quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sobre gatos, homens e lobos





A razão da infelicidade humana, trauzida em forma de angústia, não está na ignorância, mas sim na total incapacidade dos humanos em ouvir o mundo, desejando dele tão somente aquilo que o instante não nos oferece. Mais do que qualquer manual de erudição, são os animais aqueles a quem devemos nos dedicar, observar e aprender.


Ouça o áudio! Gravação do texto de João Pereira Coutinho, na Folha de SP (Ilustrada) - Março de 2009:
Existem momentos em que fico horas a olhar para o meu gato. Com inveja, sempre com inveja. Só Deus sabe o que existe na cabeça de um felino. Mas acompanho as rotinas dele e sei, filosoficamente falando, que ele é feliz.

Nós, humanos, seres temporais por excelência, vivemos aprisionados à idéia do nosso próprio fim. E, como se não bastasse essa terrível condenação, somos também incapazes de habitar casa momento inteiramente. O presente, em nós, está sempre carregado de passado e de futuro: do que fomos, das memórias que temos, do caminho e das escolhas que fizemos; e daquilo que gostaríamos de ser, ou ter, ou fazer. O presente, para nós, não é um lugar para estar. É uma breve passagem a caminho de outra breve passagem. Sempre e sempre e sempre até a despedida final.

Por isso, aconselho: se quiserem entender a natureza da felicidade, comprem um gato. E acompanhem a forma como ele cumpre as suas rotinas com entrega contida e total. Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição: de objetos, experiências, lugares. Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.

Um gato ajuda a entender tudo isso. Mas um livro publicado recentemente reforça a ideia. Confesso: comprei o livro sem expectativas numa livraria do aeroporto de Heathrow, em Londres. Só o título despertou a curiosidade: “The Philosopher and the Wolf: Lessons from the Wild on Love, Death and Happiness” (o filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade; Granta, 246 págs.). Não é manual de filosofia “ligeira”. Longe disso. O livro de Mark Rowlands é uma mistura erudita de experiência pessoal e reflexão metafísica, em que Nietzsche, Heidegger e Camus têm participação direta.

Ponto de partida: certo dia, o professor Rowlands leu anúncio no jornal. Alguém vendia lobos por U$500. Rowlands entrou na aventura. Horas depois, a casa estava destruída pelo novo hóspede, de nome Brenin, que não poupou a mobília e as cortinas.

Primeira lição: um lobo não é um cão. E, nos 11 anos seguintes e após treino apertado, Brenin foi a companhia do professor. Em casa. Na rua. Em viagem. E até nas aulas, para espanto de colegas e alunos: enquanto o professor dissertava sobre Platão e Aristóteles, o lobo dormitava ao seu lado. As aulas terminavam com um uivo. O livro de Rowlands é uma descrição pessoal de tudo isso: da relação idiossincrática de um homem com um lobo. Mas o livro de Rowlands oferece-se essencialmente como uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.

Impossibilidade? Precisamente. A modernidade ofereceu-se aos homens como projeto de construção secular. Por meio da Razão, seria possível conquistar a “sorte” que tanto afligia os gregos e realizar na Terra o que a cristandade medieval apenas prometia par ao Reino dos Céus. A felicidade seria uma construção individual e progressiva rumo a um fim determinado.

Paradoxalmente, essa idéia libertadora apenas trouxe o seu reverso: se a felicidade era responsabilidade nossa, a infelicidade também. E, adicionalmente, se a felicidade era convertida em projeto, ela seria igualmente convertida em insatisfação interminável: jamais estaremos onde queremos estar; jamais seremos o que queremos ser; jamais teremos o que queremos ter. A felicidade moderna converteu-se numa vigília permanente: a vigília de homens insatisfeitos; de homens esmagados pelos seus próprios ideais de felicidade e perfeição.

Viver com Brenin ensinou a Rowlands essa crucial diferença entre homens e animais: nós vivemos mergulhados no tempo e nas nossas próprias teologias pessoais. E a forma como desejamos sempre momentos que são posteriores ao momento presente impede-nos de viver qualquer momento de forma real e total. A infelicidade humana não nasce da nossa ignorância ou da nossa imperfeição. Muito menos da ignorância ou da imperfeição das nossas sociedades. A infelicidade humana é um produto da nossa específica temporalidade.

Resta uma questão final: serão os homens superiores aos animais? A resposta de Rowlands talvez seja a mais honesta: depende do que entendemos por “superioridade”.

Sim, um lobo jamais pintaria o teto da Capela Sistina. Mas será a Capela Sistina uma necessidade para um lobo? Ou, pelo contrário, será antes uma necessidade para nós? Uma forma de completarmos a parte que nos falta das várias partes que nos faltam?*


* João Pereira Coutinho – Ilustrada (Folha de SP) – terça feira, 31 de Março de 2009.

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