parar a rotação do mundo para se sentir uma Via Láctea rodeada por aquele satélite de vento perfumado? E tudo isso com um único intuito: elevar-me ao patamar dos escolhidos! Vá escolher a mãe para aporrinhar! Ah, senhoras e senhores, se eu fosse menos educado... porque grande parte das tragédias da vida nos seriam poupadas se abandonássemos essa terrível condição de ‘seres educados’ a que fomos doutrinados a colocar em prática... Aguentei tudo em silêncio sepulcral, depois encaminhei-me para dentro das dependências do teatro, onde dali a instantes as cortinas subiriam para mais um espetáculo da temporada... e mal sabia eu que aquele deslumbrante personagem minúsculo estava a minha espera, pronto a entoar sua ladainha de fã dos abnegados. Senhoras e senhores, a trama diária é um enredo realmente deslumbrante... lembro-me agora de uma mulher gorda que avistei ao sair de um Shopping Center, ela devidamente estacionada no alto de uma escada-rolante enguiçada, soltando impropérios aos quatro ventos sobre a incompetência das engenhocas mecânicas da modernidade... era a perfeita Norma de Bellini, uma Casta Diva na magnificência de sua pose, convocando o mundo a olhar para o quanto seu gogó estava preparado para reivindicar sua existência... sua minúscula existência, diga-se de passagem.  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

História concisa do ator...


Era uma vez alguém que não sabia quem era... 
E não sendo ninguém, podia ser muitos... 
Todos de uma vez, ou um por um, cada um na sua vez.

Natal da Sapucaí



Querido menino Jesus, com o perdão da palavra – e o senhor quando crescer será o homem do perdão, portanto não me negará essa profunda graça tão requisitada desde os tempos em que a Eva (que mais tarde viraria banda) abocanhou a tal maçã proibida, e Adão, ao notar as partes pudendas, viu-se obrigado a inaugurar a Semana da Moda do Éden com uma folha fashion de bananeira-Herchcovitch – enfim, querido menino Jesus, peço perdão a ti e a todo o elenco do presépio para revelar publicamente a seguinte indignação dessa sua vossa ovelha latina desgarrada do rebanho: ah, senhor menino Jesus, o que é essa sua festa de aniversário senão a comemoração universal da cafonice? Parece, querido salvador das almas condenadas, que o mundo é um enorme tonel de carvalho antigo acumulador do elixir do mau gosto que tem no mês de dezembro a sua torneirinha aliviadora aberta! Santo Deus, menino Jesus – com o perdão da referência ao vosso Santo Pai de Barbas Brancas -, mas alguém precisa rever esse diretor de arte que insiste em confundir o carnaval, a festa da carne – esse sim um verdadeiro evento da pouca vergonha promovido pela serpente transfigurada em bode dionisíaco -, com a data natalina da vossa chegada ao planeta, o mesmo planeta em que eu fui condenado a pastar (lembre-se de que sou uma ovelha – ainda que desgarrada – e, portanto, nada mais justo que viver pastando no pequeno pasto em que me coube pastar). Ah, senhor menino Jesus de Belém que não é do Pará, rogo ao vosso pai que empurre o carrinho de bebê ao qual estará ocupado por vossa digníssima presença devidamente embrulhada numa fralda descartável para que observe o monumento ao lado do parque do Ibirapuera ao qual batizaram de árvore de natal! Que aberração pecaminosa, santo Deus! E a hecatombe em forma de cone gigante iluminado repete-se frequentemente! A cada ano, senhor dos milagres terrenos, insistem em armar aquele bolo verde feito de camadas de andaimes metálicos, variando a temática dos enfeites a cada nova temporada do mau gosto! Por exemplo, oh digníssimo da Santa Ceia ainda não servida, ano passado algum detrator da vossa festinha de aniversário resolveu lançar mão do tema ‘Docinhos do Buffet da Turma da Mônica’ e tratou de incrustar naquele bendito cone-de-Itu um não sei quantos pirulitos de isopor... Ah, meu Pai Amado, parece que o natal é uma nostálgica reminiscência da época do Casino do Chacrinha, áureos tempos em que abobrinhas voavam por cima das cabeças do auditório num êxtase libidinoso capaz de fazer rebolar o Cão na sua toca inundada de enxofre! E o que dizer então das musiquinhas, oh senhor dos sofredores incapacitados? Quanta gente que preserva o gogó inflamado para alforriá-lo justamente na sua data? A cada esquina brotam alto-falantes que tem por missão rasgar os tímpanos dos que ainda o conservam com o desejo formar um coro enorme para um novo gênero de canção batizada de ‘Jingle Bells do Axé’. E isso tudo, oh magnânimo transformador da água em vinho, potencializado pelo suor do caldeirão tropical! Sim, porque parece que há uma relação direta entre o mau gosto e o bafo abaixo dos trópicos, juntando o bodum do suor com as lantejoulas despregadas das fachadas comerciais! Santo Deus vigiai a 25 de Março e dai a tua santa benção ao exército de formigas pecadoras que de lá partem com sua carga carnavalesca para contaminar de serpentina as nossas cidades! Alá lá ô ô ô ô ô ô ô, mas que calô ô ô ô ô ô ô! E como se tudo isso não bastasse, oh menino da manjedoura da estrebaria da beira de estrada, formam-se legiões de fiéis admiradores do mau gosto, estacionando seus carros para babar pelo canto da boca o fel cafonal de suas mal geridas referências estéticas! Oh menino Jesus, com o perdão da palavra, que tal conversar com o Moisés e fazê-lo divulgar uma medida provisória em forma de 11º mandamento cujo teor seria esse: “Todo aquele que se inspirar na Carmem Miranda para comemorar o meu santo aniversário será deportado para o recanto do Raio-que-o-Parta na companhia do Michel Telo e da Joelma do Calypso”? Perdão, senhor Jesus, perdão se me excedi... amém!  

domingo, 2 de dezembro de 2012

Epílogo de um cão...


Querido dono, li o que escreveu a meu respeito e resolvi romper com o silêncio para um pronunciamento oficial. É certo que fizemos um pacto de que eu nunca abriria a minha boca em forma de focinho preto, salvo quando tivesse certeza daquilo que quisesse dizer – e como eu nunca tive certeza de nada nessa minha curta vida de cachorro, não houve porque quebrar o nosso combinado. Assim passei nossos anos de convivência: em silêncio, às vezes me dando o direito de produzir alguns poucos ruídos inocentes, como o de roncar, bocejar... outras vezes arfava feliz com a língua pendendo para fora e emitia alguns grunhidos de satisfação... tá bem, confesso, não há porque mentir, não nessa altura do campeonato – também posso ter sido um tanto quanto  impertinente por chorar e ganir, implorando por um passeiozinho pelo bairro. Há de convir que uma volta na esquina para cheirar o poste tem o mesmo valor que uma viagem à Disney para gente da sua espécie. Mas foi só! Nunca fiz uso do verbo para me dirigir a você ou a qualquer outro de sua raça, embora, é bom que se diga, pudesse muito bem a qualquer momento palestrar em sua língua sobre os mais variados temas e tópicos, desde o absurdo do asfaltamento das ruas do nosso bairro até a questionável, porém compreensível, proibição impingida a nós, cachorros, de darmos um ligeiro mergulho na piscina do quintal. Mas as coisas mudaram, afinal, o trato feito não considera, pelo menos não em contrato assinado em cartório – e isso eu fiz questão de verificar -, o estado em que agora me encontro. Uma vez despachada para o céu dos focinhos, e não havendo qualquer cláusula proibitória que impeça um cachorro morto de falar, ou, pelo menos, de escrever, venho através desse depoimento retribuir na mesma medida a linda homenagem feita a mim por suas palavras. Obrigado, querido dono! Ainda que houvesse a possibilidade nas nossas tenras infâncias caninas de discutir com a cegonha o destino de nossas moradas, ainda assim teria por certo escolhido a sua companhia como destino final. Os aprendizados foram muitos e as curiosidades também. Que tipo esquisito é esse ao qual pertence, meu dono! E falo isso sem nenhum tom de reprimenda – lamberia sua mão agora se pudesse, só para provar minha sinceridade. É bastante interessante lidar com essa espécie que anda em duas pernas, sempre apressada em ir a algum lugar que nunca se sabe ao certo... e quando volta sabe-se lá de onde, traz no rosto uma expressão indecifrável, do tipo: ‘adivinha o que me aconteceu?’. É claro que o meu faro de cachorro era extremamente competente para mapear todo e qualquer sentimento importado da rua, o que me levava a aproximar-me de você para conversarmos mais a fundo sobre as questões que o atormentavam. Que coisa mais incrível! Vocês, meu dono, nunca estão onde querem estar, ou nunca conseguem fincar os pés no aqui e agora – transitam entre o que foi, o que poderia ter sido e o que quiçá será, embrulhando tudo e qualquer coisa para fugir daquilo que são no instante em que são! Nós, cachorros, não temos esse problema, e digo ‘problema’ porque vejo, ou conseguia ver enquanto vivia, que isso os atormenta tremendamente. Lembra-se daquela vez em que você saiu de casa angustiado com a sua iminente apresentação de formatura, todo ansioso e temeroso de que algo desse errado, e antes de apanhar o carro veio até mim para apertar o meu focinho cúmplice das suas crises íntimas e me sussurrar ao ouvido: ‘deseje-me sorte... quando voltar a vê-la tudo já estará terminado’? Naquele momento eu balancei o rabo e lhe lambi a mão, mas aquilo, posso confessar agora depois de morta, foi somente um jeito de disfarçar a minha também aflição gerada por sua cara branca de pavor; sim, porque pela sua voz, meu querido dono, parecia que o mundo estava prestes a parar de girar, dependendo do seu tão aguardado desempenho. Quando voltou mais tarde, estampava um sorriso no rosto... e eu pensei: ‘ufa!’ Eu torci por você, meu dono, não sabe o quanto eu torci por você... se tivesse me levado junto, eu teria levantado da cadeira e aplaudido de pé a sua apresentação. Mas aos cachorros o que é dos cachorros! - como diria alguém lá do Egito antigo. O que eu quero dizer, querido dono, é que a sua espécie tem uma real aptidão para criar monstros que não existem, ou só existem por habitar a cabeça de quem pertence a sua mesma condição. Se a grama deixasse de crescer lá do lado de fora, o sol não apontasse no horizonte na manhã seguinte e se a água não mais escorresse pela mangueira... aí sim teríamos um problema sério... mas todo o resto são divagações sem propósito algum! Digo isso, meu querido dono, porque foi o que aprendi com você, a decifrar essa mente tão enovelada que vocês, humanos, adoram preservar. Ah, querido dono, parto dessa para uma melhor... as agruras da velhice já me travavam o corpo e me causavam muita dor. Mas saiba que um cachorro morto tem o seu descanso merecido, e só interrompo as minhas férias no além porque uma certeza me faz finalmente abrir o focinho para falar: Obrigado, querido dono... e não deixe de olhar para o horizonte, ele sempre se repete, e isso faz todo e qualquer problema parecer um grão de arroz frente ao tamanho do mundo. AU!

Naomi.    

De tanto imaginar...



De tanto imaginar que de fato existia,
Acabou tornando real o que falso por principio seria,
Mas então por que não acreditar no que agora via,
Se mais verdadeiro do que tudo o que tinha tocado parecia?